O jornalista Décio Junior comenta e confronta editorial do jornal O Estado de S. Paulo sobre a comunicação pública no Brasil

Por Décio Junior*, publicado originalmente no Brasil 247.

O editorial do jornal Estadão – ‘Debate’ como eles gostam, de 24/06/2016 – é uma clara manifestação antidemocrática e de afrontamento à comunicação pública e ao processo de democratização de mídia no Brasil.

O que me chama atenção não é postura do jornal em si, mas a forma com que um dos veículos “mais respeitados” do país trata o assunto, de forma leviana, jocosa e inconsequente, considerando que muitos leitores, apáticos ao assunto, ainda se limitam a ler e reproduzir a ideia transmitida pelo jornal.

O fato é que comunicação pública no Brasil ainda é um termo “novo”, que merece e precisa ser debatido com responsabilidade em um patamar de intelectualidade acima do que se propôs o jornal em seu editorial, que entre inverdades e incoerências, demonstrou (talvez de forma proposital) ignorância sobre a constituição da Empresa Brasil de Comunicação – EBC.

Não quero entrar no mérito do desrespeito com que o jornal tratou a audiência pública realizada na Câmara dos Deputados na terça-feira (21/06), a qual chamou de “encontro entre amigos”. Nem mesmo na insipiência traduzida em ataque partidário, ao classificar a comunicação pública como “objetivo exclusivo de espalhar o evangelho do PT”.

A primeira questão a ser colocada é que a EBC, ao contrário do que diz o editorial, não foi “criada por ordem do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva”. A Empresa Brasil de Comunicação é fruto de um amplo debate popular e democrático – termo que para o jornal pouco importa se existe ou não. Dele resultou o I Fórum Nacional de TVs Públicas, realizado em 2007, em Brasília, por iniciativa do Ministério da Cultura e de vários atores da sociedade civil organizada, de onde foi editada a Carta de Brasília – Manifesto pela TV pública independente e democrática. Em seguida veio a Medida Provisória e posteriormente a Lei 11.652/08, decretada pelo Congresso Nacional e aí sim, sancionada pelo presidente da República.

O segundo ponto a ser esclarecido é que desde a sua criação a EBC, que recuperou a sucateada estrutura da Radiobrás e da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (ACERP), responsável pela gestão da também sucateada TVE do Rio de Janeiro, manteve (e mantém) um Conselho Administrativo, uma Diretoria Executiva além dos conselhos Fiscal, Curador e uma Ouvidoria. Tal estrutura, que conta inclusive com membros indicados pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, serve para garantir a lisura da Empresa, a pluralidade na programação e independência editorial, sem a interferência do “governo do dia”.

Esse modelo, considerado o embrião de uma uma emissora pública brasileira, nos moldes de como fora criada a BBC em Londres e outras emissoras em diferentes países da Europa, afrontou, desde o início, o modelo de comunicação pública utilizada pelo governo de São Paulo, que ao longo dos governos do PSDB utiliza, de forma escancarada, a já sucateada, TV Cultura, como instrumento de comunicação política, que ataca claramente qualquer iniciativa democrática adotada por um governo popular, seja na esfera federal ou municipal, como acontece na capital paulista.

Um terceiro ponto fundamental para elevar o nível desse debate é explicar para o jornal – e aos leitores – que a EBC não é um “heroico contraponto” ao monopólio da radiodifusão comercial. A empresa nasce com o propósito de atender uma determinação legal garantida pela Constituição Federal, em seu artigo 223, que garante a complementaridade entre os sistemas comercial, estatal e público.

A partir desse ponto podemos iniciar a discussão sobre o processo de democratização da comunicação, que passa pela regulamentação deste e de outros artigos da Constituição, até a discussão sobre concessão pública para empresas privadas de comunicação, que se utilizam de um espectro não privatizado para obtenção de lucro e manipulação midiática. Isso não significa “ataque à imprensa livre”, mas sim garantia de direito à comunicação e a liberdade de expressão de todos os cidadãos e cidadãs.

Além disso, democratizar a comunicação no Brasil é estabelecer um novo marco regulatório para as concessões públicas que, de acordo com a UNESCO “não está claro o que define a escolha outorgada” feita pelo próprio Congresso Nacional.

Por fim, o jornal disse que o presidente interino “tomou a decisão de mexer na EBC” e que o PT estaria tentando desvincular a empresa da Presidência da República, porque fora “constituída para ser controlada por Lula”.

Primeiro que Lula não pode, em hipótese alguma, controlar a EBC, já que não é mais presidente da República. Por outro lado, o que se tratou na audiência foi uma tentativa de blindar a EBC de golpes – termo assumido por Temer para legitimar-se como presidente interino – dados pelo atual governo, como fez com os ministérios da Educação e da Ciência, Tecnologia e Informação, assim como tentou fazer com a EBC, exonerando do cargo de presidente o jornalista Ricardo Pereia Melo, numa atitude autoritária que feriu uma lei federal aprovada pelo Congresso Nacional e que, no meu entendimento, feriu ainda Lei 1.079, que define os crimes de responsabilidade.

O autoritarismo e a irresponsabilidade de Temer foi corrigida pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, que determinou o retorno do Jornalista Ricardo Melo à presidência da EBC.

Debater a comunicação pública no Brasil é preciso ir além das questões políticas. Se algum veículo comercial quiser entrar nesse debate é preciso que assuma o seu papel histórico de influência midiática. Sendo um serviço de radiodifusão, que coloque na pauta a concessão pública a qual se utiliza para obtenção de lucros. Sendo um velho jornalão como o Estadão, que não esqueça de considerar sua postura de apoio ao golpe militar de 1964, assim como fez com o golpe parlamentar de 2016.

E como já disse Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, “o Brasil (…) precisa de um sistema público não governamental de comunicação, um sistema que articule rádio, TV e internet. A comunicação comercial sozinha, com suas regras próprias, não consegue suprir as demandas estruturais do espaço público”.

* Décio Junior é jornalista. mestrando e especialista em Políticas Públicas e pós-graduado em Produção Executiva e Gestão de Televisão.