Na manifestação do dia 18 de março, na avenida Paulista, um cartaz colado num poste dizia: “Em tempos de ódio, amar é um ato revolucionário”

Por: Marco Piva*

Na manifestação do dia 18 de março, na Avenida Paulista, um cartaz colado num poste dizia: “Em tempos de ódio, amar é um ato revolucionário”. Em artigo no Globo, Luiz Fernando Veríssimo cravou que há um defunto esperando logo ali. No futebol, dois momentos nervosos. Enquanto no Pacaembú, que recebeu um Fla x Flu inédito em São Paulo, parte do público das numeradas gritava “Fora PT!”, no Itaquerão a PM, para não perder o costume, desceu a borracha nos corintianos que ousaram, de novo, colocar faixas na arquibancada contra a Rede Globo e o caso do desvio de dinheiro da merenda escolar do governo do estado. Em Belo Horizonte, Claudio Botelho improvisou um “Fora Dilma” à sua maneira e foi enxotado do palco por parte da plateia que gritava “Não vai ter golpe”. De quebra, o ator perdeu o direito de seguir apresentando o musical sobre a obra de Chico Buarque. Talvez se acerte agora com Lobão e Roger.

Todos esses eventos são sintomáticos do momento que o país e as pessoas vivem. Para além da pergunta “de onde vem tanto ódio?”, cabe outra indagação: quem odeia quem nessa história? Sou contra simplificações do tipo “não tem negro na manifestação dos coxinhas” ou “só estão na manifestação do PT porque ganharam pão com mortadela”. Isso ofende a inteligência das pessoas, já que a situação é muito, muito mais complexa.

Chegamos onde chegamos, essa espécie de estado bruto de intolerância, porque as instituições políticas não representam o que a sociedade, de um modo geral, espera delas. A corrupção no mundo da política não é de hoje. Chegou com Cabral e foi ficando, ficando até se transformar em coisa natural, às vezes usada como arma de extorsão (velho Assis Chateaubriand, quantos ensinamentos ao Roberto Marinho), às vezes como usada como luta política ou ambas as situações.

JK, o mais simpático dos presidentes brasileiros do pós-guerra, foi acusado de ter não um apartamento, mas um prédio inteiro na avenida Vieira Souto, no Rio de Janeiro. Com manchetes diárias na imprensa (na época não existiam redes sociais e a televisão ainda era incipiente) comeu o pão que o diabo amassou. Jurou de pé junto, fez o sinal da cruz, rezou uma centena de Pai Nosso negando a propriedade, mas lá estava implacável a manchete a dizer o contrário. No final, nem na porta do tal prédio JK havia passado, mas o estrago fora feito em sua imagem.

De quem vinham os ataques a JK, a Getúlio, a Jango? Qualquer semelhança com aqueles que hoje atacam Lula não será mera coincidência. Como disse brilhantemente Juca Kfouri, depois de ser usado pela Casa Grande, chegou a hora de devolver o ex-presidente para a Senzala. Se possível, com a pecha de corrupto. Norberto Bobbio, cuja leitura é obrigatória para entender a humanidade e a história, retratou bem o fascista: vive bradando contra a corrupção para esconder a maldade que traz dentro de si. Mussolini, na Itália; Hitler, na Alemanha; golpe militar em 64, no Brasil. História é para ser lida, relida, criticada, revirada. Mas não pode ser deixada de lado. Talvez, a melhor charge nesses tempos de cólera tenha sido de alguém cujo nome não identifiquei: um livro de História do Brasil é lançado contra manifestantes que pedem a saída de Dilma e há um corre-corre geral.

Está ficando fácil identificar quem odeia quem nessa novela que literalmente paralisa o país. O problema é que seus verdadeiros autores preferem os bastidores, deixando a cena para atores cômicos vestidos com a camisa da CBF, imbuídos de fervor patriótico como se apenas um dos lados tivesse sentimento de nacionalidade, de pertencimento a uma nação. O país é muito mais do que panelaços nos bairros de classe média. Ele é o grotão do Nordeste, a selva amazônica, o cerrado, os pampas, as regiões metropolitanas e onde mais tiver chão e gente de alma canarinha.

É verdade que ninguém aguenta mais essa novela, cujos capítulos ofendem a teledramaturgia porque são cenas repetidas, com falas óbvias demais até mesmo para o senso comum. Pergunte para quem vai ao supermercado se ele está feliz com os preços das coisas? Claro que não. Pergunte a ele qual é a causa? A corrupção. Pergunte a ele quem é o culpado? Aí vem a grande interrogação. Para muitas pessoas a culpa é da Dilma, do Lula e do PT. Elas estão convencidas de que o trio implantou o maior esquema de corrupção da história do país e precisam ser apeados do poder. De quebra, ainda sugerem que o PT montou um esquema para se manter no governo como se isso fosse crime para um partido, posto que a essência de todos os partidos políticos é alcançar o poder e obter hegemonia na sociedade para nele permanecer.

Vivemos, então, um duro e prolongado embate político com grandes chances de chegar às vias de fato nas ruas por um motivo prosaico: como o país cresceu economicamente nos últimos vinte anos com base na distribuição de renda, essa expansão gerou uma classe média que, no plano material, incorporou a ideia de uma evolução permanente sonhando alcançar a classe imediatamente superior. Conquistas sociais como direito à moradia e à luz, o acesso ao ensino superior ou técnico, bem como o reconhecimento de direitos coletivos importantes para as mulheres, afrodescendentes e LGTBs, estão ficando para trás na memória popular e – o que é pior – dependendo do final da novela, poderão ser suprimidos junto com vários direitos dos trabalhadores. Até mesmo o reconhecimento internacional que o Brasil havia alcançado, na condição de um jogador importante do xadrez geopolítico, corre sérios riscos.

Daí que a identificação objetiva de autores e atores do enredo da novela “Quando espumam nossas bocas” é uma necessidade para a ação política. Colocar o dedo na ferida e dizer, em alto e bom som, que sim, isto é caso típico de luta de classes, onde aparatos do Estado, a superestrutura de que fala Antonio Gramsci, são usados para a politização forçada e seletiva, amparadas não nas armas, mas no poder da caneta e da grande imprensa.

Martelando todos os dias que o principal problema do país é a corrupção e que os corruptos são Dilma, Lula e o PT, fica mais fácil articular o retrocesso institucional e a derrota de um projeto popular de tintura liberal. Diante de uma massa de pessoas cuja única proximidade com a política tem sido apresentar o título de eleitor ao mesário e assistir o Jornal Nacional deitado no sofá, a indignação individual explode na primeira esquina em catarse coletiva. Sem experiência de organização anterior, são multidões à deriva, com sangue nos dentes à espera da caça.

Impossível não lembrar Nelson Mandela que pacificou um país inteiro, marcado profundamente pelo racismo, com as palavras justiça e perdão. O grande líder sul-africano, que passou 27 anos na prisão, disse que ninguém nasce odiando o seu semelhante, mas que se aprende a odiar. Assim como podemos aprender a ser mais tolerantes, mesmo sem amar de paixão os adversários. É claro que a recíproca precisa ser verdadeira para dar certo.

Para finalizar, cito a frase lapidar do juiz de Direito Marcelo Semer: “Nós podemos até escolher se queremos entrar num Estado policial. O que não podemos escolher é sair dele”. Portanto, toda atenção é pouca. O ódio não é bom conselheiro. Para ninguém.

* Marco Piva é jornalista