‘Punitivismo barato não terá capacidade de resolver nenhum dos nossos problemas, muito menos a perversa e inaceitável corrupção ou a concessão de superpoderes à polícia, à justiça ou ao ministério público.’

Por: Felipe da Silva Freitas*

Há muito tempo ativistas e militantes políticos têm denunciado o caráter perigoso do punitivismo policialesco que, no Brasil, tem se ocupado de prender arbitrariamente milhares e milhares de pessoas. Este fenômeno, já bastante denunciado, tem sido o principal responsável pelo encarceramento em massa, por sucessivas violações de direitos fundamentais no âmbito do processo penal e pelo sistemático descarte das previsões constituições relativas ao direito de defesa. O direito penal tem sido o campo de legitimação de absurdos praticados em nome da lei e da ordem.

Estas violações, que na maioria das vezes tem ocorrido contra grupos sociais historicamente excluídos, parecem que alcançaram – ainda que em episódios pontuais – outros setores da sociedade. O discurso do combate à corrupção tem sido capaz de nos mostrar, por outro enfoque, os riscos de desvalorizarmos a liberdade e a gravidade de um sistema de justiça criminal comprometido com o arbítrio e não com a efetiva garantia e proteção dos direitos.

A condução coercitiva do presidente Lula realizada na manhã do dia 4 de março pela Polícia Federal é arbitrária, descabida e violenta, como têm sido cotidianamente centenas e centenas de prisões que ocorrem no país com uma irresponsável e truculenta conivência do Poder Judiciário. A diferença é que o destaque alcançado pela condução coercitiva (que mais se aproximou de um sequestro) do presidente Lula nos permite refletir melhor sobre o estado no qual estamos chegando no âmbito do direito brasileiro. Não estamos propriamente diante de uma novidade, mas diante de uma prática que, pela sua reiteração sistemática, já ultrapassa os limites do tolerável e precisa ser amplamente repelida pelos vários setores da nossa sociedade.

A prisão (ou a condução coercitiva) do ex-presidente não se justifica sob nenhum argumento jurídico. Lula não se negou (nem se negaria) a comparecer voluntariamente à Polícia e/ou ao Ministério Público, nas investigações não existem provas da prática de crimes, nem havia riscos à instrução criminal e, sobretudo, havia outras formas de coletar o depoimento de Lula e dos outros conduzidos, portanto, não era, sob nenhum aspecto, necessária a sua presença física perante as autoridades policiais.

A condução de Lula foi apenas um exercício de força e de espetacularização midiática, mais um exemplo do que tem sido o direito penal e a prática da polícia em nosso país. O STF ainda não definiu de quem é a competência para proceder as investigações contra o ex-Presidente e, o mais grave, Lula não foi sequer intimado a prestar depoimento, não houve resistência de Lula, houve apenas arbítrio da polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário.

A grande questão não é dizer “como fazem isso com um ex-Presidente da República”. Ao contrário, a questão é “como se faz isso com qualquer cidadão” (seja ele culpado ou inocente). O avanço civilizatório do direito penal é que haja presunção de inocência e que existam garantias constitucionais para que todos possam exercer o direito de defesa e que ninguém seja constrangido em sua liberdade sem respeito às Leis e ao devido processo. Porém, não é isso a que temos assistido no Brasil. As sucessivas arbitrariedades da polícia, do Ministério Público e dos próprios tribunais superiores parecem ir ganhando estatus de estado de exceção permanente, no qual a truculência fica valendo como prática do cotidiano.

Os fatos relativos à condução do presidente Lula precisam nos alertar para o punitivismo que ganha força, à direita e à esquerda, em nossa sociedade; para o descaso com o qual vimos assistindo a uma escalada autoritária com fortes repercussões no mundo jurídico e para uma irreversível trajetória de atentados aos direitos e garantias fundamentais. Os episódios aos quais assistimos nesta ocasião não revelam novidades, mas evidenciam problemas antigos que persistem sem que sejam tomadas as providências cabíveis.

O punitivismo barato não terá capacidade de resolver nenhum dos nossos problemas, muito menos a perversa e inaceitável corrupção ou a concessão de superpoderes à polícia, à justiça ou ao ministério público. Ou denunciamos todas as formas de abuso de poder ou perderemos mais uma chance histórica de começar a mudar e debater, de fato, o papel das instituições no controle das várias formas de criminalidade.

O autoritarismo faz mal a Lula e faz mal a todos nós.

*Felipe da Silva Freitas é doutorando em Direito pela Universidade de Brasília e pesquisador-associado do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana.