Para nascer, nascemos
Por Pedro Tierra
A aventura de construir um Partido de base popular que viesse a representar de maneira independente os interesses dos trabalhadores na sociedade brasileira, ainda sob a ditadura empresarial-militar imposta ao país pelo golpe de abril de 1964, percorre a esta altura três décadas e meia.
No 10 de fevereiro de 1980 estavam amadurecidas as condições para dar forma a um organismo partidário que representasse as aspirações de uma classe social que se encontrava incluída, como mão-de-obra, no setor de ponta de economia, mas excluída da arena política. Uma classe que se revelou capaz pelo instrumento das greves, das mobilizações de massas e da ação parlamentar de estabelecer alianças com diferentes setores sociais para por abaixo uma tirania já em declínio.
O PT foi diagnosticado inicialmente como um incômodo a ser digerido e eliminado pela repressão pura e simples ou pela própria dinâmica do metabolismo institucional da transição pelo alto engendrada por seu principal estrategista, o Gal. Golbery. Ao forçar as portas daquele sistema político concebido para abrigar disputas sob o estrito controle do regime ditatorial, entre os grande senhores da indústria, do agronegócio nascente e dos antigos monopólios de comunicação nutridos pelo regime, o Partido dos Trabalhadores cometeu um delito: o delito original de ter nascido.
Com voz própria, ainda que desafinada, mas vigorosa, por liberar uma polifonia, àquela altura irreprimível, de reivindicações, desejos, esperanças, agredia com seu timbre dissonante os ouvidos de uma sociedade alfabetizada pelo silêncio. A campanha das “Diretas Já” mobilizou milhões. Se não venceu de imediato, sacudiu irremediavelmente os alicerces do regime. Com os movimentos sociais, sua base primeira, em ascensão, o PT se consolidou como expressão política dos de baixo e como projeto popular de desenvolvimento para o Brasil.
Passados vinte e dois anos de batalhas ganhas e perdidas, mas sobretudo ganhas, o Partido dos Trabalhadores liderou a ampla aliança que venceu as eleições de 2002. Levou à chefia do governo central o operário metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, tendo como Vice um empresário bem sucedido, o mineiro José Alencar. O PT cometeu aí um delito derivado.
Alcançou algo surpreendente. Inconcebível para os de cima e por isso mesmo imperdoável para as instituições moldadas à sua semelhança: venceu as eleições dentro das regras estabelecidas por seus adversários. E pôs à frente do país um homem que encarna tudo que aquelas elites políticas tradicionais, herdeiras da cultura da Casa Grande, rejeitam: ele vem do nordeste do país, região identificada pelos de cima, como paradigma do atraso e da dependência; ele vem do mundo do trabalho num país em que as elites descendentes dos senhores de escravos rejeitam o trabalho como atividade para negros e inferiores; ele vem do chão da fábrica, das ruas e não das universidades, nem da caserna que produziram os principais dirigentes da nação.
Desmentindo os vaticínios dos pretensos ‘formadores de opinião’, esse homem conduziu o país sob o fogo quotidiano e implacável do cartel da mídia conservadora, por dois mandatos à frente de um governo que incorporou no seu percurso, além dos seus aliados tradicionais, no campo da esquerda, parcela do centro do espectro político do país e mesmo setores de direita pulverizados em representações partidárias de menor relevância. Um governo complexo que produziu modificações profundas no perfil da distribuição de renda do Brasil, combateu a fome e as desigualdades regionais, deu os passos necessários para consolidar um mercado interno de massas, imprimiu um novo ritmo e uma nova qualidade ao nosso desenvolvimento.
Renovou o rosto da diplomacia brasileira e afirmou a imagem do Brasil diante do mundo como nunca na história. Reorientou as relações internacionais para uma perspectiva Sul-Sul, com ênfase na América do Sul, sem deixar as parcerias anteriores, Europa e EUA e ampliou-as firmando novas em extensão e qualidade. Apresentou o país como destino seguro para investimentos, afirmou nossa soberania pagando as dívidas com o FMI libertando-nos da condição humilhante, subalterna de nação tutelada.
Chegou ao fim do mandato apoiado pela maioria esmagadora da população independente do extrato social, credo religioso ou filiação partidária. As descobertas das jazidas do pré-sal pela Petrobrás e a adoção do Sistema de Partilha para sua exploração apontaram um novo rumo para o processo de desenvolvimento do Brasil, estabelecendo um sólido vínculo programático entre o PT e a tradição trabalhista anterior, vigente no período Vargas. Ao encerrar o segundo mandato do Presidente Lula, o PT cometeu um terceiro delito: o delito de eleger uma mulher para dirigir o Brasil.
No país herdeiro da cultura política do patriarcalismo dos coronéis de rebenque, espora e chapelão, do machismo explícito ou dissimulado, elegeu pela primeira vez na história uma mulher para a Presidência da República: Dilma Rousseff. Militante da resistência à ditadura desde a juventude e da reconstrução da democracia depois de cumprir pena nas prisões do regime. Trouxe consigo os sonhos da geração que se lançou à vida pública para enfrentar a tirania e devolver à nação sua perspectiva de retomada do desenvolvimento inclusivo, democrático e soberano.
A construção política que tornou possível esses avanços não tem o direito de esperar trégua dos seus adversários, herdeiros implacáveis da cultura escravocrata, colonizada, autoritária, machista, intolerante que marca historicamente o exercício da política no Brasil. Ao afirmar-se na sua certidão de batismo como um Partido que lutará “por uma sociedade sem explorados e sem exploradores”, um partido socialista e democrático, o PT selou sua trajetória e o combate implacável que receberá enquanto se fizer presente na cena política do país.
O Partido dos Trabalhadores depois de três décadas e meia de protagonismo nas lutas contra a Ditadura empresarial-militar e pela reconstrução da Democracia se encontra numa encruzilhada. Ou aprofundamos o processo de transformação que desencadeamos na sociedade brasileira, produzindo alterações relevantes no sistema político partidário do país e que resultou nos governos Lula e Dilma, nos afirmando como um Partido socialista ou sucumbimos à moléstia que acometeu as legendas que nos precederam: um partido sem projeto nacional, um aglomerado de mandatos incapaz de se por à altura da tradição que construímos e dos desafios para conduzir o projeto de sociedade pelo qual lutamos com êxito ao longo de doze anos de mandatos consecutivos: dirigir uma das maiores economias do mundo, um país que combata as desigualdades e respeite as diferenças, que garanta a sustentabilidade socioambiental, um país que acolha todos os seus filhos.
Entre as tarefas que o Partido dos Trabalhadores deverá cumprir nessa etapa em que iniciamos o quarto mandato, está a recuperação da autoestima dos brasileiros e de sua própria autoestima sistematicamente demolidas pelo cartel da mídia conservadora que pretende converter a política em crime. Esse cartel – verdadeiro obstáculo ao avanço da Democracia e ao direito à informação – não suporta a altivez que conquistamos com os governos Lula e Dilma diante do mundo. Coordena uma ofensiva contra a Petrobrás, não para sanear as práticas de corrupção que, de resto, prosperaram desde os governos tucanos, mas para retirar da maior empresa pública brasileira e uma das maiores petroleiras do mundo as condições de credibilidade necessárias para gerir a exploração das jazidas do pré-sal, entrega-las por meio do regime de concessões para as empresas estrangeiras. E bloquear assim o fluxo de recursos capaz de sustentar um novo ciclo de desenvolvimento inclusivo e democrático para o Brasil.
O bloco conservador, derrotado mais uma vez nas eleições democráticas de 2014, à falta de um projeto próprio de desenvolvimento para o país, projeta sobre o PT todas as mazelas que engendrou e pratica quotidianamente, ou seja, não somos combatidos por nossos erros, mas pelo compromisso fundamental de fidelidade aos interesses dos trabalhadores. Por essa razão que justifica historicamente a presença do PT no cenário político do país, ao iniciar o quarto mandato consecutivo à frente da Presidência da República, afirmamos diante da sociedade brasileira que as elites conservadoras que há alguns anos expressaram publicamente o desejo de “acabar com essa raça” entendam: três décadas e meia depois, viemos para ficar. E lembra-los, inspirados no poeta chileno Pablo Neruda: “Para nascer, nascemos”.
Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é escritor e presidente do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo