Por Hamilton de Pereira

As nações se reconhecem no espelho do mundo pela afirmação da fisionomia cultural dos seus povos. A construção dos Direitos Culturais no Brasil – entendida como acesso democrático aos recursos públicos por parte da multiplicidade e diversidade dos criadores e produtores de expressões culturais, de um lado, e exercício quotidiano do cidadão do direito de fruir e incorporar ao seu universo simbólico o que lhe é oferecido pelo talento criativo dos nossos artistas, de outro – será tarefa de gerações. Diferentes motivos geram e prolongam esse desafio. Na História do nosso país, não raro, se registram longos períodos de censura como política de Estado com o objetivo de castrar o sentido libertário da criação artística durante as ditaduras. Além da repressão policial direta contra a capoeira e o samba na virada do século XIX para o século XX e mais recentemente ao Funk e ao Hip Hop produziu-se e disseminou-se na  sociedade o preconceito contra essas expressões culturais populares, associando-as ao crime. Não por acaso expressões culturais das populações negras e pobres das favelas e bairros da periferia das cidades.

Para superar esse quadro de discriminação social, econômica e cultural e estabelecer as bases para vincular o exercício pleno da cidadania ao acesso universal aos bens e serviços culturais, como determina a Constituição Federal, desde 2003, o Brasil percorre uma trajetória de elaboração e execução de Políticas Públicas de Cultura entendidas como Direito Básico do Cidadão e fator relevante do novo Ciclo de Desenvolvimento do país.

Conferimos ao Ministério da Cultura – principal instrumento de execução dessa Política Pública – a importância que o legado neoliberal não lhe reconhecia, como mecanismo adequado para proteger e estimular a diversidade cultural do Brasil e preservá-la da pasteurização e da homogeneização imposta pelos veículos que exercem o monopólio da difusão e do entretenimento e pela dinâmica padronizadora do mercado.    

O desafio que está posto para consolidarmos uma Política Pública de Cultura duradoura, capaz de afirmar nossa diversidade cultural diante das outras culturas do mundo, estará vinculado à capacidade de incluirmos definitivamente na agenda do Projeto de Desenvolvimento, em curso, essas duas dimensões: Cultura como direito do cidadão e Cultura como fator relevante para definir a qualidade do novo ciclo de desenvolvimento do país.

A sociedade brasileira vive uma experiência aparentemente paradoxal: de um lado, um indiscutível processo de inclusão econômica e social de vastas dimensões, que emergiu a partir dos primeiros anos do século XXI e – em tese – reuniria as condições para oxigenar o sistema de valores, de crenças, de princípios; de outro, a esse deslocamento social ascendente se contrapõe um ambiente público em que prevalece, nos meios de comunicação social, um discurso carregado de obscurantismo, conservadorismo, provincianismo, individualismo e preconceito.

Pode-se argumentar que a ascensão social da última década, resultante das políticas de distribuição de renda conduzidas pelos governos Lula e Dilma, traz consigo de modo inevitável essa atitude conservadora em defesa dos pequenos ganhos obtidos pelos novos incluídos no mercado de consumo de bens e usuários dos serviços públicos. Mas, convém lembrar que ganhos semelhantes das classes trabalhadoras, na história recente do país, particularmente derivados das lutas sindicais no ocaso da ditadura se constituíram num importante estímulo a novas conquistas. Para obtê-las os movimentos populares constituíram e consolidaram instrumentos mobilizadores de lutas sociais – o PT, a CUT, o MST, a Central de Movimentos Populares, a Central de Favelas, um sem número de organizações com forte inserção na base da sociedade – que converteram ganhos econômicos e sociais em participação política e viabilizaram a vitória da aliança liderada pelo Partido dos Trabalhadores a partir de 2002.

Por esse caminho, é possível identificar a raiz do problema não na ‘acomodação conservadora’ dos novos incluídos, que não desejam abrir mão de suas pequenas conquistas, mas na insuficiente presença das forças de esquerda, na disputa pela definição da agenda pública da sociedade brasileira. A disputa segue implícita entre os valores culturais materializados pelas Políticas de Inclusão Social dos governos populares que assumiram o governo central com a vitória do Presidente Lula em 2002 e os programas neoliberais dos derrotados nas urnas em 2002, 2006 e 2010, mas que continuam a exercer o monopólio da produção e difusão de opinião no país. 

As manifestações de junho/julho de 2013 podem ser interpretadas de várias formas, mas definitivamente não indicam acomodação com as conquistas sociais e econômicas resultantes das políticas inclusivas conduzidas pelos governos populares e sustentadas pelo Partido dos Trabalhadores e suas alianças, na última década. Trata-se, portanto, de não renunciar à disputa do imaginário da sociedade, de fazer valer a vontade das urnas e travar – de maneira explícita – a batalha de valores inseparável dos ganhos econômicos e sociais das vastas camadas que emergiram ao longo desses quatorze anos.      

Experimentando um período de estabilidade institucional duradouro, a ação do governo federal tem sido capaz de alcançar positivamente segmentos sociais inteiros, que se contam na casa dos milhões de famílias, por quase uma década e meia; capaz de incorporar as regiões mais pobres do país ao novo ciclo de desenvolvimento com a descentralização dos investimentos públicos em infraestrutura e serviços; capaz de promover um ciclo de geração de emprego e renda – particularmente a elevação do Salário Mínimo – sem paralelo na história do Brasil, com repercussões notáveis na elevação dos níveis de vida das populações mais pobres, como atestam os dados recentemente publicados pela ONU sobre o IDH no mundo; capaz de democratizar o Estado por meio do estímulo à participação social na formulação das Políticas Públicas e pautar na sociedade o debate em torno do Decreto No 8243/ 2014 que cria a Politica Nacional de Participação Social; capaz de obter êxitos inegáveis – o mais relevante deles a manutenção de altas taxas de emprego no país – em meio a uma severa e prolongada crise no conjunto da economia mundial.
 
É possível afirmar que essas transformações econômicas, sociais e políticas não foram traduzidas na necessária hegemonia de valores culturais democráticos e republicanos indispensáveis ao convívio quotidiano dos cidadãos para escaparmos da barbárie que nos cerca. Continuamos a ser uma sociedade violenta, oligárquica e patriarcal, intolerante com as diferenças e com os diferentes, machista e sexista, banhada numa aparência liberal (nos costumes), uma sociedade que se imagina urbana e moderna, mas convive alegremente com desigualdades entre ricos e pobres incompatíveis com uma nação civilizada.

Esse paradoxo: a consolidação de um conjunto de Políticas Públicas de inclusão social, de combate à pobreza e às desigualdades regionais, voltado para a geração de emprego, renda e cidadania permanece submetida à hegemonia de uma agenda de ideias e concepções assentadas sobre o individualismo, o consumismo, o desperdício, a depredação do ambiente, a intolerância com as diferenças e com os diferentes, o cinismo e o cultivo da violência como método para resolver os conflitos sociais e individuais.

Tal paradoxo exige cada vez mais a necessidade do debate em torno dos valores culturais que a sociedade brasileira pratica no dia a dia e os valores que deseja oferecer para as novas gerações. Concretamente trata-se de aprofundar o debate em torno do modelo educacional, cujo currículo não passou por modificações substantivas desde o fim da Ditadura Empresarial-Militar, do modelo de financiamento da Produção e Difusão de bens e serviços culturais via Fundo Nacional de Cultura, Leis de Incentivo Fiscal e do modelo de concessão dos meios de comunicação – outro fator determinante na modelagem dos comportamentos sociais – que resiste submeter-se à plena vigência da Constituição de 1988.

Os avanços exigidos pela sociedade demandam aprofundar as Políticas Estruturantes no âmbito da Cultura, conduzidas pelos governos Lula e Dilma: Consolidar o Sistema Nacional de Cultura para fazê-lo universal, isto é, capaz de alcançar a totalidade dos municípios brasileiros a exemplo do SUS; garantir os mecanismos legais que equiparem os valores do Fundo Nacional de Cultura – FNC aos valores autorizados para captação de recursos via Leis de Incentivo Fiscal. Sem um sólido FNC não se viabiliza um Sistema Nacional de Cultura que mereça a atenção e o interesse dos gestores estaduais e municipais e alcance o cidadão no seu espaço físico de convivência social; modernização dos modelos de gestão dos espaços púbicos de cultura.      
  
Trata-se de ampliar o debate da produção e difusão dos bens simbólicos, dos bens culturais, sem deixar de encarar a batalha das ideias num ambiente radicalmente mercantil. Esse, em que vale o que é mais facilmente vendável, o de consumo imediato, o que dispensa análise e reduz cada vez mais a cultura a uma de suas dimensões: a dimensão do entretenimento. As forças políticas com vocação transformadora devem sustentar o esforço para responder aos desafios da convivência civilizada nesse ambiente hostil que prevalece na sociedade contemporânea brasileira: sedimentar os valores da tolerância, da solidariedade, do respeito à integridade dos semelhantes e dos diferentes,  e responder a duas perguntas que permanecem sem resposta: A sociedade entregará os interesses do mercado a transmissão dos seus valores culturais? Qual será o perfil das regras democráticas que a sociedade pactuará para oferecer às gerações que chegam, o legado de sua história e dos seus valores?

O Programa que ora apresentamos para debate na sociedade brasileira pretende oferecer um conjunto de propostas com o objetivo de aprofundar o que foi realizado ao longo dos mandatos do Presidente Lula e da Presidenta Dilma. Trata-se de propostas de Políticas Públicas de Cultura Para o Século XXI, que redefinem os papéis do setor público, do setor privado e do terceiro setor na arquitetura de uma ação de longo prazo que incorpore definitivamente as Políticas Públicas de Cultura à agenda do Projeto de Desenvolvimento do Brasil, agregando a ele uma nova qualidade.  

Para tanto o debate deve encarar os temas inevitáveis pautados na sociedade e no parlamento nos últimos anos: o Financiamento, o Pró-Cultura, o Sistema Nacional de Cultura e suas relações com o Fundo Nacional de Cultura; A Dotação Orçamentária Direta; As Emendas Parlamentares; o acesso ao Fundo Social do Pré-sal, desde o ponto de vista de uma sociedade em franco processo de transformação que passa a exigir do Estado como Direito Básico, o Direito de acesso permanente aos bens e serviços culturais como elemento indispensável para assegurar qualidade de vida e como forma de definir sua identidade como nação. 
 
Hamilton Pereria é secretário de cultura do Governo do Distrito Federal e presidente do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo