Dominação financeira e suas contradições
Por Marcio Pochmann
Nota do autor: A presente reflexão foi estimulada pelo artigo do governador Tarso Genro sobre a Internacional do Capital Financeiro publicado pela Carta Maior.
Desde o seu princípio organizador, o modo de produção capitalista caracterizou-se por se expandir sistemicamente, incorporando e articulando crescentes espaços territoriais até se tornar global. Tudo isso a partir da existência de um centro dinâmico integrador de um todo periférico.
Ainda que combinada pela lógica sistêmica, a dinâmica capitalista se manteve desigual, seguida por crises de curta e longa durações. Mesmo que o centro dinâmico tenha se alterado poucas vezes ao longo do tempo, a condição de periferia seguiu se produzindo e reproduzindo intensamente.
Para assumir a posição de centro dinâmico, três dimensões se fariam fundamentais. A primeira identificada pela capacidade de deter moeda de curso internacional com suas funções de troca, reserva de valor e unidade de conta permanente ativas.
A segunda dimensão está associada ao poder das forças armadas para levar adiante – sempre que necessário – o que a diplomacia não se apresenta como suficiente. A terceira dimensão refere-se à capacidade de produzir e difundir tecnologia enquanto elemento dinâmico e acesso da competição intercapitalista.
Pela Revolução Industrial e Tecnológica do século 18, na Inglaterra, o capitalismo alçou a condição de trânsito da antiga sociedade agrária para a moderna sociedade urbana e industrial. O processo de mecanização na época gerou ganhos de produtividade crescentes com a incorporação tecnológica e a consequente ampliação na divisão do trabalho, garantindo à armada inglesa o poder do exercício da força pela condição de centro dinâmico mundial.
Mas até o início do século 20, o capitalismo se expandia demarcado pela forma fundamental dos impérios (britânico, austro-húngaro, otomano, português, espanhol, entre outros) em relação às colônias. Neste meio, os avanços econômicos possibilitados pela industrialização retardatária (Alemanha, EUA, França, Rússia, Japão e Itália), seguida da Segunda Revolução Tecnológica no último quartel do século 19, colocou em xeque o centro dinâmico mundial, posto que a Inglaterra convivia com o esvaziamento produtivo frente ao poder financeiro crescente da City.
Ademais, as duas grandes guerras mundiais (1914-18 e 1939-45), intermediadas pela Grande Depressão de 1929, tornou real e efetiva a disputa entre nações emergentes como Alemanha e Estados Unidos pela sucessão da liderança inglesa.
A partir do fim da década de 1940, o novo centro do mundo se estabeleceu sob a liderança inconteste dos Estados Unidos, cujo american way of life se generalizou mais rapidamente pelo consumo de bens e serviços do que a descentralização da produção de manufatura pelo mundo.
Em plena Guerra Fria (1947-1991), mais de 150 países se constituíram frente ao desmoronamento dos antigos impérios e de suas colônias. Ao mesmo tempo, a maior parte da periferia alcançou a soberania nacional, reposicionando o papel do Estado em defesas de políticas nacional-desenvolvimentistas. Isso porque, o centro dinâmico mundial exercido pelos EUA acobertou a conformação dos Estados nacionais regidos por normas monitoradas pelas Nações Unidas e organismos multilaterais (Otan, BM, FMI, acordos de livre comércio, entre outros), diferenciando-se do padrão anterior da hegemonia inglesa.
Por acordo entre as nações, conforme realizado em Bretton Woods, em 1944, o dólar estadunidense se transformou em moeda de curso internacional, mantendo-se conversível ao ouro e com valor fixo por 27 anos (1944 e 1971). A valorização do dólar ocorrida no período era compatível com a posição de maior exportador e responsável por 2/3 das reservas de ouro do mundo no imediato segundo pós-guerra.
A condição de centro dinâmico assentou-se no tripé interno de forças a exercer a vontade da maioria política. De um lado, o poder armado sob a liderança de grandes generais vitoriosos da Segunda Grande Guerra Mundial (Douglas MacArthur, George Marshall Jr, Dwight Eisenhower, entre outros) e, de outro, as forças produtivas representadas pelos grandes conglomerados industriais (famílias Gould, Rochefeller, Ford, Carnegie, entre outros). Por fim, a expressão da sociedade civil organizada em grande medida pela força dos sindicatos e dos movimentos de direitos humanos assumiu importância em determinados momentos do segundo pós-guerra.
A partir da década de 1970, contudo, as condições de exercício da hegemonia estadunidense fragilizaram-se substancialmente. Três acontecimentos significativos ameaçaram as dimensões do centro dinâmico do mundo.
O primeiro deles ocorreu em 1971, com a desvalorização do dólar em relação ao ouro, e teve o grande final em 1973, com o fim da conversibilidade da moeda estadunidense ao ouro. Com a decisão do presidente Richard Nixon, o dólar assumiu a condição de uma moeda como qualquer outra, sem mais equivaler ao ouro, o que resultava em descrédito à dimensão monetária fundamental de valorização do capital em qualquer país capitalista.
O segundo acontecimento se deu em 1975, com a derrota das forças armadas estadunidenses na Guerra do Vietnã (1965-75). A decisão do presidente Gerald Ford reafirmou o descrédito no poder militar dos EUA em termos internacionais, bem como internamente frente à vitória nas eleições pelo Partido Democrata e nas repercussões políticas geradas pelas massivas manifestações populares contra a guerra.
Por fim, o terceiro acontecimento se deu em 1979, com a Revolução Iraniana e a entrada da Rússia no Afeganistão. A ameaça ao domínio dos Estados Unidos no Oriente Médio pelo avanço das forças pró-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas poderia abrir um novo flanco de insegurança energética, fundamentalmente representada pelo petróleo, rico na região.
A decadência relativa dos Estados Unidos era evidente tanto no seu setor produtivo, que assumia a condição inédita de importador líquido de mercadorias na década de 1970, como na incapacidade da política macroeconômica superar a fase de estagflação da época. Ao mesmo tempo em que crescia o risco da insegurança energética num país importador de petróleo, o poder das forças armadas se mostrava fraco.
Diante disso, países como a Alemanha e Japão eram vistos como possíveis sucessores dos Estados Unidos, mais preparados para exercerem a condição de centro hegemônico do mundo. Somente uma guinada na conformação de uma nova maioria política poderia restabelecer a retomada do poder estadunidense.
As eleições de 1979 terminaram por restabelecer um novo pacto de poder, consagrado pela adoção das políticas neoliberais. A começar pela recomposição da linha estratégica nas forças militares, com a ascensão da liderança dos “falcões” assentados na estratégia da guerra cibernética.
Para isso, o redirecionamento de parte do orçamento se mostrou fundamental, associando a realocação dos recursos públicos à pesquisa e desenvolvimento das novas tecnologias de informação e comunicação (TICs). A terceira Revolução Industrial e Tecnológica teve impulso para além da eletrônica, com o salto das empresas pontocom no Vale do Silício estadunidense.
O programa militar identificado como Guerra nas Estrelas (Defesa Estratégica no Espaço) foi lançado pelo presidente Ronald Reagan em 1983 com o objetivo de reestabelecer a superpotência militar estadunidense. Ao mesmo tempo interligou o gasto militar com a pesquisa, originando, inclusive, a internet para uso civil ao final da década de 1980.
A segunda inovação no pacto de poder estadunidense ocorreu com articulação mais fina entre o Departamento de Estado e as petroleiras, especialmente nas ações no Oriente Médio. Como se sabe, a Revolução Iraniana, em 1979, desencadeou o segundo choque de petróleo, quando o barril chegou a US$ 80.
Somente sete anos depois, em 1986, o preço do barril voltou à normalidade, contando com importante articulação entre a diplomacia dos EUA e as forças armadas no Oriente Médio, simultaneamente às ações das grandes empresas petroleiras, visando garantir a segurança energética do maior importador de petróleo do mundo.
A terceira inovação foi a substituição do poder dos industriais estadunidenses pelo dos banqueiros, uma vez que, com a política realista de Paul Volcker no Banco Central dos EUA (Federal Reserve), a partir de 1978, a taxa de juros voltou a ser mais elevada que a inflação. Desde a Grande Depressão de 1929, quando os banqueiros foram tidos como dos principais responsáveis pela especulação financeira vigente à época, que a taxa de juros se mantinha, em geral, abaixo da inflação, objetivando estimular os investimentos produtivos na economia.
A política do dólar forte na década de 1980 contribuiu para que a política neoliberal da desregulação financeira e bancária ganhasse difusão não apenas nos Estados Unidos. Por consequência, a elevação da taxa de juros nos EUA atraía a centralidade das aplicações financeiras naquele país, salvo elevação simultânea dos juros nos demais países, o que terminou esvaziando a autonomia da política monetária para o conjunto das economias.
A globalização financeira ganhou escala e passou a liderar em novas bases a ordem capitalista mundial. Os banqueiros do mundo todo se uniram, conformando grau de poder jamais visto, capaz de submeter empresas e países à lógica financeira, inclusive parcela da política, que tem crescente presença de parlamentares e governos operando como verdadeiros funcionários do capital fictício.
Com a reconfiguração da nova maioria política nos EUA, os resultados da dominação militar e financeira se apresentaram evidentes frente ao enquadramento do Japão e da Alemanha à situação de países submissos. Houve ainda o fim da Guerra Fria. A partir dos anos de 1989, com a queda do Muro de Berlim e, de 1991, com a derrocada da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o império estadunidense se constituiu enquanto tal, favorecendo o exercício unipolar da dinâmica econômica mundial e retirando poder dos Estados nacionais na efetividade de suas políticas, seja monetária, seja nas TIC’s, seja na área militar, entre outras.
Contraditoriamente, o êxito alcançado terminou também sendo portador da corrosão das bases produtivas do capitalismo estadunidense. Guardada a devida proporção, os EUA passaram a seguir trajetória similar à experimentada pela economia inglesa no final do século 19, quando a contaminação pelo vírus do improdutivismo, gerado pelo processo da financeirização da riqueza, levou à decadência do império britânico.
Paralelamente, parte da Ásia confirmou, por intermédio de várias experiências nacionais, a constituição atual de uma nova fronteira de expansão do capitalismo global. Justamente a China e a Índia, que foram, em especial, os dois grandes territórios do planeta perdedores diante do avanço da hegemonia inglesa e estadunidense na primeira e segunda Revolução Industrial e Tecnológica, voltaram a se tornar emergentes diante da implantação de experiências associadas ao planejamento central e ao vigor do Estado.
Resumidamente, as reformas neoliberais realizadas desde a década de 1980 terminaram por esvaziar parte da estrutura produtiva dos países desenvolvidos – outrora referência da expansão capitalista global. Na sequência do deslocamento da produção industrial ocidental para a Ásia vislumbrou-se a continuidade da desenvoltura de mais uma revolução tecnológica motivadora de novas centralidades no planeta, tais como as cadeias globais de valor geridas por grandes corporações transnacionais.
A manifestação da grave crise global a partir de 2008 tornou mais clara o conjunto de sinais da decadência relativa dos Estados Unidos. A ineficácia das políticas neoliberais e o poder concentrado e centralizado das grandes corporações transnacionais apoderaram-se do Estado em grande parte dos países desenvolvidos e foram responsáveis pela adoção de políticas caracterizadas como socialismo dos ricos. Enquanto os trabalhadores pagam com o esvaziamento de seus rendimentos, a perda de empregos e a precarização das ocupações, os grandes grupos econômicos se ajustam com somas crescentes junto ao orçamento público, incapaz de recuperar a dinâmica produtiva, salvo a da indústria da financeirização da riqueza.
Simultaneamente, percebe-se o reaparecimento da multicentralidade geográfica mundial com um novo deslocamento do centro dinâmico da América (EUA) para a Ásia (China). Também países de grande dimensão geográfica e populacional voltaram a assumir maior responsabilidade no desenvolvimento mundial, como no caso da China, Brasil, Índia, Rússia e África do Sul, que já respondem atualmente pela metade da expansão econômica do planeta. São cada vez mais reconhecidos por países-baleia, que procuram exercer efeitos sistêmicos no entorno de suas regiões, fazendo avançar a integração suprarregional, como no caso do Mercosul e Asean, que se expandem com maior autonomia no âmbito das relações Sul-Sul.
Não sem motivos demandam reformulações na ordem econômica global (reestruturação do padrão monetário, exercício do comércio justo, novas alternativas tecnológicas, democratização do poder e sustentabilidade ambiental).
Uma nova divisão internacional do trabalho se vislumbra associada ao desenvolvimento das forças produtivas assentadas na agropecuária, mineração, indústria e construção civil nas economias-baleia. Também ganham importância as políticas de avanço do trabalho imaterial conectado com a forte expansão do setor de serviços. Essa inédita fase do desenvolvimento mundial tende a depender diretamente do vigor dos novos países que emergiram cada vez mais distantes dos pilares anteriormente hegemônicos do pensamento único (equilíbrio de poder nos Estados Unidos, sistema financeiro internacional intermediado pelo dólar e assentado nos derivativos, Estado mínimo e mercados desregulados), atualmente desacreditados.
Nestes termos, percebe-se que a reorganização mundial desde a crise global em 2008 vem se apoiando numa nova estrutura de funcionamento que exige coordenação e liderança mais ampliada. Os países-baleia podem contribuir muito para isso, tendo em vista que o tripé da nova expansão econômica global consiste na alteração da partilha do mundo derivada do policentrismo associado à plena revolução da base técnico-científica da produção e do padrão de consumo sustentável ambientalmente.
A conexão dessa totalidade nas transformações mundiais requer o resgate da cooperação e integração supranacional em novas bases. A começar pela superação da antiga divisão do trabalho entre países assentada na reprodução do passado (menor custo de bens e serviços associado ao reduzido conteúdo tecnológico e valor agregado dependente do uso de trabalho precário e da execução em longas jornadas sub-remuneradas). Com isso, o desenvolvimento poderia ser efetivamente global, evitando combinar a riqueza de alguns com a pobreza de outros.
As decisões políticas de hoje tomadas pelos países de grandes dimensões territoriais e populacionais podem asfaltar, inexoravelmente, o caminho do amanhã voltado à constituição de um novo padrão civilizatório global. Quem sabe faz acontecer, como se pode observar pelas iniciativas brasileiras recentes.
Todavia, elas ainda precisam ser crescentemente aprimoradas, avançando do enfrentamento dos problemas de ordem emergencial, como valorização cambial e elevada taxa de juros, que comprometem a competitividade, para as ações estratégicas que atuam sobre a nova divisão internacional do trabalho.
Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas e presidente da Fundação Perseu Abramo.
Artigo publicado originalmente no portal da Carta Maior em 11/6/2014