Esquerdismo, doença infantil do capitalismo
Por Fernando Nogueira da Costa
O best seller do momento na literatura econômica, Capital no século 21, do francês Thomas Piketty, motivou o debate sobre a desigualdade da riqueza. Antes de tomar conhecimento desse livro, em junho de 2013, publiquei o TDIE 221, “Medição de Riqueza Pessoal”, reconhecendo que houve, no Brasil, diminuição na desigualdade da renda do trabalho, porém não na desigualdade da riqueza. Tributação do patrimônio é algo fácil de pregar, mas politicamente difícil de aprovar e executar, inclusive porque o custo com fuga de capitais supera o benefício com pouco aumento da arrecadação!
É puro esquerdismo desprezar essa conquista social: em um governo com hegemonia de partido de origem trabalhista (PT), finalmente, o Índice de Gini, que revela a concentração da renda do trabalhado, caiu. Entretanto, oposicionistas inconsequentes, pois sempre serão “estilingues” e jamais se capacitarão a serem “vidraças”, menosprezam esse feito, dizendo coisas do seguinte tipo.
“Com raras exceções, essas políticas limitam-se a alterar a distribuição da renda na classe trabalhadora (salários, aposentadorias e benefícios), sem alterações substantivas na distribuição funcional da renda, que inclui, além do salário e das transferências, as rendas do capital (lucro, juro e aluguel)”. Na verdade, não há medições facilmente disponíveis sobre renda do trabalho e do capital: juros, aluguel e lucro. No agregado, a renda do trabalho pode até superar essas outras rendas, consideradas isoladamente.
Clovis Rossi (FSP, 29/04/14), diz que a tese do livro de Piketty, conforme o resumo feito por Paul Krugman, é: “mesmo aqueles que se dispunham a discutir a desigualdade se concentravam, em geral, na disparidade entre os pobres da classe trabalhadora e as pessoas prósperas, mas não mencionavam os verdadeiramente ricos. (…) O foco eram os formandos universitários cuja renda superava a de trabalhadores com nível mais baixo de educação, ou a sorte comparativa dos 20% mais prósperos da população ante os 80% menos afortunados, e não a rápida ascensão da renda dos executivos e banqueiros. (…) Portanto, foi uma revelação quando Piketty e colegas demonstraram que as rendas do hoje famoso 1%, e de grupos ainda mais estreitos, eram o mais importante na ascensão da desigualdade”.
As evidências empíricas demonstram que, no Brasil, caiu a desigualdade entre a renda dos salários, mas não entre a renda do capital e a do trabalho. A diferença na “renda do capital” é que os juros, diferentemente de dividendos e aluguéis, em geral são mantidos para capitalizar os saldos de aplicações financeiras. Estes contabilizam “o milagre dos juros compostos”, mensalmente, juros sobre juros.
Os indícios sobre a riqueza são escassos quase por definição: não há “marcação-a-mercado”, isto é, avaliação diária das variações dos valores de mercado dos ativos que constituem as diversas formas de manutenção de riquezas. Os ganhos de capital só são efetivados depois que se consegue vender o ativo, o que nem sempre é fácil.
Observe que imóveis produzem uma “ilusão de riqueza”: são sobrevalorizados, porém os preços efetivos geralmente são muito inferiores aos preços imaginados. Muitas vezes, o vendedor insiste em vender por um valor nominal que demora tanto tempo para arranjar comprador que, quando a venda ocorre, o valor real é muito inferior, principalmente considerando o custo de oportunidade de ganhar juros reais acima da taxa de inflação.
Justamente devido à ameaça de tributação se sonega muito as informações sobre riqueza. Nas DIRPF, os valores de imóveis e automóveis são históricos e não registrados em valores de mercado do fim do ano.
Também é esquerdismo oposicionista “denunciar” o governo federal por ter dedicado 5,72% do PIB brasileiro ao pagamento de juros de sua dívida. Considerar os investidores de fundo de varejo “detentores do capital”, portanto, “capitalistas” é risível! Os trabalhadores têm de se tornar “rentistas” para complementarem sua previdência durante os longos anos de vida inativa!
Quando se compara essa relação de 5,72% do PIB pagos em juros com o Bolsa Família, o programa de ajuda aos mais pobres, que consume apenas 0,4% do PIB, se faz apenas demagogia. Por exemplo: “para 13.330.714 famílias então cadastradas no Bolsa Família (PBF), ia 0,4% do PIB. Para um número infinitamente menor, mas cujo tamanho exato se desconhece, 13 vezes mais. Se isso é distribuição de renda, o é a favor do 1%” (Clovis Rossi, FSP, 29/04/14).
Primeiro, esse PBF não é programa de desconcentração de renda e muito menos de riqueza. É política social compensatória que busca erradicar a miséria, ou seja, propiciar comida aos que, antes do Governo Social-Desenvolvimentista, eram indigentes: não tinham renda nem para comer!
Segundo, eleição não é revolução. Uma economia capitalista não é revolucionada, simplesmente, por eleições democráticas periódicas. É demagogia eleitoreira cobrar de um governo democraticamente eleito que ele destrua o direito civil à propriedade privada e desrespeite os contratos em vigor. Os críticos não avaliam a consequência disso!
Uma economia de mercado depende de contratos — e de um aparelho jurídico e policial que os garanta — para diminuir a incerteza gerada por milhares de decisões descoordenadas, descentralizadas e desinformadas uma das outras. Sem contratos trabalhistas e com os fornecedores e credores, inclusive todos os contratos de dívida e aplicações financeiras, a ordem social neste tipo de sociedade seria inteiramente rompida.
Com governo de coalizão partidária, devido à fragmentação do Congresso em diversos partidos, a base governista pactuada não aprova nenhuma reforma tributária que aumente a carga de maneira acentuadamente progressiva, inclusive com elevação de impostos sobre o patrimônio. Em uma sociedade capitalista, os incentivos estão baseados no enriquecimento. Já que não se alcança a igualdade de resultados, resta ao governo de origem trabalhista buscar a implantação da igualdade de oportunidades.
Sem dúvida, isto o Governo Dilma está fazendo. As matrículas no Ensino Superior (Graduação, Sequencial e Pós-Graduação), que estavam na faixa de 3,5 milhões em 2002, atingiram 7.261.801 em 2012. Os ingressantes eram 1.431.089 em 2002 e passaram a ser 2.747.089 em 2012. E os concluintes, respectivamente, 467.972 e 1.050.413. De 2010 a 2013, foram 1,1 milhão de contratos com FIES (crédito estudantil) formalizados. Devido ao Pronatec, foram mais de 5,5 milhões de matrículas em cursos técnicos e de qualificação profissional registradas entre outubro de 2011 e novembro de 2013.
Então, se os esquerdistas não conseguem fazer uma revolução por falta de apoio popular, não devem ficar cobrando de governo trabalhista por ele, realista e pragmaticamente, não executar as pregações inconsequentes da oposição. A defesa dos direitos civis, políticos e sociais já conquistados (e a conquista de mais direitos econômicos) se faz, de maneira persistente e consistente, com respeito às regras da democracia e não com “golpe de Estado”.
Fernando Nogueira da Costa é professor livre-docente do IE-UNICAMP. Autor do livro Brasil dos Bancos (Edusp, 2012)
http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected]