República, Democracia e Planejamento Estratégico Governamental para o Brasil no Século XXI
Por José Celso Cardoso Jr.
Este artigo pretende ser o primeiro de uma série dedicada aos temas sugeridos pelo título. Dentro deste escopo, em sequencia a este artigo de hoje, caberão discussões específicas sobre: i) planejamento e finanças públicas para um ciclo longo de desenvolvimento nacional no século XXI; ii) finanças e políticas públicas desenvolvimentistas; iii) políticas públicas, monitoramento, avaliação e correção de rumos; iv) administração política e gestão pública no Brasil, com destaque a inovações jurídicas e institucionais para um sistema nacional de planejamento e orçamento condizente com os desafios do Estado no século XXI; v) gestão pública, controle burocrático e participação cidadã, com ênfase em inovações sócio-estatais para uma administração pública deliberativa neste século; vi) participação social e deliberação pública, sugerindo formas e elementos para a democratização da política e do próprio Estado nacional; e vii) república, democracia e desenvolvimento, em que elementos de planejamento participativo e administração pública deliberativa serão destacados para a construção política e social da nação no século XXI.
Trata-se, sabidamente, de uma plataforma política muito complexa e heterogênea, mas indispensável ao momento e contexto presentes do país. A razão para tanto reside, entre outros motivos, no fato de que os governos Lula e Dilma, embora tenham implementado (e também idealizado) uma série de mudanças organizacionais e operativas nos marcos de ação do Estado brasileiro, mormente em nível federal, o fizeram sem que para tanto houvesse, ao início dos respectivos governos, ou sido construído e explicitado ao longo dos mesmos, algum tipo de entendimento mínimo sobre os problemas cotidianos e estruturais de organização e funcionamento do Estado. Ainda mais num contexto de mudança de orientação da atuação estatal nos planos da economia, da sociedade, da política etc., esse diagnóstico atualizado, por assim se dizer, fez – e continua a fazer – muita falta aos altos escalões de governo, que precisaram agir segundo uma racionalidade premida por circunstâncias quase sempre desfavoráveis da conjuntura e, portanto, por um pragmatismo exacerbado em vários momentos e situações, o qual acabou por se transformar, talvez exagerando a dose desta interpretação, no método principal de governo (para fins de governabilidade e governança) da coalização petista a frente do poder executivo federal.
A afirmação precedente não implica dizer que certas inovações e mudanças organizacionais, normativas, regulatórias etc. não tenham sido benéficas para uma operacionalização cotidiana mais célere e qualificada do governo federal. Dentre estas, é de se destacar: i) a criação do RDC (regime diferenciado de contratação) para minimizar os problemas decorrentes sobretudo da Lei n. 8.666; ii) aperfeiçoamentos no Cadúnico (cadastro único dos beneficiários do bolsa-família), bem como no seu uso e gerenciamento das condicionalidades; iii) redução drástica das filas no INSS, por meio da modernização e informatização da estrutura e procedimentos da previdência social; iv) a criação e fortalecimento de órgãos e instâncias de governo voltados à promoção de direitos e de políticas inclusivas; v) inovações no planejamento governamental e seus instrumentos legais (PPA, LDO e LOA), bem como o ressurgimento de planos setoriais e territoriais/regionais de desenvolvimento; vi) o fortalecimento da CGU (Controladoria Geral da União), por meio do portal da transparência, ações de fiscalização e controle interno; vii) implementação da LAI (Lei de Acesso à Informação); viii) novos incentivos e mecanismos de participação da sociedade civil, dentre os quais se destacam as conferências nacionais, os conselhos de políticas públicas, as ouvidorias e audiências públicas; ix) aperfeiçoamentos do E-Gov: governo eletrônico, compras governamentais, gerenciamento e monitoramento de grandes empreendimentos inscritos no PAC etc.
Mas enfim, apenas se quer enfatizar o fato de que, tomadas hoje em conjunto, não sabemos ao certo em que direção tais inovações apontam, se conformam ou não algum tipo de reforma estruturante do Estado, e isso é particularmente importante de se identificar, pois ao menos no plano discursivo, havia (e continua havendo) claros intentos reformistas nas declarações políticas estratégicas do partido a frente da coalização presidencial a governar o país. Em particular, estando correto o entendimento segundo o qual cabe a esta coalização aprofundar conquistas econômicas, sociais e políticas recentes, fazendo avançar agendas de tipo desenvolvimentistas e civilizatórias século XXI adentro, então, torna-se absolutamente fundamental pensar e repensar a essência da economia nacional e da sociedade brasileira atual, com vistas a se redesenhar o Estado, suas capacidades e seus instrumentos, para uma atuação tanto mais eficiente como eficaz e efetiva, relativamente aos ainda grandes e graves problemas nacionais.
Com base na Figura abaixo, perguntamo-nos de que Estado estamos falando. Isto é, o Estado que opera o planejamento, não deve ser visto como um ser externo, coeso, harmônico, racional, suficiente etc. Muito pelo contrário, isso que de certa maneira se difundiu em algumas teorias, ou a partir de alguns livros-textos do passado, não encontra nenhuma dose de aderência à realidade. O que estou querendo dizer é que o Estado, em si mesmo, é um espaço de conflitos e disputas, muito mais do que um ator; é um espaço de relacionamentos muito complexos, e um espaço muito fragmentado. Em vários casos, é muito dinâmico, e um espaço de relacionamentos que coloca em questionamento a própria estrutura original que tínhamos e que segue em construção ao longo da sua história institucional.
Figura 1: O Estado como um Conjunto Complexo de Relacionamentos Dinâmicos.
Fonte: Elaboração livre do autor. Para um detalhamento adequado das dimensões e implicações dessa figura, ver Cardoso Jr., J. C. & Bercovici, G. (orgs.). República, Democracia e Desenvolvimento: contribuições ao Estado brasileiro contemporâneo. Brasília: IPEA, 2013.
Como resultado, tem-se, em realidade, um Estado com desenho institucional de tipo híbrido e atuação contraditória. Arranjo institucional híbrido, pois se combinam elementos patrimonialistas, meritocráticos, gerencialistas e societais, tanto nos diversos desenhos específicos de políticas públicas, como principalmente em seus respectivos modus operandi. A sobreposição de competências e de regimes jurídicos distintos, os vários “sistemas” setoriais de planejamento (política de saúde, de educação fundamental, de assistência social, etc.), a atuação das empresas estatais remanescentes (Petrobrás, BNDES, Banco do Brasil) e o fracasso das “agências”, isto sem entrarmos nas questões de desarticulação federativa, aguçaram os traços históricos relativos ao hibridismo institucional do Estado no Brasil, com uma atuação marcada muitas vezes pelo desperdício de recursos públicos e pela falta de diretrizes estratégicas de médio e longo prazos. A sua atuação cotidiana é bastante contraditória, pois ora se busca atender a diretrizes republicanas, democráticas e desenvolvimentistas de natureza estratégica mais geral, ora se vê capturado por interesses e decisões de caráter particularista, autoritário e imediatista.
O pragmatismo exacerbado (como método de governo) na condução cotidiana das ações governamentais está, ademais, preponderantemente focado no crescimento do PIB a qualquer custo, em detrimento de outras dimensões hoje tão ou mais importantes que a dimensão meramente econômica para um entendimento mais qualificado do desenvolvimento contemporâneo. Por pragmatismo exacerbado como método de governo entende-se aqui um padrão de gestão cotidiana da máquina pública movida à base do binômio “pendência X providência”, que embora possa parecer a única via (e aparecer como solução) de curto-prazo para a torrente de problemas supostamente emergenciais de governo, escancara contradições históricas da formação do Estado no Brasil, impondo fôlego curto aos resultados de uma gestão pública pretensamente de esquerda.
Em um Estado dotado de estrutura administrativa desestruturada neste grau, planejar tornou-se tarefa praticamente impossível. Mas Estado e Planejamento não são panaceia, são parte das soluções… Avançar, portanto, na explicitação e superação positiva desses problemas, é condição primordial para, de fato, se poder destravar o potencial intrínseco às capacidades estatais e aos instrumentos governamentais à disposição do Estado brasileiro contemporâneo, com vistas a uma ampla e estratégica atuação planejada rumo ao desenvolvimento nacional. É este o intuito maior dessa série de pequenos ensaios analíticos que ora se inicia.
José Celso Cardoso Jr. é doutor em Desenvolvimento pelo IE-Unicamp e Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA