Mudando paradigmas do Ensino Superior brasileiro: o dilema da Tripla Hélice, reflexões republicanas
Por Carlos Enrique Ruiz Ferreira
A universidade praticamente já perdeu seu caráter de instituição política graças ao avanço da mentalidade mercantil e pragmática que dispensa a formação ético-política e privilegia a informação e o treinamento para o mercado.
Franklin Leopoldo e Silva1
Em uma tarde quente de maio, em Natal, Rio Grande do Norte, escuto pela quarta ou quinta vez a expressão “tripla hélice”, feita por um gestor do Ministério de Ciência e Tecnologia. A expressão designa, no meio da educação superior no país – e fora dele –, a necessária interligação entre a academia, empresas e governo.2
Para além do conceito, o aforismo no cenário universitário data de algumas décadas mas soa um tanto estranho ao espíritos republicanos e àqueles formados nesta escola (como são os militantes dos partidos de esquerda). Soa insólito que dois ministérios fulcrais para educação superior nacional continuem perpetrando uma herança passada, um paradigma caduco. E não sejamos ingênuos: isto se traduz em política pública.
Mas qual é a grande crítica que se pode fazer da “tripla-hélice”? Reside simplesmente no fato de que uma das hélices seja “empresas” ao invés de ser “sociedade civil”. O significado da “tríplice hélice” – que é levada sob os braços dos gestores da Capes e CNPq em cada palestra num canto ou outro do país – carrega consigo um indecoro com outros segmentos sociais que compõe a sociedade brasileira. Por que privilegiar as empresas (capital privado) e não incluir outros setores sociais na aliança com a universidade e o governo? As ONGs, os movimentos sociais, o funcionalismo público, sindicatos, todas estas organizações ou segmentos da sociedade estariam excluídos da grande reunião da universidade com o governo? Por que? A que se deve esta exclusão?
Em primeiro lugar, é preciso ponderar que não há nenhuma objeção com relação às “empresas” em si. A polêmica não se reflete em nada contra as empresas; elas se constituem como organizações privadas – no sistema capitalista internacional e no sistema estatal brasileiro – perfeitamente legítimas e atuantes. Contém, ninguém pode negar, uma relevância estruturante para o status quo, a governabilidade, a economia, etc. Ou seja, o problema, mais do que óbvio, é que a universidade, assim como o governo, devem estar para a sociedade civil como um todo e não apenas para um segmento desta.
Na área das Ciências Humanas, por exemplo, a produção/formação de competências, inteligências, conhecimento e inovação encontra uma demanda muito mais significativa nos diversos organismos sociais e nos órgãos governamentais do que no setor privado/empresas. Não se deve menosprezar o papel das organizações não governamentais, das organizações sociais de interesse público, dos movimentos sociais – sejam eles da terra, sindicais, ambientais, das mulheres, dentre muitos outros – na sociedade como um todo.
Por outro lado, a pesquisa aplicada e a pesquisa de ponta – que aparecem principalmente nos programas de pós graduação do país – possuem como um de seus objetivos propiciar um exitoso Sistema Nacional de Educação, tendo em conta os níveis fundamental e médio. Parte considerável do trabalho da universidade é criar as bases para um sistema nacional educativo de qualidade. Destarte, mais uma vez: a universidade não forma só para as empresas, forma para a sociedade de um ponto de vista holístico e inclusivo.
Em suma, sugere-se aqui que uma das pontas da hélice deveria ser a “sociedade” e não as “empresas”. Portanto: universidade-governo-sociedade (sendo o conceito “empresas” incluso no conceito “sociedade”, por demais óbvio).
Na medida em que se isenta deste papel, de estar na e ser para a sociedade, a universidade não conseguiria formar quadros aptos, por exemplo, para o funcionalismo público federal no que tange aos ministérios citados. Aliás, eis um ponto que serve de reflexão para os desafios contemporâneos da “nova Tripla Hélice”: parece existir uma crescente demanda por gestores qualificados para atuar em diversas pastas federativas (que tenham uma perspectiva mais acurada sobre o papel da União e do republicanismo).
Logo, por essas e outras, a reflexão que fica é: de onde herdamos este dogma ou princípio da “tripla hélice”? O que isto representa e a quem interessa?
Ao que parece, boa parte dos gestores da educação superior do Brasil estão seguindo um paradigma bastante restritivo. Ainda não perceberam que os sujeitos que eram muitas vezes “invisíveis” (ou até mesmo criminalizados) passaram a ter voz e serem ouvidos; passaram a ser parte. A partir do primeiro mandato Lula no governo federal promoveu-se uma nova lógica: por exemplo, criou-se e impulsionou-se um novo paradigma de desenvolvimento. Agora, parte-se do princípio que o governo é para a sociedade como um todo e não apenas para o capital privado ou prioritariamente para este. Logo, as políticas públicas se fazem com a participação de todos os atores sociais envolvidos e para todos os atores envolvidos e não apenas para um segmento (portanto: legitimou-se aqueles setores da sociedade que eram antes calados ou esquecidos).
Assim, é preciso que o paradigma antigo e certamente restritivo da Tripla Hélice (universidade-governo-empresas) seja de uma vez substituído por um paradigma mais inclusivo e republicano no âmbito da educação superior brasileira: universidade-governo-sociedade. Dessa forma, estaríamos honrando os princípios e políticas de esquerda iniciados em 2003. Não foi fácil mudar o paradigma de desenvolvimento; que antes era afeito apenas aos grandes interesses do capital e não tinha o carácter social, republicano e inclusivo instaurado por Lula. De igual forma, não será simples efetuarmos uma “descolonização do pensamento” no âmbito da educação superior (neste caso na Tripla Hélice). Para isso, caberá aos partidos de esquerda e aos movimentos sociais lutar para que a diagnóstico de Franklin Leopoldo (epígrafe) seja interrompido em caráter de urgência e novos paradigmas de Educação Superior, como este que discutimos aqui, sejam alcançados.
Carlos Enrique Ruiz Ferreira é doutor pelo Departamento de Ciência Politica da Universidade de São Paulo, professor de Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba e membro do coletivo da Secretaria de Relações Internacionais do PT. Contato: [email protected]
Notas
1- Entrevista concedida ao Instituto de Humanidades da Unisinos. In: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/523295-a-universidade-e-o-divorcio-com-a-formacao-cidada-entrevista-especial-com-franklin-leopoldo-e-silva
2 – Segundo o Triple Helix Research Group da Stanford University a “tripla hélice” compreende, por exemplo, um maior envolvimento da Universidade na Inovação, a partir da relação com a Indústria e o Governo e uma maior inter-relação entre as três esferas de maneira que uma esfera “takes the role of the other”, ou seja, assuma o papel ou assuma a lógica uma da outra. Ver: http://triplehelix.stanford.edu/3helix_concept