por Philippe Scerb*

Entre os dias 15 e 18 de julho de 2013, a UFABC foi um espaço privilegiado de diálogo a respeito da política externa brasileira. O campus de São Bernardo do Campo da Universidade foi o palco escolhido para a realização da “Conferência Nacional: 2003-2013 Uma Nova Política Externa”. Iniciativa do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI), criado em 2012 e composto por intelectuais, pesquisadores, ativistas políticos, movimentos,  representantes da sociedade civil e quadros de diversos ministérios, a conferência constituiu um dos primeiros passos na direção do objetivo essencial do Grupo: a democratização da política exterior do Brasil.

Aliada à avaliação de que a política externa foi, ao longo da história nacional, controlada exclusivamente pelas elites econômicas e políticas do país, os atores envolvidos na organização do evento, assim como a grande parte de seus participantes, compartilha uma avaliação globalmente positiva a respeito da atuação externa do Brasil a partir de 2003. Segundo essa avaliação, objeto de considerável consenso, a política externa brasileira rompeu com paradigmas fortemente  consolidados nas esferas de poder, principalmente a partir do fim da guerra fria. A caracterização da política externa como “altiva e ativa” pelo ex-chanceler e atual Ministro da Defesa, Celso Amorim, contempla alguns elementos de ruptura apresentados pela política exterior inaugurada em 2003. Dentre eles costuma-se evocar, sobretudo, a priorização da agenda de integração regional sul-americana, a diversificação das relações diplomáticas e comerciais através de uma ênfase nas relações Sul-Sul – ilustrada pela aproximação com o continente africano e com potências emergentes do Sul global, e uma posição mais assertiva quanto à necessidade de reformulação das instituições de governança global que não mais representam a ordem política e econômica internacional.

No entanto, apesar dessa avaliação globalmente positiva que se faz da política externa dos governos Lula e Dilma, entende-se que a política internacional do Brasil deve ser objeto de uma maior abertura à sociedade civil e aos anseios de grupos historicamente excluídos do processo decisório. Analistas e intelectuais consideram que a imagem da política externa como política de Estado, amplamente fundamentada na conservadora teoria realista das relações internacionais e, portanto, descolada dos fenômenos políticos domésticos já foi desconstruída na academia e, inclusive, na sociedade. Tal entendimento se dá em detrimento da resistência a essa concepção democrática de política externa e das críticas à sua condução a partir de 2003 por parte de setores ligados à oposição, notadamente dos grandes meios de comunicação nacionais. Nesse sentido, variados segmentos da sociedade civil organizada, movimentos sociais, partidos políticos progressistas e intelectuais acreditam que a política externa deve ser objeto de maior abertura e diálogo. A ausência de um canal institucional de comunicação entre a sociedade e os tomadores de decisão é, de tal forma, um fator de extrema relevância para os avanços que se fazem necessários em matéria de política externa. Acredita-se que o diálogo entre governo e sociedade deve ser constante e institucionalizado, a exemplo de outras experiências exitosas articuladas pelo Governo Federal a partir de 2003.

A “Conferência Nacional: 2003-2013 Uma Nova Política Externa” constituiu, portanto, um passo fundamental nesse processo de democratização de uma política externa a serviço do desenvolvimento econômico e social. Ao promover o debate entre atores ligados ao processo decisório e pesquisadores, intelectuais, organizações da sociedade civil e movimentos sociais, a política externa aproxima-se da sociedade e, assim, de seus anseios. Quanto mais abertos os canais de acesso aos tomadores de decisão, mais democrática e, portanto, legítima a política adotada.

Finalmente, as diversas perspectivas apresentadas em relação à condução da política exterior brasileira ao longo dos intensos quatro dias de diálogo, na UFABC, são de fundamental importância para a qualidade da democracia. A Conferência não apenas abriu o diálogo a respeito do que por muitos anos foi visto como a caixa preta da política nacional, como também aprofundou a necessidade de prestação de contas por parte dos atores estatais envolvidos nessa esfera. O consenso em torno da necessária democratização da política externa deveria, necessariamente, passar por um espaço de diálogo franco e aberto. E foi o que ocorreu, entre 15 e 18 de julho, em São Bernardo do Campo.

Segue um relato do que foi exposto durante a sessão de abertura, as conferências, os painéis, três das treze mesas simultâneas oferecidas no dia 17 e a sessão de encerramento. A riqueza dos debates mereceria um texto maior, porém nesse espaço buscou-se destacar os principais eixos da argumentação dos expositores.

Sessão de Abertura
A sessão de abertura da Conferência foi realizada no auditório San Tiago Dantas, às 19 horas do dia 15 de julho. A solenidade contou com a presença do Prof. Dr. Hélio Waldmann, reitor da Universidade Federal do ABC, de Luiz Marinho, presidente do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC e prefeito de São Bernardo do Campo e de Iole Ilíada Lopes, vice-presidenta da Fundação Perseu Abramo (FPA), representando o GR-RI.

Primeira a se pronunciar, Iole evocou a pluralidade de visões presente no GR-RI e exaltou “convergências importantes”. Dentre elas, a convicção de que a política externa brasileira deve ter três objetivos principais: contribuir para o desenvolvimento e a democratização do país; trabalhar sempre visando uma inserção do Brasil no mundo; e constituir instrumento para a construção de uma ordem internacional pautada na paz, na justiça e na democracia. Dentre as convergências na análise dos membros do GR-RI, a diretora da Fundação Perseu Abramo insistiu na mudança significativa da política externa brasileira desde 2003, observada em três aspectos principais: a busca por maior autonomia e protagonismo do país; a diversificação das relações do país no mundo, sobretudo através das relações Sul-Sul; e a centralidade estratégica conferida à questão da integração latino-americana.

Iole ainda enfatizou a avaliação globalmente positiva que os integrantes do grupo de reflexão fazem dos últimos dez anos de política externa, porém ressaltando a necessidade de se fazer mais. Segundo ela, “as questões serão melhor enfrentadas se debatidas e se obtiverem apoio e legitimidade perante a sociedade brasileira”. A função do GR-RI seria, portanto, disseminar uma análise mais profunda a respeito da política internacional, apresentando uma alternativa progressista à visão propagada pelos setores conservadores da sociedade com a ajuda dos grandes meios de comunicação. Nesse mesmo sentido, o grupo pretende promover a articulação e o diálogo entre atores sociais, assim como entre a sociedade civil e o governo. Enfim, espera-se que os elementos de consulta da sociedade sejam institucionalizados de forma a promover uma agenda progressista no âmbito da política externa.

De acordo com os membros do GR-RI, a política externa é uma política pública fundamental e não deve continuar sendo tratada como assunto de Estado. A ampliação da consulta popular – marca dos últimos dez anos do Governo Federal – deve se estender à política externa. O GR-RI propõe, portanto, a criação de um Fórum de consulta, que facilitará o acesso da sociedade civil à formulação da política exterior e dará maior credibilidade e força à política externa internacionalmente. E justamente a partir da necessidade de trazer o debate para um público mais amplo, o GR-RI tomou a iniciativa da organização de tal conferência. O que se deu conforme três preocupações principais: que o balanço não se restrinja a um olhar do passado, mas que contemple dilemas do presente e obstáculos do futuro; que o debate seja multidisciplinar, uma vez que a política externa é multifacetada; e que cada painel reúna um representante do governo, um da academia e um da sociedade civil.

Luiz Marinho, por sua vez, dedicou sua fala ao tema que, segundo ele, é de essencial importância para a paz: a internet. O prefeito de São Bernardo do Campo se referiu à revelação do esquema de espionagem realizado pelo governo dos EUA e revelado pelo agente da CIA, Edward Snowden, para apontar o que segundo ele é um grande risco de tirania. Em oposição à liberdade representada pela internet, ela estaria se configurando um “trilho em direção ao retrocesso”.

Argumentando que a internet não pode se tornar um instrumento de opressão sobre a população e que hoje ela representa um sério desequilíbrio no cenário internacional – refletido pela concentração dos bancos de dados no hemisfério norte, Marinho sugeriu que busquemos caminhos para incluir a internet na agenda internacional de forma a garantir a proteção de cidadãos e empresas.

Finalmente, o Prof. Dr. Hélio Waldmann exaltou a honra da UFABC em receber um evento de tal magnitude e importância. Ele reiterou a relevância dos temas internacionais e o engajamento da Universidade ao criar, recentemente, o curso de Relações Internacionais. A apresentação do professor foi elaborada em torno do conceito de protagonismo. Segundo ele, o Brasil tem, ao longo do último século, buscado um novo patamar de independência. A política externa seria, então, essencial, pois é o “instrumento pelo qual a nação se projeta sobre o mundo”. Enquanto a ordem internacional legada do século XX foi construída por outras nações, sua reformulação deve ser baseada na multipolaridade. Porém, Waldmann ponderou que se a política externa é um instrumento essencial para esse protagonismo brasileiro, ela não é suficiente. De acordo com ele, ela deve ser “respaldada em uma capacitação cientifica e tecnológica” a ser construída pelas universidades, assim como pela educação básica.

Conferência: Próximos anos: cenários e desafios da Política Externa Brasileira
Após a sessão de abertura, coube ao Embaixador Antonio Patriota, ministro das Relações Exteriores, dar prosseguimento aos trabalhos. Na conferência coordenada pelo presidente da Fundação Perseu Abramo, Marcio Pochmann, o ministro fez um balanço das inovações representadas pela política externa brasileira do Governo Lula seguido de uma análise da posição do Brasil no cenário internacional atual e de suas perspectivas para o futuro.

Segundo Patriota, a reunião entre representantes de Brasil, Índia e África do Sul, realizada dez dias após a inauguração do novo governo, em 2003, e que daria origem ao IBAS, é expressão máxima da criatividade que marca a política externa brasileira desde então. O ministro reconhece a validade analítica da denominação “altiva e ativa” dada por Celso Amorim, porém destaca o valor fundamental da criatividade da diplomacia brasileira para incluir novos temas à agenda internacional. Exemplos marcantes desse movimento foram a elevação do combate à fome e à pobreza nas instâncias da ONU e a criação do G20 comercial, em Cancun, em 2003. Afinal, a reconfiguração de poder material e imaterial da ordem internacional não transfere benefícios e responsabilidades aos emergentes se eles não tomam atitudes concretas nesse sentido. Foi exatamente o que o Brasil passou a fazer a partir de 2003.

O chanceler também afirmou que a diplomacia brasileira tendia a “privilegiar o comercial, o econômico e o financeiro”. Quotas no FMI e a diretoria da OMC seriam temas de absoluta relevância para o Itamaraty durante os anos 90, ao passo que posicionamentos a respeito da segurança internacional e da reforma do Conselho de Segurança não deveriam ocupar o centro das preocupações. Para Patriota, no entanto, tal posicionamento configurava um grande equívoco, pois “só no momento em que nos dedicamos a toda orquestra é que elevamos nosso perfil no próprio tema da economia, das finanças”. O G20 comercial, por exemplo, só encontrou base de sustentação política a partir da construção e do IBAS.

O discurso de posse como ministro das Relações Exteriores proferido por Patriota, em 2011, fora marcado pelo elemento da continuidade. Na ocasião ele afirmou “orientaremos a ação externa do Brasil preservando as conquistas dos últimos anos e construindo sobre a base sólida das realizações do Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva” ressaltando o compromisso com “um Estado que se coloca cada vez mais a serviço da sociedade como um todo, e dos menos favorecidos em primeiro lugar.” A respeito, portanto, de comentários públicos que questionam a continuidade da diplomacia brasileira em relação àquela do Governo Lula, o ministro reafirmou que não há ruptura ou interrupção ao movimento anterior, mas a ampliação, o aprofundamento e a consolidação do processo. Ele exaltou, notadamente, o plano regional com a adesão da Venezuela como membro pleno e a próxima inclusão da Bolívia ao Mercosul, assim como a consolidação da União de Nações Sul-Americanas/UNASUL e a institucionalização da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos/CELAC.

De acordo com Patriota, hoje não há tema de relevância internacional debatido em órgãos multilaterais em que as impressões digitais do Brasil não sejam muito visíveis. Ele referiu-se à célebre expressão de Araujo Castro à época da elaboração do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares/ TNP de que observávamos um congelamento do poder, para afirmar justamente o contrário. Estaríamos, então, vivendo um processo de descongelamento parcial do poder, do qual devemos nos aproveitar para construir uma ordem de cooperação e não de confrontação. Segundo o ministro, os desafios são, porém, consideráveis, como o exercício do poder de forma unilateral por parte de potências estabelecidas e, inclusive, por países pequenos. É o caso de Israel, que desrespeita o direito internacional ao construir assentamentos em território palestino.

O Brasil, no entanto, não se satisfaz em denunciar os abusos e a condenar injustiças. Desde 2003, a diplomacia brasileira oferece caminhos. E o exemplo escolhido por Patriota é a posição do Brasil na votação da resolução 1971 do Conselho de Segurança, na qual o país evocou a responsabilidade ao proteger, sugerindo que quem intervém não pode piorar a situação.

Finalmente, o chanceler lembrou a experiência, segundo ele positiva, da relação entre o governo e a sociedade civil durante a realização da Rio+20, para anunciar que antes do fim do ano proporá à presidenta Dilma a criação de um foro permanente de diálogo voltado para a política externa. Nesse ponto, Patriota se antecipou à posterior intervenção de Artur Henrique, presidente do Instituto de Cooperação da Central Única dos Trabalhadores/CUT, Maria Regina Soares de Lima, professora do IESP/UERJ, e de Ricardo Alemão Abreu, presidente do Conselho Curador da Fundação Marício Grabois, em nome do GR-RI. Eles endereçaram um documento aos ministros Patriota e Gilberto Carvalho e a Marco Aurélio Garcia, chefe da Assessoria Especial da Presidenta da República, que propõe a criação de um conselho permanente de consulta sobre política externa. De acordo com o documento, as conferências nacionais têm sido um destaque dos governos do PT e o mesmo deveria ser aplicado a esse âmbito tão importante da política nacional. O GR-RI, através da carta, afirma que a política externa deve contribuir para reduzir as assimetrias entre países, contribuir para a democratização do Estado e que ela é uma política pública, devendo, portanto estar sujeita a iniciativas de transparência e de disponibilização de informações por parte do Estado. Tal mecanismo de participação deveria igualmente garantir que distintas visões e interesses sejam representados, pela atuação equilibrada de governos, empresários, trabalhadores, movimentos sociais e academia. O chanceler então pediu a palavra para garantir que o Itamaraty está comprometido com a criação de um fórum de diálogo consultivo para a política externa.

Painel 1: 2003-2013 – O Brasil frente aos grandes desafios globais
O segundo dia de Conferência foi aberto por uma mesa composta pelo Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos entre 2009 e 2010 e secretário Geral do Itamaraty entre 2003 e 2009, Paulo Fagundes Vizentini, coordenador do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais da UFRGS e por Pedro Bocca, Secretário de Relações Internacionais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra/MST. Apesar de os oradores compartilharem uma avaliação positiva dos últimos dez anos de política externa, eles apresentaram preocupações variadas a respeito dos desafios que se apresentam ao Brasil nos dias de hoje.

Samuel Pinheiro Guimarães organizou sua exposição de forma muito objetiva. O ex-secretário geral do Itamaraty discorreu sobre os desafios globais do Brasil distribuindo-os em cinco categorias: de natureza econômica; de natureza política; de natureza militar, ligados à espionagem e à ação encoberta; e de natureza ambiental.

Concernente aos desafios econômicos, o embaixador concentrou suas atenções nos impactos da crise internacional sobre a política econômica interna. Se em 2008 apontava-se o neoliberalismo e a desregulamentação dos mercados como grandes causas dos distúrbios econômicos, hoje essa acusação não encontra ressonância em considerável parcela do debate público. De tal forma, o modelo de enfrentamento da crise que prega a austeridade como a melhor saída ganha força em meio a um acirrado debate ideológico. Aliado a esse desafio de ordem político-econômico, o Brasil vê sua indústria ameaçada pela emergência da China como centro de produção global. A crescente demanda por produtos primários ao longo da última década orientou investimentos para essa área em detrimento de setores produtivos com maior representatividade no mercado de trabalho.

Quanto aos desafios de natureza política, Samuel se ateve, principalmente, à formação dos grandes blocos internacionais. Segundo ele, a agenda internacional é construída a partir de concertos, mais ou menos excludentes. A Aliança do Pacífico foi lembrada pelo embaixador como um desafio relativo para blocos como o Mercosul e a UNASUL. Ademais, a reforma do Conselho de Segurança da ONU seria um desafio permanente da diplomacia brasileira e, nesse cenário, coalizões como o BRICS e o IBAS poderiam desempenhar papel fundamental na defesa de posições brasileiras. Militarmente, o fenômeno que mais deveria preocupar o Brasil é a expansão incessante da OTAN, que se torna “cada vez mais um mecanismo de intervenção militar em qualquer lugar do mundo”, a exemplo da mudança de regime ocorrida na Líbia e respaldada pela Responsabilidade de Proteger.

Em referência explícita aos recentes casos de espionagem realizados pelo governo norte-americano, Samuel Pinheiro acrescentou à sua lista de desafios a espionagem e a ação encoberta. Segundo ele, a atualidade é marcada pela relevância estratégica do desenvolvimento tecnológico e a participação da indústria. Um instrumento chave nesse contexto seria o poder de financiamento do Estado brasileiro através do BNDES. Enfim, os desafios ambientais não poderiam ser ignorados. O seu elemento transnacional representa grande parte de sua complexidade, para o embaixador, e explica, em parte, o fato de o meio-ambiente ter deixado um pouco a pauta de negociações.

O professor Paulo Fagundes Vizentini, por sua vez, não demonstrou esforços para esconder seu alto grau de preocupação com as conjunturas internacional e doméstica. Segundo ele, muitos analistas se equivocam ao pensar que os tempos de hoje são tranquilos. A produção acadêmica, inclusive, seria grande responsável por não auxiliar na compreensão de fenômenos cruciais, como a emergência da China. A evolução das relações Sul-Sul seria outro fator ignorado pelos analistas.

O professor utilizou como ilustração dos desafios a percepção relativamente generalizada de alguma descontinuidade em relação à política externa entre os governos Lula e Dilma. Segundo ele, não se deve atribuir isso a diferenças de personalidades no núcleo dirigente ou à forma de trabalhar, mas a problemas de maior grandeza. Dentre eles poderíamos evocar a maior repercussão da crise econômica, uma maior reação por parte de potências, principalmente os EUA, em relação à maior margem de manobra que países como o Brasil haviam desfrutado na gestão Bush, e o recrudescimento da resistência das elites conservadoras nacionais. Referindo-se a José Honório Rodrigues, Vizentini usou a imagem da elite a quem “interessa mais que o país fique na segunda divisão desde que eles continuem como capitão do time”, para enfatizar o risco representado pela falta de politização da sociedade brasileira.

Como mais um indício de que a política externa e a política doméstica não estão apartadas uma da outra, e de que a política externa deve ser entendida como política pública, o professor da UFRGS dedicou grande parte de sua fala aos atores políticos nacionais. De acordo com ele, os setores conservadores da sociedade, críticos à “nova política externa”, não ficaram parados. “Novos discursos, que levam em outra direção, foram engendrados, embora isso não aparente”. E esse, talvez, seja o maior desafio para o país na atualidade, pois, nas palavras do professor, a política externa inaugurada em 2003 é “pré-condição para sairmos do estado em que nos encontramos”.

Por fim, Pedro Bocca expôs a perspectiva dos movimentos sociais sobre os desafios aos quais a política externa brasileira deve fazer face. Segundo ele, no momento da eleição de Lula, em 2002, os movimentos sociais estavam plenamente voltados para a política internacional. Porém, a partir do momento em que o PT assumiu o governo, observou-se um afastamento, por parte desses movimentos, da pauta ligada à política internacional. Os motivos para tal distanciamento são amplos e variados, mas certamente não representam um pleno apoio dos movimentos da sociedade civil à condução da política exterior. Ou seja, apesar de que um elemento progressista seja reconhecido na política externa desde 2003, os movimentos, dentre os quais o MST, veem significativos elementos contraditórios. Os pontos mais contestados são a contínua presença de tropas brasileiras no Haiti e o fato de o Brasil seguir negociando tratados e acordos com Israel.

No entanto, a maior reivindicação dos movimentos sociais, segundo o secretário do MST, é a lógica predominante que enxerga o Estado como único e exclusivo ator em matéria de política externa. Não obstante elogios à política externa altiva e ativa dos últimos dez anos, a sociedade civil demanda condições de participação no processo de mudança, o que inclui a política exterior. O fato de os movimentos sociais terem criado suas próprias secretarias de Relações Internacionais demonstraria sua vontade de participação além das esferas governamentais. Bocca concluiu sua participação afirmando que os movimentos sociais reivindicam “uma política externa que, além de altiva e ativa, seja também popular”.

Painel 2: 2003-2013 – Avanços, impasses e desafios da integração
O segundo painel do dia teve como tema norteador do debate a integração regional. A mesa foi composta por Maria Regina Soares de Lima, reconhecida professora de Ciência Política e Relações Internacionais da UERJ, Marco Aurélio Garcia, assessor-chefe da Assessoria Especial da Presidência da República desde 2003, e Valter Pomar, secretário executivo do Foro de São Paulo e membro do Diretório Nacional do PT. Consenso entre os três o fato de a integração ter ocupado posição central na política externa brasileira desde 2003, cada um se debruçou sobre aspectos e desafios distintos desse processo político regional.

Maria Regina Soares de Lima concentrou suas atenções em desconstruir o argumento difundido em setores da mídia e da academia de que a política sul-americana do Brasil, desde 2003, constituiria uma continuidade em relação à gestão anterior. A professora expôs, então, quatro aspectos representativos da inovação dessa política. O primeiro deles trata da própria concepção de região. Enquanto o Mercosul fora totalmente comercializado nos anos 90, em contexto de hegemonia neoliberal, a política externa do Governo Lula reconduziu o sentido da integração, tornando-o um projeto de cunho também político e social. O segundo aspecto da inovação foi o reconhecimento explícito das assimetrias estruturais. Expressão máxima de tal prática é a construção do Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul/ FOCEM, com 90% dos recursos aportados pelo Brasil. O terceiro novo elemento é a evidente crença na interdependência entre a prosperidade dos países da região, ou seja, “não podemos crescer se a região não crescer junto”. Finalmente, a última faceta da inovação é o objetivo de construção de capacidades para a constituição de um polo de poder regional, em um contexto de transformação da ordem global.

Referindo-se aos desafios à integração, Maria Regina tratou do tema que mais lhe chama a atenção: o Brasil como poder regional. Para a análise dessa afirmativa, a professora propôs quatro características daquilo que se entende por poder regional. São elas o poder material; a ideia de que o poder regional deve demonstrar vontade de guiar a região; o conhecimento dos vizinhos; e a dimensão da liderança. Com nuances, mais ou menos acentuadas, Maria Regina conclui que o Brasil possui elementos que lhe qualificam como poder regional e outros que fazem o contrário. Daí decorre o principal desafio à integração segundo a professora: “a concepção de integração regional dada pelos últimos dez anos de política externa não é hegemônica na sociedade”. O maior desafio para a integração estaria localizado na própria sociedade civil brasileira, como mais um indício da necessidade de democratização da política externa, entendida como política pública.

Marco Aurélio Garcia, por sua vez, iniciou sua fala desmistificando o caráter consensual da política externa. Aproximando valores e ideias da política exterior atual com aqueles da Política Externa Independente, ele procurou demonstrar que a política externa está intrinsicamente ligada à política doméstica. A política externa, portanto, sempre dividiu, “e é bom, porque a divisão faz parte de uma sociedade democrática”.

Concernente à integração regional, Marco Aurélio não mediu palavras para dizer que a política externa brasileira está impregnada, desde 2003, por uma opção sul-americana. Porém, os desafios iniciais eram consideráveis, pois, de acordo com o que dissera Maria Regina, a concepção de integração que se pretendia implementar era diferente daquela que havia caminhado durantes os anos 90.  A deriva neoliberal pela qual passara o Mercosul fora arduamente recuperada a partir da concentração dos esforços em uma outra direção de integração – que hoje beneficia da admissão da Venezuela como membro pleno, as propostas para inclusão plena de Bolívia e Equador e o fato de que todos os países sul-americanos sejam, ao menos, associados ao bloco. Nesse sentido, buscou-se o estabelecimento de outros critérios para o processo de integração, expresso notadamente pela criação da UNASUL. Papel fundamental teve também o reconhecimento do enorme potencial físico, comercial e, agora, econômico da região, a partir das transformações promovidas pelas políticas sociais e a passagem de milhões de pessoas da marginalidade para o mercado consumidor. Aliado a isso, um contexto diferente dos anos 70 ou 80 em que todos os países da região gozam de um sistema político democrático, com eleições limpas e regulares. Não por acaso, segundo Marco Aurélio, realizou-se, por iniciativa do governo brasileiro, a primeira reunião entre países latino-americanos e caribenhos da história, que deu origem à CELAC.

Enfim, os objetivos gerais da integração, entendido como uma reestruturação dos rumos desse processo, foram atingidos. E isso foi possível, apesar de elementos inconclusos e muitos avanços por fazer, pois todos os governos aderiram ao movimento, inclusive aqueles com posicionamentos político-ideológicos distantes da maioria. Nesse quadro, pode-se observar que um dos grandes desafios à integração, de acordo com Marco Aurélio, é que “a firmeza dos princípios possa ser combinada com uma flexibilidade na sua implementação”. Em outras palavras, que todas essas instituições, criadas ou reconfiguradas, continuem atuando de forma relevante no cenário regional no longo prazo.
Valter Pomar, por fim, abordou o tema do debate a partir do ponto de visa do Foro de São Paulo. Exaltando as transformações observadas na região desde a fundação do Foro, quando nenhum país da região, além de Cuba, era governado pela esquerda e o neoliberalismo ditava as práticas políticas indiscriminadamente, Valter apontou os riscos para a tentativa dos EUA de reverter o seu declínio relativo. Segundo ele, a atuação crescente dos EUA na região acentua o conflito entre duas formas de integração: subordinada ou autônoma. A última encontra suas expressões na UNASUL, CELAC, Aliança Bolivariana para as Américas/ALBA e a na reformulação do Mercosul e aumenta a soberania da região ao reverter lógicas de ingerência.

O Foro de São Paulo, segundo Valter, reconhece o papel positivo desempenhado pelo Brasil desde 2003 na construção de uma integração política, econômica e cultural na região. Não obstante, alguns setores do Foro consideram que, ao se colocar como uma potência à parte da região – como um BRICS – o Brasil se descola da América Latina e do Caribe. Além do mais, espera-se uma atuação ainda mais relevante do Brasil no plano regional. Críticas de que o país teria um comportamento sub-imperialista decorrem justamente, de acordo com Valter, da falta de ação do governo brasileiro em relação às empresas nacionais que atuam além das fronteiras.

Finalmente, o Secretário Executivo do Foro de São Paulo relatou uma impressão de queda do perfil da política externa a partir de 2011. Ele não atribuiu essa inflexão à personalidade da presidente Dilma ou do ministro Patriota, mas a uma mudança no ambiente interno com “a posição do empresariado de não mais contribuir ao desenvolvimento”, numa clara mudança de postura, e do ambiente externo, com o endurecimento da crise do capitalismo. Os desafios à integração estão, de tal forma, diretamente ligados a esse processo de contra ofensiva da direita regional em um ambiente muito mais conflitivo. “A solução, no ponto de vista do Foro de São Paulo, seria então de aprofundar o processo de integração”.

Painel 3: 2003-2013 – A Política Externa Brasileira e a crise internacional
O painel 3 reuniu economistas para tratar do posicionamento internacional do Brasil em relação à crise econômica que afeta o globo desde 2008. Com problemas de saúde na família, o professor Luiz Gonzaga Belluzzo não pôde comparecer e, portanto, a mesa foi formada por Adhemar Mineiro, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) e por Luiz Eduardo Melin de Carvalho e Silva, diretor da Área Internacional e de Comércio Exterior do BNDES. A mesa foi coordenada pela presidenta da UNE, Virgínia Alves.

As análises de ambos os oradores foram marcadas por uma ampla concordância no que se refere aos motivos e o caráter da crise, assim como ao modelo político-econômico ideal a ser adotado pelo conjunto da comunidade internacional. Provocada pela sobreposição da lógica das finanças nos EUA em relação ao funcionamento da economia, a crise representou uma disfuncionalidade econômica cujos impactos foram sentidos na produção e, portanto, no mercado de trabalho. A desregulamentação do sistema financeiro e o próprio modelo neoliberal foram imediatamente apontados como os responsáveis pela crise, inclusive nos documentos produzidos pelo G20 financeiro, em 2008 e 2009. Relacionava-se a crise, explicitamente, ao esgotamento do padrão anterior e propunham-se iniciativas para a supervisão e regulação do mercado por parte do setor público. Até então, políticas econômicas anticíclicas eram objetos de consenso. Porém, como afirmou Adhemar, a partir de 2010, receitas antigas de austeridade voltaram a ocupar o centro do debate público e o receituário proposto pelas instituições internacionais.

A reação interna imediata à crise, assumida pelo governo brasileiro, foi elogiada por ambos os economistas. Segundo Adhemar, a resposta à crise foi o momento mais criativo da política econômica, marcada por idas e vindas, do governo Lula. Reação essa que foi também digna de elogios por parte de Melin. Ele considera que, afetado em um momento em que se preparava para estimular o crescimento, o Brasil dobrou, acertadamente, a aposta de investimentos em infraestrutura para atender ao aumento do consumo interno, que por sua vez era reforçado por políticas de valorização real do salário mínimo.

No plano internacional, as análises dos oradores são, porém, consideravelmente discordantes. O economista do DIEESE avalia que, sobretudo a partir de 2010, o Brasil não ocupou o espaço de criatividade que se abria no cenário externo. Segundo Adhemar, na reunião do G20, no México, o governo brasileiro foi inativo ao aceitar um “reenquadramento das políticas econômicas num sentido liberal”. Crítica essa que se confunde com a ambiguidade que o economista aponta na política macroeconômica dos últimos governos – manutenção de juros altos com expansão do crédito popular; manutenção de tributação regressiva com distribuição de renda, entre outras. Já Luiz Eduardo avalia positivamente a reação internacional do Brasil em relação à crise. Segundo ele, o Brasil “procurou fazer ouvir a voz do crescimento, contra a austeridade e a ortodoxia” nas reuniões do G20. O Brasil teria também reforçado as iniciativas de integração regional, expresso no avanço de projetos para a criação do Banco do Sul e para a utilização de moedas locais nas transações comerciais, assim como na criação do Conselho de Economia e Finanças da UNASUL. Além do mais, intensificou-se a campanha por maior poder de voto no FMI. O economista do BNDES afirmou que o país, através de sua política externa, propôs ideias voltadas para o desenvolvimento e que, portanto, “durante a crise, o país segue apoiando-se na prosperidade”.

Respondendo às perguntas realizadas pelos participantes do painel e também por internautas que acompanhavam o evento pela internet, Adhemar Mineiro assegurou que o processo de integração regional pode dinamizar o mercado interno das economias que o compõem e, portanto, ajudar com que o consumo doméstico continue sendo motor de crescimento no Brasil. Luiz Eduardo Melin, respondendo a uma questão sobre a suposta prática de sub-imperialismo do Brasil na região, afirmou que há demandas nesses países por presença e investimentos brasileiros. Ele ponderou, porém, que é de crucial importância que as empresas brasileiras respeitem as prioridades de cada país. Para ele, é clara a percepção, em países do Sul, de que com o Brasil é possível ter uma relação cooperativa, diferentemente do que ocorre com países do centro do capitalismo.

Conferência: 2003 – início de uma Política Externa “altiva e ativa”?
A Conferência, protagonizada pelo embaixador e atual ministro da Defesa Celso Amorim, foi coordenada por Vitor Marchetti, coordenador do curso de políticas públicas da UFABC. Ao abrir o evento, o professor aproveitou para ressaltar a importância de a política externa ser enxergada pela lógica da política pública, trazida à arena política e sujeita ao diálogo com o parlamento e a sociedade. Essa é, segundo ele, a grande mudança promovida por esses dez anos de política externa, em oposição a uma “política externa insulada burocraticamente no Itamaraty e pouco responsiva às demandas dos atores políticos e sociais”.

O chanceler durante o governo Lula, por sua vez, achou por bem iniciar sua intervenção explicando a qualificação da política externa de altiva e ativa. Denominação essa que lhe veio à mente em um momento em que tinha de definir, em poucas palavras, quais seriam as diferenças da política externa em relação aos governos anteriores. Altiva, pois “não deveríamos nos submeter a outras potências mais poderosas, deveríamos expor e lutar pelos nossos pontos de vista”. E ativa porque a política externa “não se resumiria a ficar reagindo diante de situações, mas promoveria assuntos, agendas novas”. Tal ideia se contrapunha a uma visão “domesticada e auto-domesticável” da política externa de que o Brasil não deveria ter um papel protagônico.

Segundo o ministro, em política externa se pode, simplesmente, reagir à agenda dada ou então influenciá-la. Quando se reage, pode-se fazê-lo de forma submissa ou então de maneira firme, assumindo interesses. Mas além de fazer isso, a maior diferença da política externa brasileira a partir de 2003, de acordo com o embaixador, foi de contribuir para uma nova ordem política internacional. Como dissera o então presidente Lula, “nós sim tínhamos a pretensão de reagir positivamente à agenda, como também de contribuir para criar uma nova agenda internacional”.
Para ilustrar tal ruptura na condução da política exterior, o ex-chanceler relatou episódios ocorridos no início do governo Lula em que o Brasil reagiu positivamente, influenciou ou construiu a agenda internacional.

O primeiro caso evocado pelo ministro foi a criação do Grupo de Amigos da Venezuela. Em meio a uma situação dramática, de agudos conflitos civis e tentativas de golpe de estado, o Brasil deveria tomar uma atitude. Além de simplesmente apoiar o governo e a democracia, a diplomacia brasileira, por iniciativa clara do ex-presidente Lula, ajudou a encontrar uma solução. O Grupo, formado por governos conservadores, como de Portugal e Espanha, além dos EUA, foi fundamental para a superação da grave crise civil. O papel de convencimento de muitos dos líderes, assumido por Lula, é indiscutível e os próprios EUA reconheceram e aceitaram a liderança brasileira.

Outro exemplo de necessária tomada de atitude por parte da diplomacia nacional relatado por Amorim foi a negociação da ALCA. Num claro exemplo de alteração da agenda das Américas, através de intensas negociações com membros do Mercosul e, posteriormente, com os EUA em Miami, o Brasil “conseguiu desentortar a ALCA”. Apesar dos ataques de fortes setores da sociedade brasileira e da intensa crítica dos meios de comunicação do continente, o acordo foi alterado e esvaziado de tal forma a deixar de ser interessante para os EUA ao ponto de ser abandonada pela potência. Exaltando a negociação brasileira, o ministro Amorim admitiu “com minha experiência de 50 anos em relações internacionais, mudar um projeto base dos EUA não é uma coisa fácil”. Ainda a respeito de tomada de decisão e posicionamento em relação a uma agenda dada, Amorim evocou a atuação diplomática brasileira sobre a questão da guerra do Iraque. Ainda que o país não fosse “forçado” a tomar uma decisão, a participação intensa do então presidente Lula, que incluiu o tema em conversas com presidentes de inúmeros países e com o secretário-geral da ONU Koffi Annan, lhe rendeu uma marcada posição de autonomia. Segundo Amorim, o país ganhou respeitabilidade em função daquela atitude, inclusive perante o presidente Bush, que em 2003, em encontro com Lula, teria dito “vamos tratar daquilo que nos aproxima”.

Concernente às iniciativas brasileiras no sentido de construir uma nova agenda e, portanto, influenciar a pauta de negociações internacionais, o ministro ressaltou as experiências do G20 comercial, do IBAS e da UNASUL. A respeito do G20, o Brasil teria liderado a revolta que resultou na sua criação, em Cancun. Um grande esforço diplomático foi mobilizado para atrair outros países do Sul ao posicionamento de Brasil e Índia e evitar que o acordo de Doha fosse assinado “colocamos o pé na porta e ela não foi fechada na nossa cara”. Porém, tal atitude não foi meramente restritiva, ao contrário, o G20 não se limitava a dizer não, sendo firme e propositivo. “Se a rodada Doha for retomada, a base da agricultura é o que o G20 propôs”. Já a criação do IBAS e da UNASUL, de acordo com Amorim, são casos em que a diplomacia inventou a agenda, pois eles não se encontravam na pauta internacional até então.

Enfim, enquanto ministro da Defesa, Celso Amorim fez questão de lembrar que a política de defesa deve estar alinhada à política exterior, e que ela é necessária para dar suporte à política externa altiva e ativa. Apesar de o Brasil não ter inimigos na região e de o governo considerar que a cooperação é a maior dissuasão, o país não pode ignorar ameaças em um mundo de estados-nação. “Devemos estar preparados para reagir com uma defesa robusta e nos defender com armas do século XX e do XXI”, afirmou o ministro numa clara referência aos recentes casos de espionagem revelados pelo agente da CIA Edward Snowden.

Mesa 3: A Política Externa Brasileira e as novas coalizões internacionais
O terceiro dia da conferência foi marcado pela realização de mesas de diálogo simultâneas. Com uma extensa variedade de temas relacionados à política externa brasileira, os participantes tiveram a oportunidade de escolher, de acordo com seus interesses, pesquisas e áreas de atuação, o debate que gostariam de acompanhar. No período da manhã, atores governamentais, representantes da sociedade civil e acadêmicos trataram, em diferentes mesas, da relação entre política externa brasileira e defesa (Mesa 1), da cooperação internacional para o desenvolvimento (Mesa 2), da política externa brasileira e o meio ambiente (Mesa 4) e da visão dos países vizinhos sobre a política externa brasileira (Mesa 5). A Mesa 3 teve como objeto de análise a política externa brasileira e as novas coalizões internacionais. Dela participaram Graciela Rodrigues, coordenadora do Instituto EQUIT e  integrante da REBRIP, o embaixador Guilherme de Aguiar Patriota, assessor especial da Assessoria Especial da Presidenta da República, e Monica Hirst, professora de Relações Internacionais da Universidad Nacional de Quilmes, na Argentina.

Graciela, evidentemente, abordou a questão pela perspectiva dos movimentos sociais. Segundo ela, a considerável transformação do ambiente político internacional observada nos últimos anos deve muito à atuação dos movimentos sociais, sobretudo ao longo dos anos 90. Sugerindo um movimento dialético a partir do mal-estar provocado pelos avanços do neoliberalismo e pela atuação do FMI no mundo em desenvolvimento, a sociedade civil teria tido papel fundamental para o início da resistência. Exemplos marcantes de atuação dos movimentos sociais, evocados por Graciela, foram a criação do Fórum Social Mundial, as mobilizações perante os encontros da OMC e do G8 e a própria eleição de governos progressistas, como a de Lula no Brasil.

Ao tratar das coalizões que hoje dominam parte do cenário internacional, a coordenadora do EQUIT se debruçou, principalmente, sobre o G20. Apesar de reconhecer um avanço em relação ao restrito e elitista G8, além da relevante participação do Brasil em um novo formato de governança global, Graciela contestou o fato de os membros do G20 chamarem para si “uma representação e uma liderança para as quais não têm legitimidade”. Segundo ela, os movimentos sociais apoiaram o objetivo essencial do G20 de, coordenadamente, regular as finanças internacionais, porém a pauta do grupo se expandiu indevidamente e enfraqueceu seu foco principal.

Graciela ainda apontou aspectos positivos na construção e consolidação de novos grupos e coalizões internacionais. Os movimentos sociais veem nessa prática uma saudável forma de desconcentrar poder político e econômico, como, por exemplo, na atuação coordenada do IBAS que “pode criar uma verdadeira articulação Sul-Sul de contribuição”. No entanto, sua fala deixou expressa a demanda intensa e constante, por parte da sociedade civil, de maiores e institucionalizados espaços de diálogo entre os atores estatais e os movimentos sociais. Dessa maneira, as novas coalizões teriam mais força e legitimidade para atuar de forma decisiva sobre a ordem política global. Voltando-se para a mesma questão, o embaixador Guilherme Patriota iniciou a sua intervenção. Descrevendo o processo de erosão da exclusividade do diplomata de fazer política externa, ele defendeu que o Estado se abra e coordene a sua atuação com outros atores políticos e sociais. Da mesma forma que a mídia, a academia, a religião e celebridades se tornaram relevantes para a condução da política internacional, o Estado deve reconhecer e facilitar a participação direta da sociedade civil sobre a pauta de negociação internacional. Segundo o embaixador, a política externa deve acompanhar as mudanças ocorridas no seio de uma sociedade. “Essa ideia de que a política externa é uma política de estado é uma formulação conservadora para que ela não mude”.

A respeito dos objetivos estratégicos presentes na construção de coalizões, o embaixador apresentou uma análise consideravelmente similar à da professora Monica Hirst. Ambos consideram que o elemento fundamental na reunião de potências emergentes, países do Sul ou grupos regionais é a transformação da ordem internacional. A proposição de uma nova agenda, assim como de novas bases de relacionamento no sentido de uma mudança da ordem, se torna muito mais forte se apresentada por uma coalizão. Segundo o embaixador, além das consideráveis realizações concretas desses grupos, em termos econômicos e comerciais, o valor simbólico que eles possuem é extremamente significativo. As reuniões dos BRICS, nas palavras do embaixador, são objeto de enorme investigação e esforço diplomático por parte das potências ocidentais. “Eles fazem de tudo para tentar descobrir tudo o que vai se passar em cada cúpula dos BRICS, antes, durante e depois”.

Segundo a professora Monica Hirst, a agenda Sul-Sul foi privilegiada pela política externa altiva e ativa. Elemento fundamental dessa nova condução da política exterior brasileira, os compromissos assumidos com países emergentes são uma ferramenta de enorme relevância para a mudança da ordem. Se em outros momentos da atuação externa do país em que se buscava uma transformação do sistema internacional, como no período da Política Externa Independente, o Brasil atuava de forma descolada e autônoma, hoje esses objetivos são assumidos por uma ação conjunta, coordenada e propositiva.

A maior expressão desse movimento, para a professora, é a ação do IBAS. Apesar de ser objeto de pouca atenção da academia, pelo maior apelo midiático do BRICS, o IBAS se apresenta como relevante agrupamento em um contexto de transformação da ordem global. Uma grande oportunidade de análise fez-se presente, em 2011, quando os três membros do grupo ocuparam, de forma temporária, assentos no Conselho de Segurança da ONU. Tema de estudo da professora Monica, a capacidade de Brasil, Índia e África do Sul de construir consenso e atuar de forma coordenada para “vencer os primados da paz liberal” foi evidente. Portanto, a postura crítica a respeito da configuração de poder internacional foi manifestada, conjuntamente, na prática. A professora elegeu oito temas sobre os quais o consenso foi explícito, dentre os quais, vínculo inexorável entre segurança e desenvolvimento; vínculo entre paz, soberania e desenvolvimento sustentável; prudência no uso de métodos coercitivos; e prudência no tratamento de crises locais. Enfim, o Brasil procurou “construir uma visão política alternativa, crítica e construtiva de um mundo no qual o país quer ter mais voz, mais altivez através de posições mais fortalecidas com países do mundo em desenvolvimento”.

Mesa 10: A Política Externa Brasileira e a relação com a Sociedade Civil
A segunda rodada de mesas simultâneas contou com seis debates distintos. Os temas discutidos, pelo prisma da política externa brasileira, foram desde o comércio internacional aos entes federativos, passando pelos direitos humanos e as relações com a África e o Oriente Médio. A Mesa 10 tratou, talvez, do tema dominante de Conferência; a relação da política externa brasileira com a sociedade civil. Encarregados de promover o debate estavam Deisy Ventura, professora de Direito Internacional do IRI, da USP, Fátima Mello, diretora da FASE e coordenadora da REBRIP e Murilo Komniski, chefe da Assessoria Internacional da Secretaria Geral da Presidência da República.

Os três expositores partiram de uma constatação similar, largamente consolidada ao longo da conferência, segundo a qual a política externa se faz em conflito e em disputa permanente na sociedade. Contrapondo-se à premissa de que a política externa defende um interesse nacional homogêneo, intrínseco, a política inaugurada em 2003 assumiu que conflitos internos fazem parte do jogo da política externa. Como afirmou Fátima Mello, “política externa e interesse nacional sempre foram confundidos e traduzidos com o interesse das elites”. Reconhecida, portanto, como política pública, a política exterior brasileira passou a absorver os conflitos existentes dentro da própria sociedade nacional. No entanto, todos os membros da mesa apontaram problemas ainda existentes e caminhos a serem percorridos no sentido de tornar a política externa ainda mais democrática.

Deisy Ventura ressaltou o fato de o Brasil ser referência em termos de participação social em políticas públicas. As referências a modelos brasileiros no que tange democracia participativa são absolutamente numerosas na literatura estrangeira. Caberia, portanto, ao país, avançar no sentido de tornar-se também uma referência na participação popular em política externa. O primeiro passo nesse sentido, segundo a professora, seria a institucionalização da participação social nessa área da ação estatal, pois “o interesse público contempla a necessidade de transparência e um esquema de participação aberta”. Em relação à criação desse órgão de consulta popular, Deisy evocou três pontos cruciais. O primeiro remete à ideia de que a discussão sobre o espaço de participação social deve ocorrer dentro da própria sociedade, de forma que as organizações sociais participem, ao lado do governo, da elaboração das instituições. O segundo ponto se refere às experiências passadas e existentes. Um constante alvo de críticas da sociedade civil é, por exemplo, a frequência variável das cúpulas sociais do Mercosul. Além do mais, afirma-se que tais cúpulas se esgotam em si mesmo, uma vez que não há seguimento às sugestões expressas pelos movimentos sociais. Enfim, o terceiro ponto, de ordem absolutamente prática, sugere a discussão sobre a ligação formal que teria o foro consultivo em política externa. Seria ele atrelado ao MRE ou, em resposta à horizontalização da política externa e ao reconhecimento da política externa como política pública, ligado à Presidência da República?

Fátima Mello, por sua vez, exaltou a participação fundamental dos movimentos sociais em alguns casos específicos da política internacional. Inserida em um considerável contexto de contestação, por exemplo, a política de esvaziamento da ALCA contou com grande participação e apoio da sociedade civil. Não obstante, Fátima não deixou de evocar discordâncias entre os movimentos sociais e o governo ao longo da última década. No âmbito das negociações comerciais, alega-se que o governo tende a defender o interesse do grande agricultor enquanto a sociedade civil mobiliza esforços na defesa da agricultura familiar e camponesa. Nesse sentido, a coordenadora da REBRIP comemorou os avanços na construção de mediações para que a pauta camponesa não seja ignorada pelo governo nas negociações internacionais. Fátima ainda revelou a preocupação que hoje aflige os movimentos sociais a respeito da cooperação internacional promovida pelo país. Dentre as denúncias de abusos cometidos por empresários brasileiros em países da América do Sul e do continente africano, ela destacou os riscos do programa Pró-Savana, no qual a Agência Brasileira de Cooperação promove uma “privatização da cooperação pela ida de grandes empresários do agronegócio ao norte do Moçambique”.

Fátima reforçou a fala de Deisy ao afirmar que a institucionalização da política externa brasileira a tornaria mais legítima interna e internacionalmente. Evocando as recentes manifestações que tomaram as ruas do país, ela concluiu que “é preciso mais democracia, mais política pública, mais canais de diálogo”. Avaliação essa que foi compartilhada por Murilo Komniski. Segundo ele, há total convergência de diagnóstico e de posicionamento político por parte do Governo Federal quanto à necessidade de ampliação dos mecanismos de consulta popular para as mais diversas áreas de implementação de políticas públicas. Referência em temas como transferência de renda, combate à fome e à pobreza, iniciativas que combinam a agricultura familiar e o agronegócio, defesa dos direitos humanos, entre outros, o governo brasileiro buscaria incessantemente o diálogo com a sociedade civil.

Apesar das críticas citadas pela professora Deisy em sua apresentação, Murilo utilizou o exemplo da cúpula social do Mercosul como expressão da evolução dos mecanismos de consulta popular elaborados nos últimos dez anos. A Comissão da Verdade teria sido um resultado concreto de diálogos realizados em reuniões do Mercosul. Segundo ele, o “processo de construção do espaço regional é pautado pela participação da sociedade civil”. Nesse sentido, o governo procura melhor sistematizar as consultas populares no Mercosul, além de promover iniciativas semelhantes na UNASUL e na CELAC. Além da região, busca-se, até 2014, a ampliação do diálogo entre governos e sociedade civil no IBAS e no BRICS.

Finalmente, o assessor da Secretaria Geral da Presidência assegurou que a criação e institucionalização do foro de debate sobre política externa estão sendo debatidos dentro do governo e com atores sociais representados pelo GR-RI. E que “o processo de construção desse espaço certamente passará por um trabalho conjunto”. Estabelecendo um paralelo com o que fora apresentado por Deisy e Fátima, Murilo afirmou que é preciso aprofundar o debate em um momento em que a “sociedade pede mais e melhor”. Enfim, como qualquer outro campo da política, superada a vinculação da política externa com um suposto domínio reservado, técnico, a política exterior deve ser objeto de debate constante e aberto com a sociedade.

Mesa 1: A Política Externa Brasileira: um diálogo com partidos do Foro de São Paulo
A quarta-feira ainda contou com duas mesas simultâneas de diálogo. Enquanto a Mesa 2 tratou da relação entre as redes sindicais e a política externa brasileira, a Mesa 1 se dedicou a um diálogo com os partidos do Foro de São Paulo. Como os representantes do PDT e do PSB não responderam ao convite feito pelos organizadores, dela participaram Ricardo Alemão Abreu, secretário de Relações Internacionais do PCdoB, e Valter Pomar, secretário executivo do Foro de São Paulo e membro do Diretório Nacional do PT.

A concepção de política externa como política de Estado e, portanto, exógena às dinâmicas da política doméstica sempre limitou a consideração de partidos políticos e seus respectivos programas de política internacional na análise das relações internacionais. A inclusão, porém, desse tema no debate público brasileiro, a partir do primeiro mandato de Lula, evidenciou a relevância dos partidos políticos e seus programas de governo para a política exterior. Nesse quadro, se faz importantíssima a posição das próprias organizações partidárias concernente a condução das relações internacionais do Brasil na última década. No caso brasileiro e, de forma mais ampla, latino-americano, ao Foro de São Paulo deve ser atribuído significativo papel na condução da política externa. É o que defende Ricardo Alemão ao afirmar que muitas das políticas dos países governados pela esquerda na região, a partir de 1998, foram gestadas e criadas dentro do Foro.

O secretário de relações internacionais do PCdoB afirma que, além de um processo de mudança interno ao Itamaraty, a ruptura observada na política externa brasileira, desde 2003, deve-se, em larga medida, aos partidos de esquerda. Como canais de mobilização do povo consciente, tais partidos tornaram possíveis alterações significativas na condução da política exterior do país. Dentre as mudanças, ele destaca a prioridade concedida à integração da América Latina, a ênfase nas relações Sul-Sul e a cooperação de ordem econômica e comercial também na esfera Sul-Sul, ilustrada pela relação com a África e pela criação do IBAS e do BRICS. Ricardo, no entanto, aponta desafios à continuidade desse movimento. Sua maior preocupação é a contra-ofensiva da direita latino-americana e o grande risco de reversibilidade dessas conquistas. A saída seria, segundo ele, aprofundar os elementos de mudança, presentes na política externa, que dão base para um futuro de transição ao socialismo.

Um pouco mais contido ao elogiar a política externa inaugurada em 2003, Valter Pomar procurou transmitir o ponto de vista do PT em relação à política internacional. Antes de tudo, ele não qualificou a nova política externa como uma política petista. Apesar de os três intelectuais orgânicos dessa política externa, Marco Aurélio Garcia, Samuel Pinheiro Guimarães e Celso Amorim, serem hoje filiados ao PT, Valter Pomar a considera um encontro entre uma tradição que já existia no Itamaraty com uma tradição da esquerda brasileira. Segundo ele, o apoio global à condução da política externa no período não é sinônimo de apoio total a ela. Além de aspectos com os quais o partido não está de acordo, como a presença brasileira no Haiti, observa-se uma nítida contradição na política exterior. Contradição essa que seria marcada por duas dimensões antagônicas: a defesa de interesses das classes dominantes nas negociações comerciais e um posicionamento de acordo com as demandas históricas da esquerda. Devido justamente a esse último caráter da política externa, essa é a área, segundo Pomar, com a qual as esquerdas mais se reconhecem no governo.

Não obstante, o secretário executivo do Foro de São Paulo não escondeu a considerável insatisfação entre setores do Foro com o que ele chama de “inflexão da política externa nesses dois últimos anos”. Descontentamento gerado, principalmente, por uma atuação julgada isolada do Brasil em relação ao continente latino-americano e uma aproximação com o BRICS. Ademais, desenvolve-se a impressão de que se tolera o intolerável. Numa referência aos últimos acontecimentos envolvendo as denúncias de espionagem do governo americano e o caso do avião de Evo Morales, entende-se que o ministro Patriota adota uma posição consideravelmente passiva em relação aos Estados Unidos. O PT veria, portanto, uma inflexão na gestão Patriota que não é responsável, ainda, por negar a avaliação globalmente positiva que o partido faz dos últimos dez anos de política externa. A expressão de insatisfação recente seria, simplesmente, uma forma de defender uma mudança de rumos.

Mesa de Diálogo 3: O futuro da Política Externa Brasileira: desafios e perspectivas
O último dia da Conferência foi aberto por um franco diálogo entre representantes de variados setores da sociedade brasileira. Coordenada pelo diretor do Instituto Lula, Luiz Dulci, a mesa contou com a participação de Artur Henrique, presidente do Instituto de Cooperação da CUT, Vera Masagão Ribeiro, diretora executiva da ABONG, Jackson Schneider, vice-presidente executivo da Embraer S.A., do deputado Nelson Pellegrino, presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa da Câmara dos Deputados, Sebastião Velasco, professor titular de Ciência Política e Relações Internacionais da UNICAMP e de Maria do Rosário, ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Os participantes da Conferencia puderam, então, observar o relato e a perspectiva de diferentes atores, ligados direta ou indiretamente, à condução da política externa brasileira.

Responsável por iniciar o debate, Artur Henrique tratou da política externa a partir da ótica dos trabalhadores. Segundo ele, o grande desafio que se apresenta à sua formulação é a necessidade de “entrar para dentro como nunca entramos e sair para fora como nunca saímos”. Com esse jogo de palavras, Artur quis dizer que se devem conquistar corações e mentes da sociedade em relação à importância da política externa e, externamente, aproveitar, de forma ousada, as oportunidades geopolíticas que estão colocadas. O presidente do Instituto de Cooperação da CUT aproveitou a ocasião para apresentar as propostas do movimento sindical para a condução da política exterior do país. A primeira delas é a democratização desse âmbito político, que se daria pela constituição de um conselho permanente de diálogo, como sugerido pela carta redigida pelo GR-RI. A segunda refere-se à construção de um fundo de cooperação para o desenvolvimento econômico e social que esteja à altura da posição alcançada pelo Brasil no cenário internacional. A terceira proposta consiste na “criação de um marco regulatório para a política externa adaptada à nova perspectiva do Brasil em uma reconfigurada ordem internacional”. A última sugestão concerne a presença de trabalhadores e representantes da sociedade civil nas viagens internacionais de membros do governo, de forma a contrabalançar a presença constante de empresários em tais missões. Enfim, a diplomacia brasileira deve, no futuro, “colocar o tema social, trabalhista e ambiental no mesmo patamar que o econômico e o comercial”.

Representando as organizações não governamentais, Vera Ribeiro defendeu a necessidade da participação da sociedade civil organizada na política externa brasileira. Evocando a legitimidade adquirida pelas ONGs  ao longo das últimas décadas pela capacidade de ligar problemas concretos das populações com espaços de governança, ela apontou a experiência da Rio+20 como expressão máxima da importância assumida por essas organizações. Outros exemplos da força da sociedade civil foram lembrados, como a constituição da Plataforma BNDES, da REBRIP e a atuação sólida dos movimentos sociais no Fórum Social Mundial. Opondo-se à noção de que a participação ativa da sociedade seja sinônimo de um Estado fraco, Vera afirmou que uma ação forte e legítima do Estado depende da coordenação e do diálogo democrático com os movimentos sociais. Nesse sentido, ela listou cinco bandeiras para o avanço da cidadania planetária: a defesa intransigente do direito à associação e expressão; o direito de acessar, por vias legítimas, recursos públicos e privados; a ampliação de mecanismos de financiamento da cooperação e de mecanismos para a promoção da democracia; segurança para a atuação; e o respeito à vida e aos direitos humanos.

Jackson Schneider, enquanto representante do setor privado, apresentou a perspectiva de uma empresa a respeito da política externa brasileira. Como símbolo do caráter globalizado da cadeia de produção industrial, o vice-presidente da Embraer comentou a construção de um avião de carga de 20 toneladas. O desenvolvimento de tal avião, encomendado pelo governo brasileiro, envolve a participação de países como Argentina, Colômbia, Portugal e República Tcheca. O esforço em termos de pesquisa e tecnologia é imenso, o que justifica a cooperação com os maiores institutos de pesquisa aeronáutica do mundo. A política internacional se fez ainda mais presente para os interesses da Embraer no episódio do contencioso enfrentado na OMC em relação à empresa canadense Bombardier. Segundo Schneider, a atuação da diplomacia brasileira foi fundamental para que mudanças fossem impostas nas regras de comercialização de aviões. O órgão multilateral de resolução de controvérsias foi, portanto, crucial para superar desigualdades e injustiças existentes no mercado internacional a favor de uma, até então, pequena empresa de um país em desenvolvimento.

O deputado Nelson Pellegrino abordou a política externa brasileira atribuindo ao ex-presidente Lula grande responsabilidade sobre os seus mais recentes êxitos. Segundo ele, a clareza com que Lula atrelava a política exterior ao projeto de desenvolvimento do país foi essencial para a nova cara que a política externa brasileira possui hoje. Em uma explícita oposição à configuração política das instituições internacionais, o Brasil teria, a partir de 2003, buscado um protagonismo que nunca tivera. Expressões desse movimento evocado pelo deputado são a ênfase dada ao G20 em oposição ao G8, a retomada da experiência do Mercosul, a construção do IBAS e do BRICS, o novo olhar para a África e um novo projeto de integração regional. Considerando que as instituições de governança refletem o mundo do pós-guerra e que, portanto, são ineficazes para tratar dos problemas de hoje em dia, o Brasil teria tido um papel protagonista na reestruturação do sistema internacional. Tais ações culminaram, por exemplo, nas eleições de Graziano para a FAO e de Azevedo para a OMC. Quanto ao futuro, no entanto, Pellegrino vê consideráveis desafios para a pauta internacional. Dentre eles o deputado destaca a questão ambiental e o modelo de desenvolvimento a ser adotado, o persistente desequilíbrio político Norte-Sul, a desconcentração da riqueza e temas recentes como a gestão da biotecnologia e da tecnologia da informação. Contudo, ele acredita que o Brasil deve aproveitar o fato de ser ouvido e respeitado para continuar materializando uma política externa a serviço do desenvolvimento econômico e social.

O professor Sebastião Velasco, voz da academia presente na mesa, se referiu a um documento do Instituto Superior de Guerra dos EUA para demonstrar o consenso, existente em inúmeras esferas internacionais, a respeito da melhoria da posição global do Brasil na última década. Melhoria essa que o professor atribui, primeiramente, à figura do ex-presidente Lula e a dois outros fatores. A notável trajetória ascendente do país, segundo Velasques, teria desfrutado de um ambiente econômico favorável e de um contexto geopolítico propício. Em relação ao último, ele destaca os problemas nos quais os Estados Unidos se envolveram e a decorrente margem de manobra alcançada por países da periferia, especialmente na América do Sul. Não obstante, tal margem de manobra vem sido reduzida por um movimento recente de retomada da hegemonia norte-americana. Exemplo maior desse processo seria a ofensiva regional americana que reduz a influência e o poder relativo das experiências de integração coordenadas pelo Brasil. Quanto ao imediato futuro da política externa brasileira, o professor considera que ele será decidido em 2014. Na medida em que a exitosa política exterior foi alvo de “fogo permanente” da oposição e de amplos setores da elite nacional, sendo inclusive tema de campanha presidencial em 2006 e 2010, a derrota do governo nas eleições do ano que vem representaria um grande risco para a política externa altiva e ativa.

Maria do Rosário, finalmente, atribuiu os avanços da política externa brasileira inaugurada em 2003 à coerência estabelecida, pelo governo federal, entre os planos interno e externo. No que toca os direitos humanos, a diplomacia brasileira não se absteve de exaltar a importância dos direitos econômicos, sociais e culturais, enquanto, internamente, lutava-se arduamente pela superação da pobreza. Esclarecendo o posicionamento internacional do Brasil, a ministra afirmou que, ao não submeter os direitos humanos aos interesse econômicos, o país considera que o “reconhecimento do outro como interlocutor pressupõe a questão da igualdade”. Ou seja, as posições complexas assumidas pelo Brasil têm como objetivo equalizar as relações. Segundo ela, o “Brasil não sustenta posições de ingerência a partir da perspectiva dos direitos humanos, pois aqueles que pretendem ingerir têm produzido gravíssimas violações de direitos humanos”. Sobre as últimas realizações brasileiras na esfera multilateral, Maria do Rosário lembrou que o país voltou a ocupar uma cadeira no Conselho de Direitos Humanos da ONU e que ele está presente também nos comitês voltados a proteção das mulheres, das crianças e contra a tortura e o racismo. Enfim, a ministra defendeu que o Brasil deve mover a sua própria cooperação, a partir do diálogo e da participação dos movimentos sociais, de forma a promover projetos de proteção dos direitos humanos. Nesse quadro, ela destacou a necessidade de ações voltadas para a superação da violência ligada ao tráfico de drogas e de seres humanos, problemática que perturba, há muito tempo, a região.

Encerramento
O encerramento da Conferência ficou por conta da mais expressiva figura da “nova” política externa. Apresentado por Klaus Capelle, Pró-Reitor de pesquisa da UFABC, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva envolveu a calorosa plateia por pouco menos de duas horas. Antes de se debruçar sobre o tema do evento, Lula fez questão de enfatizar a alegria que o contagiava por estar presente na Universidade Federal do ABC que, segundo ele, foi criada para ser uma das melhores universidades do mundo.

Reforçando a tese levantada por diversos participantes da Conferência, o ex-presidente ressaltou o fato de que as bases da política externa inaugurada em 2003 estavam presentes no seu programa de governo de 2002. Segundo ele, o seu primeiro acerto para implementar as mudanças no âmbito da política externa foi a escolha de Celso Amorim para chefiar a diplomacia brasileira. A atuação do chanceler, até então pouco conhecido de Lula, foi fundamental para alterar o complexo de vira-lata construído pela elite nacional que não permitia que o próprio país se respeitasse. “Se nós não nos respeitássemos, não seríamos respeitados pelos outros”. Foi essa, então, a base necessária para a ruptura que hoje analisamos da política exterior.

Para Lula, a política externa brasileira de seu governo pode ser caracterizada por três mudanças e elementos essenciais. O primeiro deles é a inclusão do combate à fome na agenda internacional. Maior marco desse movimento é a defesa do mesmo discurso – de que era possível acabar com a miséria e a fome no Brasil e no mundo – no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e no Fórum Econômico Mundial, em Davos. Isso no seu primeiro mês como presidente da República em janeiro de 2003.

O segundo elemento de ruptura de sua política externa foi a diversificação das relações brasileiras. Incomodado com a histórica subserviência do Brasil em relação às potências ocidentais, Lula promoveu duas grandes ações. A primeira delas foi a priorização do olhar para a América do Sul e depois para a América Latina. Ao viajar a todos os países da região, organizar a primeira reunião entre países da América Latina e do Caribe e criar a UNASUL, com seu respectivo Conselho de Defesa, Lula buscava reconquistar a confiança política dos povos latino-americanos. “Como o Brasil poderia ser grande se não cuidava dos que estão perto de si?”. E para cuidar deles, Lula foi alvo das mais grosseiras e infundadas críticas por parte de setores conservadores da sociedade, que cobravam, por exemplo, “dureza na relação com a Bolívia”. Críticas que se repetiram a respeito da segunda ação de diversificação: a decisão de se voltar para a África. Segundo Lula, esse movimento respondeu a um compromisso “moral e ético” do país em relação ao continente africano. Porém, apesar das inúmeras embaixadas e dos canais de diálogo abertos, o ex-presidente considera que se deve fazer muito mais. Principalmente no que se refere à cooperação e à disposição de recursos para o desenvolvimento. Movimento que encontra enorme resistência na sociedade brasileira, que considera que o país “ainda deve ser receptor, e não doador”. Inseridos nessa mesma dinâmica, Lula ainda lembrou outros pontos relevantes da atuação internacional do Brasil. Dentre eles, o ex-presidente destacou a presença e a cooperação brasileira no Haiti, a constituição da ASA – reunião entre presidentes sul-americanos e africanos, e a criação do IBAS e do BRICS. Enfim, a diversificação das relações diplomáticas do Brasil teria sido responsável, entre outras coisas, por permitir as eleições de Graziano para a FAO e de Azevedo para a OMC.

O terceiro ponto crucial da política externa inaugurada em 2003 foi a demanda por mudanças nas instituições multilaterais. Incapazes de garantir a governança global por representarem uma ordem ultrapassada, tais instituições carecem de legitimidade e poder de ação. A luta do Brasil foi, então, para a reconfiguração desse sistema, acreditando que “os pobres não devem se conformar que nasceram para ser pobres e que os ricos continuem ricos”. Expressões máximas da diplomacia brasileira nesse âmbito foram a atuação no G20 financeiro, cujas primeiras decisões extraordinárias “teriam sido aprovadas no encontro do MST e pelos metalúrgicos do ABC”, e a demanda permanente por reforma do Conselho de Segurança da ONU. Aliás, Lula sugeriu que os entraves alegados pelos membros permanentes para a reforma do conselho seriam facilmente resolvidos. “Por que só pode um da América Latina e não dois? Por que não três países africanos?”.

O ex-presidente Lula deposita enorme confiança e esperança na atuação que instituições multilaterais podem desempenhar para a resolução de conflitos e problemas transnacionais. Sejam esses problemas de ordem política, social, ambiental ou econômica. Ele utilizou, inclusive, o caso da crise econômica europeia para tratar das manifestações sociais que ocupam as ruas de Nova Iorque a Istambul e do Cairo ao Rio de Janeiro. Segundo Lula, a falta de governança e de coordenação das autoridades políticas europeias faz com que os jovens protestem para não perder o estado de bem-estar que conquistaram na segunda metade do século XX. No Brasil, ao contrário, o ex-presidente comemorou o fato de que as pessoas saiam às ruas para pedir mais Estado e mais bem-estar. Ele afirmou que se torna mais esperançoso ao ver os jovens interessados em debater política, pois “a pior coisa que pode acontecer no mundo é aceitarmos a negação da política. Não existe nenhuma experiência no mundo em que a negação da politica teve resultado melhor que a podridão da política”.

Enfim, a exposição de Luiz Inácio Lula da Silva fechou com chave de ouro a “Conferência Nacional: 2003-2013 Uma Nova Política Externa”. Indiscutivelmente, o evento cumpriu seu objetivo ao aproximar a sociedade civil, a academia e atores governamentais das temáticas que envolvem a condução da política exterior brasileira. O vivo debate despertado no campus de São Bernardo do Campo, da UFABC, foi exaltado por todos os envolvidos no acontecimento como um grande avanço para a democratização de uma historicamente insulada política pública. Os avanços conquistados pelo Brasil na última década não devem ser ignorados e, pelo contrário, devem ser expostos e discutidos com a sociedade civil. No entanto, essa mesma sociedade civil não pode ser uma mera expectadora dessas conquistas, ela deve ser também parte integrante dos processos decisórios. De tal forma, ganharão a democracia, os setores desfavorecidos e sub representados pelas instituições de poder, e a própria política externa brasileira, que disporá de maior credibilidade e legitimidade. O primeiro passo foi dado, resta aos atores nele envolvidos dar prosseguimento a um ambicioso mas necessário processo de democratização da política externa do país.

São Paulo, 02 de agosto de 2013.

Philippe Scerb é estudante de Mestrado em Ciência Política
Institut d’Études Politiques de Paris (Sciences Po)