As manifestações e as políticas públicas
Por Renato Dagnino
Se há duas coisas em que as análises sobre as manifestações coincidem, elas são: a justeza das reivindicações e a escassez de propostas de como atendê-las. Embora sintam que os problemas que as incomodam teriam que ser resolvidos pelo governo, por não identificarem claramente suas causas, os manifestantes não conseguem articular propostas capazes de resolvê-los.
O governador de São Paulo se apressou a declarar que a redução da passagem levaria à diminuição dos recursos para a saúde e a educação. O que parece ser uma medida adequada quando se limita o jogo das políticas públicas a dois “jogadores”: usuários do transporte e governo. Afinal, o orçamento do governo é escasso!
Como as cadeias de causas que originam os problemas da maioria são obscurecidas e naturalizadas pelos poucos que deles se beneficiam, as soluções que aparecem se limitam às causas imediatas e se convertem numa saída para manter os privilégios que estão na raiz do problema.
A explicitação das cadeias causais é condição para que as manifestações ganhem em eficácia na proposição de políticas que envolvam os “jogadores” que hoje são penalizados e favorecidos e contribuam para tornar mais justos os jogos sociais.
Este texto que toma como exemplo o início da cadeia que conduz ao alto preço do transporte urbano, o estopim das manifestações.
O preço é alto devido à progressiva expulsão dos pobres das zonas centrais para as periferias, que interessa ao setor imobiliário que financia vereadores, que se aproveita das leis de zoneamento e transforma bairros operários em condomínios de alto luxo.
E por que corredores de ônibus e a frota de ônibus não são ampliados? Porque isso pode ameaçar os que se deslocam de automóvel e as multinacionais que os montam. Que, aliás, têm recebido benefícios impositivos que levam ao crescimento do congestionamento das vias.
E porque o preço da passagem é calculado com base num multiplicador aplicado ao custo informado (e dificilmente fiscalizável) pelas empresas de transporte, que também “financiam” vereadores e funcionários. E que como as empresas a que me refiro aqui quase nunca aparecem na mídia ao lado desses corrompidos que elas corrompem.
Essa forma de cálculo faz com que a logística do transporte seja propositadamente irracional – sem estações de baldeação ou veículos com capacidade adequada a diferentes trajetos e horários, etc. – e caro. E que as empresas, com custos de operação menores do que os de outros países (o de mão-de-obra, por exemplo), possam cobrar uma tarifa mais elevada.
A renda do brasileiro que anda de ônibus, por ser mais baixa do que a dos trabalhadores desses países, fica com o seu poder aquisitivo ainda menor quando descontado o que ele paga de passagem. O Brasil é um dos países onde a propriedade (urbana e rural) é mais concentrada. Por isto nosso país, que foi o que mais cresceu entre 1880 a 1980, terminou este século (e segue assim) como um dos campeões de má distribuição de renda.
Para finalizar essa cadeia de causas que interagem e se retroalimentam, volto ao primeiro elo. O crescimento exponencial das cidades que condiciona a expulsão dos pobres urbanos para as periferias é fruto da negativa dos poderosos grandes proprietários rurais em reverter a concentração da propriedade. A reforma agrária, “congelada” por eles desde a década de 1950 mediante sucessivos cerceamentos à democracia, é essencial para o desenvolvimento do capitalismo. Ao promover a criação de um mercado interno para as empresas e a fixação do homem no campo, ela poderia ter evitado os círculos viciosos do capitalismo selvagem como o aqui mostrado.
À medida que se mostra as cadeias causais da passagem cara, perdem razão os que nos querem convencer que o que os empresários perdem com sua “redução”, o governo tem que repor tirando recursos de outras políticas. Além dos “jogadores” que aparecem no centro das manifestações – a população e o governo – vão se revelando mais candidatos a participar de outra forma no jogo das políticas públicas que hoje penaliza uns e favorece outros.
As elites empresariais que controlam o setor imobiliário e o transporte são “irmãs siamesas” das formadas pelos políticos e funcionários públicos que corrompem. Em instâncias que vão do parlamento, onde são representadas por políticos que dela participam, ao crime organizado, passando pela mídia, as elites jogam o jogo das políticas públicas para manter privilégios associados à enorme concentração de poder econômico, político e midiático que existe em nossa sociedade.
Por uma questão de justiça, seria atuando sobre a riqueza dessas elites, e não sobre os fundos das políticas que interessam aos que são penalizados, que o governo deveria buscar recursos para resolver jogos como o do transporte urbano.
Mas antes de abandonar a “problemática” de que a extensão universitária deve ajudar a esclarecer lembro algo mais sobre as manifestações. Elas evidenciaram que não é apenas a política de transporte que foi “deixada para trás” pelos governos de esquerda. A sociedade percebe que, devido a imposições da governabilidade, outras políticas públicas não avançaram o desejado.
Passando à “solucionática”, ressalto que colocar as políticas públicas à serviço da maioria e cumprir com os “sinais das ruas” demanda, em primeiro lugar, aumentar a receita do Estado; ou seja, arrecadar mais impostos.
Com apenas 4 mil dólares de arrecadação per capita o governo só pode oferece ao cidadão um “hotel de uma estrela”. Não adianta reivindicar um de cinco, como têm direito os noruegueses (26 mil dólares de arrecadação per capita), ou ingleses e alemães (14 mil).
É sabido que a estrutura impositiva do nosso país é absurdamente injusta: quem paga imposto são os pobres. Mas é pouco divulgado que cerca de 30% do imposto devido ao Estado é sonegado. E o que é pior: pelos ricos.
Ou seja, é urgente, por um lado, punir duramente a sonegação e limitar a renúncia, isenções e incentivos fiscais. E, por outro, alterar a essa estrutura tomando como exemplo os países capitalistas avançados no que respeita ao imposto indireto e direto (imposto progressivo sobre a renda e a propriedade, sobre grandes fortunas e herança, etc.). Para ter uma ideia do absurdo, dois exemplos: sobre o ganho de um funcionário público de médio escalão e de um milionário como o Eike Batista incidem os mesmos 27% de imposto (o qual aliás paga o IRPJ e o hábito é deduzir despesas custos do lucro da empresa para diminuir a base do importo); cerca da metade dos imóveis da cidade do Rio de Janeiro não pagam IPTU.
Essa estrutura impositiva e a sonegação, que chega a cerca de 10% do PIB, é o que tem travado o aumento do gasto público. A corrupção, que coloca o Brasil na 70ª posição no ranking mundial e que é apontada com fingida moral pela direita como como de responsabilidade do servidor público e não do empresariado que corrompe, representa menos de 3% do PIB.
Em segundo lugar, destaco que: se a estrutura impositiva é injusta, a de gasto público é, além de injusta, incoerente com a orientação que vem sendo dada às políticas governamentais.
As políticas “econômicas”, assim denominadas porque interessam aos que detêm o poder, mas que deveriam ser chamadas, dado o dano social que costumam causar, de “antissociais”, e as “sociais”, que as elites tendem a considerar “antieconômicas”, porque subtraem recursos à acumulação de capital, reforçam a exclusão.
Embora existam algumas política sociais que não chegam a contrariar severamente as elites, como a da Bolsa Família, que dada à “periculosidade” do problema e à sua atrativa relação “custo benefício” (0,4% do PIB beneficiaram 30 milhões de brasileiros) também as favorecem, há outras, também de natureza compensatória, a implementar. Sem falar naquelas que, depois de “dar o peixe”, coisa que precisará ser feita durante muito tempo ainda, devem procurar “ensinar a pescar”.
Aqueles 4 mil dólares de arrecadação per capita são gastos segundo um perfil que é um espelho da concentração de poder. Como o “cobertor e curto”, a inclusão social não demanda apenas aumentar a arrecadação; há que orientá-la para custear as políticas necessárias para promover justiça, equidade e responsabilidade ambiental.
O modo como hoje se implementa essas políticas não contribui, como poderia, para gerar impactos que potencializem o esforço que o próprio governo vem fazendo. Dos quase 40% do PIB que arrecada, mais da metade é gasto comprando das empresas os bens e serviços (transporte, energia, educação, saúde, segurança, comunicação, habitação, etc.) que chegam aos cidadãos através das políticas públicas.
O “Minha casa minha vida”, por exemplo, entregou 97% os recursos às empreiteiras (que estão entre as que mais corrompem), quando 54% das casas brasileiras são construídas pelos seus moradores (e entre os mais pobres, provavelmente, 100%). Outras oportunidades de gerar trabalho e renda, mobilizando outros agentes econômico-produtivos através da utilização do poder de compra do Estado, não são ainda percebidas.
Há que identificar e explorar oportunidades associadas a programas governamentais. Um exemplo: o fato de que o Brasil é líder mundial em reciclagem de alumínio evidencia a possibilidade de estender a cadeia produtiva do alumínio, que hoje termina na venda da sucata aos atravessadores, até as esquadrias, fogões, móveis, etc., para as casas que serão construídas.
Orientar as compras públicas para os empreendimentos que, operando em redes de Economia Solidária e com Tecnologia Social, em unidades de pequena escala, autogestionárias, com propriedade coletiva dos meios de produção e pouco demandantes de qualificação formal, é algo que se pode fazer para potencializar a geração de trabalho e renda mediante a produção desses bens. Uma iniciativa já em curso é a que obriga as prefeituras a adquirir 30% da alimentação escolar da agricultura familiar.
Meu terceiro e último destaque é sobre a demanda de “mais educação”: antes de prometer mais recursos, é necessário “decodificá-la”.
Embora tenha trocado bandeira do “emprego e salário” que o capitalismo inviabiliza em todo o mundo pela do “trabalho e renda”, a esquerda não tem conseguido içá-la. Não é tentando “amestrar” os que se encontram na marginalidade para serem “incluídos” na economia formal que vamos resolver o seu problema.
Somos quase 200 milhões, e 160 em idade de trabalhar. Partindo dos 28 milhões de empregos formais do fim do governo neoliberal conseguimos chegar a quase 45. Nos últimos dez anos, com tudo “dando certo” (extensão da previdência, bolsa família, aumento do salário mínimo, boom das commodities) o emprego formal tem aumentado 1,5 milhão/ano. Mesmo sem considerar que 94% deles recebem menos de 1,5 salário mínimo, é evidente que a receita neodesenvolvimentista não irá absorver os mais de 2 milhões/ano que se somam aos que querem trabalhar.
Para atender o que a população está pedindo, que o governo ajude a criar oportunidades de trabalho e renda, há que desmontar o consenso desenvolvimentista que o neoliberalismo reforçou com a falácia da “empregabilidade” e que a esquerda ainda aceita, de uma educação amestrada que favoreça trabalhadores e empresários.
Não é amestrando com “cursos técnicos” para uma indústria manufatureira que paga mal, com 5 dólares/hora, 7 milhões de empregos formais (menos do que o de empregados domésticos) e que tende a desaparecer com a concorrência da chinesa, que paga menos de um dólar/hora, que vamos mobilizar nossa enorme capacidade de trabalho ociosa.
Nem com a mera expansão de uma universidade pública contaminada com “ismos” suicidas (produtivismo-cientificismo-inovacionaismo), que atende só 3% dos jovens que deveria absorver enquanto forma mestres e doutores de “padrão mundial” que a empresa local de padrão periférico despreza…
Além de libertária em termos ideológicos e culturais, nossa educação só será efetiva se formar a população para que ela se organize em empreendimentos solidários com propriedade coletiva dos meios de produção e Tecnologia Social autogestionária capazes de substituir a empresa privada realimentando a cadeia virtuosa de políticas públicas de novo tipo.
Renato Dagnino é Professor Titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da UNICAMP