Juventude e socialismo: questões fundamentais
por Carlos Henrique M. Menegozzo
1. Introdução
1.1 Juventude: um tema controverso
Se há consenso no debate sobre a questão da juventude, ele passa pelo reconhecimento da enorme controvérsia que envolve até a definição do termo. Isto, em parte, se deve e é agravado pela aparente transparência de seu conteúdo: muitos de nós já vivemos a experiência de ser jovem ou convivemos com grupos juvenis, o que faz com que todo mundo tenha uma opinião sobre o tema. De um ponto de vista geral, pode-se dizer que as várias opiniões sobre a própria definição do conceito de juventude oscilam entre dois extremos.
De um lado, há uma visão demasiado subjetivista, que entende a juventude com uma espécie de estado de espirito ou atitude diante do mundo. Materializada no culto ao corpo e em padrões de consumo, a juventude é alçada, assim, à condição de ideal para todas as idades. No extremo oposto, bastante arbitrário, as percepções e experiências específicas deste segmento da sociedade acabam ocultadas pela delimitação estanque de faixas de idade. Neste caso, ser jovem equivale a ter de 16 a 29 anos, por exemplo.
1.2 A juventude sob os olhares da esquerda
Também na política, sobretudo entre as esquerdas, as opiniões a respeito do tema são variadas. Raramente, entretanto, a discussão se pauta por uma definição qualificada do conceito. É comum, por exemplo, a associação da juventude com uma tendência natural à rebeldia e à identificação com as lutas populares. Assim como a consideração da juventude como um momento de dedicação abnegada a uma causa, o que acaba por reduzir o seu papel estratégico à rotina “tarefeira” na celebrada condição de “pau pra toda obra”.
Noutros casos, a juventude é entendida, de modo mais rigoroso, como uma etapa específica da vida, atravessada por situações concretas muito diversas – não se tratando de uma juventude genérica no singular, mas de juventudes, no plural (juventude negra, feminina, trabalhadora, etc) – e merecedora de cuidados especiais. Ocorre que a consideração das várias situações concretas em se apresenta a condição juvenil, e que reflete um entendimento mais qualificado do assunto, há anos vem sendo repetido como novidade, sem desdobramentos imediatos ou estratégicos significativos. O mais significativo desses desdobramentos corresponde, provavelmente, à acertada tradução deste entendimento mais qualificado em políticas públicas. Estas, todavia, acabam muitas vezes reduzidas a visões estritamente reformistas ou ao mero eleitoralismo: perde-se de vista a articulação entre reformas parciais e revolução.
A ausência de uma compreensão mais apurada das condições em que vive e, portanto, dos limites e potencialidades da juventude numa estratégia de transformação social, por parte das esquerdas, torna-se evidente nas declarações que se ouve quando da aparente apatia ou da explosão de movimentos juvenis. Ora a desmobilização é atribuída a nociva intervenção dos partidos, ora a uma cultura política conservadora e consumista, ora à traição das direções. Pouco se fala, por exemplo, dos fatores de ordem econômica que determinam os fluxos e refluxos de movimento. Como também falta muita autocrítica das forças políticas organizadas a respeito de sua própria incompreensão do fenômeno.
Ao contrário, frente às explosões de movimento, não tardam em se manifestar as leituras segundo as quais a tendência à rebeldia é natural da juventude. Bem como as posturas autocelebratórias por parte das forças políticas organizadas que, traçando paralelos diretos com explosões de movimento do passado – aí as referências sobre 1968 e sobre os caras-pintada em 1992 são obrigatórias – procuram extrair, de modo oportunista, algum saldo político de uma onda de protestos para cuja emergência deram pouca ou nenhuma contribuição efetiva. Essas explosões têm sido muito mais fruto de uma combinação de fatores circunstanciais onde as forças organizadas têm cumprido um papel passivo, que o resultado de uma construção efetiva desde as bases.
Tais considerações nos levam a constatar que falta às esquerdas um entendimento mais elaborado a respeito da condição juvenil. O que se deve considerar como algo da maior gravidade, já que este entendimento é imprescindível não apenas a uma percepção mais completa dos reais limites e possibilidades que oferece a juventude do ponto de vista da luta pelo socialismo; mas também à potencialização dessa capacidade transformadora por meio de ações que não passam, necessariamente, pelos próprios movimentos juvenis.
Mais que um exercício meramente acadêmico, portanto, a tarefa de estabelecer uma rigorosa definição para o conceito de juventude compreende um esforço de análise da realidade concreta, imprescindível a toda a ação transformadora que, dialogando com este segmento específico da sociedade, se pretenda politicamente eficaz.
2.Conceito de juventude
2.1 Juventude como etapa transitória da vida
Não se pode negar que a vida humana é marcada por um ciclo que se inicia com o nascimento e que se encerra com a morte. E que em toda e qualquer cultura, este ciclo vital é segmentado em etapas diferenciadas de desenvolvimento biológico e social, marcadas em maior ou menor grau por um período de imaturidade, de maturidade, e de decaimento ou inatividade. Apesar das polêmicas existentes em torno do conceito de juventude, uma ideia fundamental, e relativamente difundida, é de que a juventude corresponde a um momento intermediário entre duas etapas deste ciclo da vida – mais precisamente ente a imaturidade e a maturidade plena, ou entre a infância e a fase adulta.
Os critérios que caracterizam essa passagem, todavia – e aí reside a polêmica de um debate mais qualificado – não podem ser apreendidos em toda a sua complexidade a partir da redução do conceito de juventude a um estado de espírito ou uma atitude diante do mundo; a faixas etárias estanques ou a um comportamento, supostamente natural, de rebeldia e identificação com as causas populares. Os critérios que definem a condição juvenil são muitos e envolvem fatores biológicos, psicológicos, econômicos, educacionais e culturais. A ênfase num ou outro aspecto varia conforme as visões adotadas em diferentes campos do conhecimento científico.
Em vertentes da medicina ocidental moderna, por exemplo, a ênfase recai no amadurecimento biológico do organismo humano perspectiva à qual corresponde, mais precisamente, o conceito de puberdade. Na psicologia, por seu turno, esta fase de transição é associada mais ao desenvolvimento de aspectos cognitivos ou de certas faculdades mentais e corresponde, geralmente, ao conceito de adolescência. Finalmente, esta etapa intermediária pode não estar associada a critérios biológicos ou psicológicos, mas a um conjunto determinado papéis – um conjunto de direitos e deveres social e historicamente estabelecidos – que são reservados a grupos sociais específicos, e que se encontra mais comumente associada ao conceito de juventude.
2.2 A condição juvenil de um ponto de vista totalizante
A visão especializada que cada uma dessas áreas oferece certamente contribui para um entendimento mais aprofundado de cada aspecto do complexo fenômeno da juventude. Entretanto, não se pode perder de vista uma visão de conjunto dessa passagem. Em função disso é que um entendimento mais completo da condição juvenil pressupõe a adoção de um ponto de vista totalizante. Um ponto de vista que leva em consideração a complexa interação de fatores de ordem biológica, psicológica, educacional, econômica e social derivados do reconhecimento da especificidade desta etapa transitória da vida.
São vários os pontos a partir dos quais podemos avançar na caracterização da condição juvenil, sendo um deles o que corresponde ao esforço por descrever o conjunto de direitos e deveres que singulariza a condição juvenil – entendendo este conjunto como uma construção histórica e social que se faz sobre processos de ordem biológica e psicológica, a ele subjacentes. Mas é preciso reconhecer que essa tarefa é das mais difíceis. Não que seja impossível empreendê-la. É que se trata, primeiramente, da descrição de meias medidas postas entre situações e papéis sociais mais facilmente identificáveis porque definidos como extremos: completa imaturidade e maturidade plena. Mas essa dificuldade se deve também ao fato de que tais direitos e deveres são estabelecidos socialmente em condições históricas determinadas. Isto quer dizer que o seu conteúdo pode variar de uma sociedade para outra bem como numa mesma sociedade ao longo do tempo.
Esta necessária relativização histórica, vale dizer, não impede que se descreva minuciosamente os fatores que concretamente envolvem a condição juvenil. Apenas exige que essa descrição deve se dar sempre com referência a um contexto social concreto e levando em consideração, insistindo num ponto de vista totalizante, fatores como situação de classe, condição de gênero e identidade étnica, por exemplo. E o contexto social concreto no qual nos inserimos é o das modernas sociedades capitalistas.
3. Juventude no capitalismo: situação e potencial político
3.1 Relação experimental com o presente e capacidade de renovação cultural
Um primeiro traço marcante da condição juvenil no capitalismo corresponde àquilo que na sociologia tem sido definido como uma espécie de moratória em relação a certas obrigações consideradas próprias da idade adulta, tais como exercício de uma atividade profissional em caráter definitivo, a responsabilidade pelo próprio sustento, além da constituição e sustento de um núcleo familiar autônomo.
Essa moratória abre a possibilidade da vivência de uma relação provisória ou experimental com o presente marcada pela busca do próprio papel e lugar no mundo, pela preparação para o exercício deste papel e, portanto, pelo amadurecimento da própria identidade. Isso não significa que a juventude corresponda a uma fase de inteira liberdade. Ao contrário, sobre ela recaem pressões e responsabilidades específicas. A pressão pela necessária definição de um papel e de um lugar no mundo é a primeira delas.
Esta combinação particular de fatores encerra um potencial explosivo, que corresponde à chamada crise da juventude. Em termos gerais esta crise consiste na incompatibilidade entre expectativas e aspirações alimentadas nesta fase de busca e de preparação, com as possibilidades reais de desenvolvimento pessoal e profissional oferecidas nos limites da ordem estabelecida. As frustrações advindas dessa incompatibilidade, não raro, se combinam com conflitos de ordem geracional, isto é, com o confronto entre as próprias aspirações e expectativas e aquelas projetadas sobre o jovem pelas gerações pregressas, notadamente pelos pais.
Isso se combina também com a insegurança e a ansiedade derivadas da impossibilidade de ocupação de qualquer espaço na sociedade. Nas formações modernas capitalistas, as relações de produção são reguladas pelas leis de mercado, não havendo papéis sociais reservados os quais aqueles reconhecidos como jovens devam assumir através de uma transição institucionalizada em ritos de passagem, como as provas de força e resistência em sociedades indígenas, por exemplo. Dito claramente: a juventude nas modernas sociedades capitalistas vivem uma insegurança advinda do risco do desemprego.
Ansiosos e inseguros na busca pela definição de seu papel na sociedade, os jovens procuram agregar-se em torno de afinidades, adotando valores e práticas próprios. Nesse contexto, os jovens tornam-se uma força potencialmente disponível a movimentos que ofereçam possibilidades de identificação e de ocupação efetiva de um papel na sociedade – o que pode ocorrer com movimentos transformadores ou conservadores (vide, por exemplo, a experiência das juventudes nazista e fascista nos anos 1930 e 1940). As tensões e rupturas envolvidas nesse processo de agregação e conflito no meio juvenil fizeram associar intimamente os jovens à instabilidade social, à potencial ruptura das normas socialmente estabelecidas, determinando seu ingresso na sociologia como um “problema social”.
Esse potencial que carrega a juventude, de inovar no campo de práticas e valores, cuja manifestação pode assumir dimensões conflitivas, coincide com sua capacidade – politicamente das mais relevantes – de renovação cultural da sociedade. Essa capacidade renovadora que carrega a juventude e que consiste, digamos, num de seus maiores trunfos políticos, se deve fundamentalmente ao caráter transitório de sua condição enquanto momento de passagem à idade adulta. Ao mesmo tempo, todavia, é a este seu caráter transitório que deve sua maior debilidade, inclusive em termos políticos: a brevidade e turbulência da experiência juvenil não permite um olhar mais aprofundado e sistemático sobre as relações nas quais os próprios jovens se vêm inseridos.
Em termos políticos, isso tem uma consequência significativa. Em primeiro lugar, as ideologias juvenis – entenda-se por ideologia uma visão de mundo não sistemática que se tem da realidade a partir de um lugar social concreto – enfrentam enorme dificuldade de apreender o mundo e de nele, assim, projetar-se estrategicamente. Isso equivaleria a reconhecer a autonomia impossível da práxis juvenil, pondo em evidência, em função disso, sua maior suscetibilidade à tutelagem e à manipulação externa. Na prática, essa suscetibilidade se traduz, sobretudo, na sensibilidade dos movimentos juvenis aos estímulos da mídia, sendo frequentemente manipulados pelas classes dominantes. E também na reverberação mais ou menos imediata da incapacidade de organizações partidárias em refletir sobre os limites e capacidades destes movimentos de juventude, viabilizando-os estrategicamente.
3.2 Pontos de encontro juvenis e movimentos de juventude
Importante registrar também o modo como a ansiedade, as expectativas e as frustrações dos jovens se agregam, conformando aqueles movimentos de dimensão coletiva que realizam concretamente a capacidade culturalmente renovadora da práxis juvenil. Uma analogia que ilustra bem esse processo é a da preparação de um bolo. Seu preparo adequado exige dois elementos básicos, a saber: uma receita produzida a partir de ingredientes combinados em proporções exatas e também a acomodação da massa resultante dessa mistura numa assadeira. Sob calor, a massa cresce e o bolo fica pronto.
Nesses termos, podemos considerar a ansiedade, as expectativas e as frustrações juvenis como os ingredientes de uma receita que, sem forma ou influência do calor dos acontecimentos, terminaria simplesmente como uma massa espalhada. A assadeira corresponde exatamente às instituições que canalizam e regulam os fluxos de relações sociais no meio juvenil, contribuindo ou não para sua formatação em movimento coletivo organizado.
As assadeiras sociais de “bolos de juventude”, digamos, são de enorme variedade e estão geralmente associadas à responsabilidades e compromissos socialmente atribuídos aos jovens, entre os quais se destaca a preparação escolar, do que se depreende o papel da escola enquanto espaço privilegiado de vivência juvenil; ou então estão associadas ao uso do tempo livre e ao lazer, tais como a quadra, o espaço da rua e do bairro, as lanchonetes, bares, boates, cinemas, bailes, shows musicais, exposições e cafés. Nesses espaços, a juventude se encontra, experimenta os limites de sociabilidade da ordem estabelecida, desenvolve práticas e valores próprios – que se manifestam por meio da linguagem, do vestuário, dos gostos musicais e dos padrões de relacionamento afetivo, por exemplo – projetando papéis sociais culturalmente inovadores.
Naqueles vários pontos de encontro a juventude compartilha suas frustrações e ansiedades, seja para consolida-as em formas de organização coletiva que desestabilizam a normas vigentes – num sentido que não é necessariamente progressista, mas que pode se orientar também pela celebração do ódio e da violência. Seja para reelaborá-las em perspectivas conservadoras – o que inclui a canalização de suas frustrações e inseguranças no consumo de produtos voltados ao público jovem e que reelaboram a capacidade renovadora destas culturas juvenis emergentes, anulando-a ou contendo-a em espaços socialmente delimitados e em práticas tanto previsíveis quanto politicamente negociáveis. Em outras palavras, deve-se reconhecer que a experiência juvenil pode conduzir, também, a uma integração ao sistema de práticas e valores imposto pela sociedade – completando dessa forma, sem “problemas”, o processo de socialização das novas gerações.
É importante registrar que nesses processos os jovens enfrentam uma resistência ativa, começando pelos conflitos que se estabelecem na própria família. As expectativas e desejos que a juventude assume para si e projeta na sociedade nem sempre coincidem com as práticas e valores considerados os mais adequados e justos pelas gerações pregressas – notadamente os pais. A família também projeta no jovem suas próprias expectativas, sendo a primeira delas a de que ele representa a possibilidade de aproveitamento de oportunidades de elevação ou manutenção de um padrão de vida já alcançado. E para isso, investiu tempo e recursos, a custa de sacrifícios pessoais. Quando as expectativas e desejos dos próprios jovens se chocam com os dos adultos (incluindo-se aí a família), temos o que se define como conflito de gerações.
Mas não é somente em função de questões de ordem econômica ou de prestígio que esses conflitos se estabelecem. Na sociedade (inclusive no seio familiar) encontramos práticas e valores arraigados que, por outras razões, podem tolher a possibilidade de vivência de uma relação experimental com o presente. As práticas e valores conservadores e restritivos associados a certas crenças religiosas são um exemplo disso. O machismo também é uma variável importante. Sua influência sobre as possibilidades de vivência da condição juvenil vem de há muito tempo: até meados do século XIX as moças não frequentavam a escola, por exemplo, e eram criadas desde cedo como mulheres em miniatura, destinadas a casar, a servir ao marido, e a permanecer reclusa na esfera familiar, alijadas do convívio social e do trabalho – atividade que poderia lhe conferir uma margem de autonomia – restringindo-lhe o acesso a certas condições econômicas e sociais indispensáveis ao exercício da condição juvenil. Estes são elementos arraigados culturalmente que ainda hoje se manifestam em maior ou menor medida.
3.3 Condições econômicas para a realização da juventude
Vimos que a juventude, definida como o direito a uma relação experimental com o presente, carrega um potencial de renovação cultural da sociedade e que este potencial se condensa em certos contextos institucionais podendo, ainda que sob a resistência ativa dos adultos, dar origem a movimentos coletivos de juventude. Isso, todavia, não explica tudo. Falta um elemento frequentemente omitido em debates sobre a questão da juventude, e que nos remete à questão econômica. A juventude se define como um papel social relacionado à possibilidade de vivência experimental com o presente na exata medida em que lhe é assegurado o direito à desresponsabilização com o próprio sustento. Dito claramente: a possibilidade efetiva de usufruto do direto à juventude está intimamente associado a uma certa condição de classe.
Quando, por força das circunstâncias, alguém é obrigado a engajar-se numa atividade profissional, seja para sustentar-se, seja para garantir o sustento de um núcleo familiar pelo qual é responsável, então não existe a possibilidade de uma vivência experimental com o presente, de escolha, e de preparação para um papel futuro. As opções já estão dadas e a margem para inovação cultural é muito pequena. Pois é exatamente o que acontece entre as famílias economicamente menos privilegiadas – aspecto que em nosso país encontra-se indissociavelmente atrelado à questão étnica ou racial. Nesses casos a experiência juvenil acaba restrita praticamente à entrada num mercado de consumo tipicamente jovem que é particularmente voltado ao lazer e à moda e que acaba tomado como válvula de escape de uma realidade massacrante. Na raiz desse fenômeno encontra-se a divisão entre as classes e a exclusão social, inscritas como traços estruturais do capitalismo.
No extremo oposto temos os filhos e filhas das famílias muito privilegiadas. Nestes casos a condição juvenil é experimentada, frequentemente, em situações de completa dependência econômica em relação à família. Essa dependência, inclusive, tem se alargado historicamente, na medida em que se alonga o período necessário a preparação educacional para a disputa do mercado no trabalho e o exercício de uma profissão especializada.
Essa situação de alargamento é produto de uma tendência, resultante da pressão – sobretudo da classe média – de ampliação, para si, das oportunidades educacionais no capitalismo, tidas erradamente, inclusive, como condição suficiente à diminuição das igualdades sociais (é a chamada ideologia da ascensão social). O fato é que essa pressão, sob as restritas oportunidades de trabalho oferecidas pelo sistema, fazendo massificar um dado nível de formação educacional, cria a necessidade nível superior de formação como critério de recrutamento da força de trabalho. Esse fenômeno de alargamento do tempo de escolarização adia a entrada dos jovens de famílias privilegiadas no mercado de trabalho, reforçando uma situação de dependência que se tem descrito como “adolescência tardia”.
Como o próprio conceito indica, essa situação de dependência econômica prolongada reduz a margem de autonomia do jovem, incidindo inclusive sobre os processos de amadurecimento psicológico que envolvem a elaboração da própria identidade. Não apenas pelos laços de dependência emocional, que se reforçam nessa situação, mas também pelos mecanismos de controle sobre o jovem que a família continua a dispor – inscritas na relação de dependência econômica –, e que se traduzem na maior possibilidade desta em regular o uso do tempo livre do jovem, canalizando suas energias em direção à realização do projeto que ela, a família, reserva para ele.
Isso significa, em suma, que as possibilidades de exercício efetivo da condição jovem são restringidas por situações econômicas desfavoráveis. Enquanto no extremo oposto, as condições econômicas para o efetivo exercício da condição juvenil estão dadas, mas a dependência absoluta em relação à família geram situações que são restritivas do ponto de vista geracional: em contextos culturais menos liberais a dependência econômica reforça os mecanismos por meio dos quais a família se impõe como um elemento de resistência ativa à possibilidade de experimentação e inovação cultural.
Frente a isso, poderia-se considerar que a situação econômica mais favorável ao pleno exercício da condição juvenil, ao contrário do que se pensa, não é uma situação de dependência absoluta em relação a família, mas de dependência relativa. O exercício de uma atividade profissional, desde em que caráter parcial ou provisório, permite ao jovem dispor de recursos que pode investir conforme o critério de suas próprias expectativas e desejos – pressupondo que sua situação econômica lhe permita, ao mesmo tempo, completar o necessário ao seu sustento.
Em outras palavras, a situação de dependência econômica relativa garante uma margem de autonomia, também relativa, em relação às pressões e resistências ativas que as novas gerações sofrem dos adultos, sobretudo no contexto familiar, potencializando a realização da experiência juvenil entendida como momento de vinculação experimental com o presente e como possibilidade renovação e inovação culturais. Nesse processo, desde que garantidas certas condições institucionais – isto é, desde que os pontos de encontro juvenil existam e que neles o convício e a interação sejam garantidos – então aquela energia potencialmente renovadora poderá se manifestar na forma de movimentos coletivos de juventude.
4. Os socialistas e a juventude, a juventude e o socialismo
À luz dos elementos até aqui expostos, pode-se concluir o seguinte: o estágio particular da vida que se define como juventude está associada a um conjunto de direitos e deveres. Na modernidade capitalista, em poucas palavras, estes correspondem ao direito à vivência experimental do presente, à busca por um lugar no mundo e à elaboração da própria identidade; mas que se realiza sob a pressão de integração definitiva na sociedade, materializada na preparação escolar como uma obrigação ou um dever.
Além disso, vimos que a possibilidade de experimentação, de definição da própria identidade, e de busca por um papel na sociedade, se realiza num contexto material e cultural concreto. Ou seja, existem certos fatores que condicionam ou determinam a possibilidade de usufruto da condição juvenil e da conformação de sua capacidade de renovação cultural em movimentos coletivos. A dependência econômica relativa em relação à família é o primeiro destes fatores. Ela permite ao jovem uma margem de manobra em relação às pressões sociais e também o tempo livre necessário à busca e à experimentação.
Mas essa experimentação não se realiza plenamente em escala individual. É no convívio e na interação que os desejos, expectativas, frustrações e insegurança são reelaborados e se materializam em movimentos coletivos, de ordem cultural ou política, por exemplo. E para que isso aconteça algumas condições institucionais devem ser garantidas além das econômicas, é preciso que os jovens tenham a possibilidade de estabelecer seus pontos de encontro. E que estes pontos comportem a possibilidade de integração. Do contrário, o potencial de renovação cultural se dissipa.
Frente a isso podemos, finalmente, estabelecer alguns nexos entre a condição juvenil e o programa e estratégia socialistas. Antes de mais nada, é preciso reconhecer que a opção por potencializar a presença e a prática da juventude enquanto elemento culturalmente inovador pressupõe uma opção ético-política por uma sociedade dinâmica, atravessada por pressões renovadoras. A plena realização deste objetivo implica, em última, numa luta pelo fim das classes sociais, ou seja, a implantação e o aprofundamento do projeto socialista. Ao mesmo tempo, introduz neste projeto um componente de instabilidade indispensável à sua caracterização enquanto projeto radicalmente democrático de organização da vida coletiva. Afinal, o socialismo não representa o fim dos conflitos humanos, e sim uma maneira radicalmente democrática de equacioná-los. Nessa equação deve-se preservar o papel da juventude enquanto agente potencial de renovação cultural.
Mas não é somente do ponto de vista do programa socialista que a juventude pode ocupar um papel importante. Na própria construção deste projeto a juventude pode ser incorporada como elemento dinâmico. Neste caso, cabe aos socialistas lutar para que o potencial de renovação cultural que se opera a partir do meio juvenil se realize, sob o capitalismo, no sentido de consolidação de uma cultura participativa e humanista, marcada pelo respeito à diferença e pelo intransigente combate à desigualdade e às opressões de toda ordem. Cabe aos socialistas, ao mesmo tempo, lutar para que essas energias sejam aproveitadas nas lutas pelo alargamento das condições sociais e econômicas que condicionam os movimentos de renovação cultural da sociedade.
Isso implica num duplo movimento: primeiro, reunir e organizar as energias disponíveis no meio juvenil, procurando, a partir de uma análise da realidade, identificar os lugares e setores da sociedade em que o seu potencial de renovação se manifesta sob condições mais favoráveis, sobretudo em termos econômicos e sociais. E, segundo, aproveitar as energias já existentes neste e noutros segmentos da sociedade para alargar as condições existentes, onde quer que estas sejam restritivas à experiência juvenil. Tarefa esta que se desdobra em duas frentes: a luta por dentro do Estado, traduzindo as mudanças necessárias, por exemplo, em políticas públicas voltadas ao segmento jovem; e também na luta por fora do Estado, reunindo energias e exercendo pressões sem as quais nenhuma mudança significativa no plano institucional pode efetivamente se realizar.
Carlos Henrique M. Menegozzo é sociólogo e bibliotecário, especialista em arquivologia. Dedica-se à história da esquerda e dos movimentos estudantis no Brasil nos anos 1970 e 1980, e ao tratamento de fontes documentais relacionadas a essas temáticas. Trabalha atualmente no Centro Sérgio Buarque de Holanda/Fundação Perseu Abramo.
Nota do autor: Agradeço à comissão organizadora e aos participantes do Seminário “Os Movimentos Sociais e a Luta pelo Socialismo”, ocorrido em julho em São Paulo, onde apresentei uma primeira versão do texto. E também à Evelize Pacheco e Joana Borges, pela leitura crítica e contribuições.