Não deixemos as manifestações de alegria dos eurolíderes amargar a nossa capacidade de julgamento.

Na Grécia, o resultado não foi tão mau assim. Uma vitória do Syriza, agora, neste momento, poderia ser algo desastroso. Não que a vitória, ainda que apertada, da Nova Democracia, não seja algo desastroso. Enfim, o desastre é a situação que o povo grego está vivendo. E a catástrofe é a solução hegemônica proposta.

Mas para entender a natureza do resultado é necessário visualizar o mundo que emoldura. É necessário reconhecer que, quando falamos a palavra “Europa”, ou pelo menos nos países do seu centro hegemônico, e em muitos de sua nova periferia, estamos falando em países cujo imaginário político é muito atrasado. Ainda não chegaram ao século XXI, por exemplo, o século do Fórum Social Mundial, em que “um outro mundo é possível”. Ou deveria ser.

Os movimentos mais progressistas nestes países lutam – e generosamente, deve-se dizer – para integrar minorias e discriminados nesse mundo que aí está. Sem mudar uma vírgula nele, quanto mais um ponto e vírgula. Sem discutir estruturas de poder nacionais ou internacionais. Na maioria sentem-se bem na OTAN. Ou lutam para criar um biocapitalismo que respeite a natureza de ponta a ponta, como se isso fosse utopicamente possível. Muitos dos movimentos de trabalhadores são fixados em estratégias “win-win”, como se no sistema capitalista isso fosse possível, quer dizer, alguém sair ganhando sem que alguém saia perdendo. São países em que de fato a história parece ter parado. Ainda lutam com formas de um neorracismo disfarçado de “visão das diferenças culturais”.

Neles, a “austeridade” é um valor universal, mais até do que a democracia. Porque só se pode votar por ela: votar por uma alternativa é “votar errado”. Moralmente errado, é bom entender.

Exemplos locais: parte da cúpula do SPD alemão achou o programa de François Hollande “naïve”, isto é, ingênuo. Como se reverter da “austeridade” eurocêntrica para o crescimento fosse algo “eurofórico”, uma manifestação de desrazão política. Agora, depois da eleição grega, todos os partidos alemães – inclusive SPD e Verdes, com a exceção da Linke – se regozijaram com a “vitória do euro”.

E são países de esquerda reduzida a um nível de sobrevivência (Alemanha), destroçada (Grécia), inexistente (maioria dos países do Leste), domesticada (Itália), desgovernada (Portugal e Espanha) ou transformada em nichos acadêmicos (Reino Unido). Ou ainda dispersa em movimentos numericamente poderosos, reunidos em manifestações agônicas, mas de expressão institucional ainda pequena, como no caso dos Indignados ou dos Occupy…

Num quadro desses, a vitória do Syriza, ainda que justa, não prosperaria. Não sei nem se seu líder Alexis Tsipras conseguiria formar um governo. Não são só os socialistas que se recusariam a compor com o Syriza, assim como este com aqueles. Os comunistas também se recusam a conversar com ele, acusado de “maoísmo” e “trotskismo”. Não é só a direita que vive ainda no fim ou até no começo do século XX. Parte da esquerda também vive no século passado.

Ademais, a Grécia, abalada do jeito que está, não teria condições de, sozinha, enfrentar a Troika Européia mais os governos dos 27 países da UE, todos contra ela. Não queremos mais Comunas de Paris, por mais generosa que ela tenha sido em 1871. Chega desse tipo de enfrentamento desproporcional ou despreparado que leva aos massacres que conhecemos – os militares e os econômicos. Na Grécia, trata-se agora, de imediato, de acumular forças, experiência, de neutralizar o Aurora Dourada (7% de votos!) que quer impor pára-governos neonazis em bairros de imigrantes, invadir creches e hospitais para expulsá-los, e cujas idéias xenófobas têm penetração na polícia, e até entre socialistas.

Olhemos a França: a esquerda engatinha. Renasceu das cinzas, e move-se, é certo. Mas ainda está longe de ser por de pé e clamar por uma nova Europa. De qualquer modo, o resultado das eleições é promissor, embora recheado de contradições. Por exemplo: se de um lado é ótimo que Marine Le Pen tenha fracassado em seu propósito de tornar-se deputada pelo distrito de Hénin-Beaumont, na região de Port-de-Calais, derrotada que foi no segundo turno pelo socialista Philippe Kemel (50,11% x 49,89%), de outro lado Jean-Luc Mélenchon, ex-candidato a presidente pela Frente de Esquerda, sequer conseguiu os 12,5% de votos necessários para passar ao segundo turno, no mesmo distrito. Os socialistas e seus aliados próximos e automáticos conseguiram a maioria absoluta na Câmara de Deputados e a esquerda tem maioria no Senado. Ainda na Câmara, segundo o Le Monde, a esquerda tem quase 350 assentos em 577. Vamos ver o que vai fazer com isso.

Ainda na França, uma boa e má notícia, misturadamente. A Frente Nacional, de Marine Le Pen, conseguiu eleger apenas dois deputados. É pouco para quem queria se tornar a “voz da direita francesa”. Mas é demais, já que estão de volta ao parlamento nacional pela primeira vez desde 2002, quando foram de lá banidos pelo voto, embora tenham mantido assentos em parlamentos locais.

Vamos adiante. No Egito tudo é incerteza. Houve um movimento claro para neutralizar toda e qualquer conquista da sua versão da primavera árabe. Logo antes do segundo turno da eleição presidencial, disputada neste fim de semana que passou, a Corte Suprema egípcia determinou o fechamento da Assembléia Nacional, por tecnicalidades legais na votação. Com isso devolveu o poder legislativo – e constituinte – ao Conselho Supremo das Forças Armadas, que, de imediato, baixou um decreto limitan do os poderes do novo presidente a ser eleito.

A eleição em si foi disputada por Ahmed Shafiq, militar da Força Aérea, ex-primeiro ministro e herdeiro de Hosni Mubarak, e Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana. Este último clama vitória, e contagens não oficiais (a oficial só sairá no correr da semana) dizem que, com quase 100% das urnas apuradas, ele vencia seu adversário por 12,7 milhões de votos a 11,84, uma diferença irreversível.

O comparecimento foi baixo, 46%, a descrença está em alta. Relatos testemunhais dão conta de que muitos dos votos por Morsi eram na verdade contra Shafiq, visto como um coveiro da revolução popular.

O Parlamento, mesmo dissolvido, vai se reunir para apreciar a situação.
O que vai acontecer? Ninguém sabe. Talvez nem mesmo o Conselho Supremo das FFAA, que quer manter as rédeas do país.

É esperar e torcer para crer que a revolução popular não será agora esmagada.

*Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.