Desacato é o 13 de maio: Emicida, o “Dedo na ferida” e os capitães do mato
14 de maio de 2012 -
A forjada abolição da escravatura no Brasil, ocorrida em 1888, já não é referendada por nós há muito tempo. Todxs sabemos dos problemas existentes em “comemorarmos” uma data que ainda está engasgada na garganta de quem foi escamoteadx para os lugares mais remotos, negligenciados e esquecidos por quem promovia o projeto de branqueamento e higienização da nação ambiciosa por esquecer que houve escravidão no Brasil, assim como esquecer que certa vez existiram pretxs nela.
“Dedicado às vítimas do Moinho, Pinheirinho, Cracolândia, Rio dos Macacos, Alcântara e todas as quebradas devastadas pela ganância” assim se inicia a música “Dedo na ferida” que ocasionou a prisão o rapper Emicida, hoje, 13 de maio, após um show em Belo Horizonte-MG. A música é banhada por uma indigesta indignação diante do abuso que o aparelho coercitivo do Estado destina a uma dada população, de uma dada cor, que vive nos arredores de um dado poder e que, aos olhos desse, deveria ter desaparecido em um dado 1888.
O rapper segue em sua canção cheia de scratchs, com a voz icônica de Mano Brown, nos lembrando que a fúria negra ressucitará sempre e indaga: “Auschwitz ou gueto? índio ou preto?”. O tratamento da polícia diante da população negra, que segue arquitetando o precário mais de um século depois do pseudo “presente da princesinha”, é envolto por uma violência que nos faz questionar se tudo ficou como memória amarga dos tempos da colônia. O genocídio da população negra brasileira é latente, as instruções de perseguição ao “elemento cor padrão” já figuraram (ainda figuram?) em cartilhas da Polícia Militar, barracos de centenas de famílias são derrubados e sangue é derramado visando o bem estar de um único empresário, e o desacato é do artista que cometeu o "crime" de não ter a cor certa para portar a legítima defesa que é a liberdade poética?
“Contra porcos em castelo / O povo tem que cobrar com os parabelo /Porque a justiça deles, só vai em cima de quem usa chinelo /E é vítima, agressão de farda é legítima” eis aí a pedrada de Emicida, eis aí a voz dxs silenciadxs encontrando seus algozes tête-à-tête. Esse é produto que o discurso do rap carrega consigo, a liberdade RAPoética reverbera a fúria que jamais deixou de protagonizar nossas resistências cotidianas que vão desde pegar o ônibus lotado para o trabalho, até a organização de uma manifestação para a defesa das comunidades que os senhores da casa grande insistem em usurpar.
Não gosto nem um pouco de vislumbrar na minha frente um cenário com tantos resquícios de um passado espúrio, mas o fato é que as analogias são inevitáveis ao passo que o anacronismo fica sem justificativa de existir. Não é a-histórico dizer que o racismo perdura no Brasil se o que vemos é uma sociedade em que alguns figurões, donos de terras, mandam derrubar casas de gente negra e pobre. Não é a-histórico dizer que o racismo perdura no Brasil se o que vemos é um país que endereça “balas não perdidas” à população negra, que mata nossos jovens e se esconde atrás dos “autos de defesa” cheios de sangue. Não é a-histórico dizer que o racismo perdura no Brasil se o que vemos é uma polícia ignorante e despreparada que apenas atualiza o papel dos capitães do mato de outrora. Não é a-histórico dizer que o racismo perdura no Brasil se o que vemos é um artista tendo sua liberdade poética, expressiva e criativa sendo cerceada por um aparelho que deveria estar atento a questões urgentes, embora muito bem legitimadas e escamoteadas por brancos colarinhos.
13 de maio de 2012, nada mais do que 124 anos após a abolição, nos vemos perante um extremado abuso autoritário que costuma encontrar a arte apenas nos períodos de governos golpistas com sabor de chumbo. Como felizmente esse não é nosso atual caso, é fácil perceber que se o agente enunciador do discurso for da cor receptora das brutalidades do mundo e que se houver o “agravante” dessa mensagem ser veiculada por um gênero altamente estigmatizado como o rap, a cadeia surge como “saída” e simulacro de todo um passado escravagista pautado na exploração racial. Hoje foi um daqueles dias em que nós, descendentes de ex-escravizadxs, mais uma vez amargamos na boca a raiva de uma data pesada, revivemos o ódio forjado pelos poderosos e alastrado pelos capitães do mato (pardos irmãos de cor) nas trilhas desse país purulento de feridas, estávamos ali na figura de Emicida, uma voz dissonante questionadora do vil poder, desacatadxs pelo 13 de maio, sendo todxs dedos na ferida.
*Escurecimentos sobre o ocorrido no site do Emicida: http://www.emicida.com/
**Para ouvir “Dedo na ferida”: http://www.youtube.com/watch?v=QdvYAjQYdIs&feature=youtu.be