“O povo boliviano vive a maior revolução social”, afirma García Linera
Além de ser o vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera é um dos mais importantes intelectuais de esquerda, latino-americano, no continente. Ainda que sua profissão inicial seja o de matemático (estudou na Universidade Nacional Autônoma do México), formou-se como sociólogo na prisão e na prática.
A entrevista é de Luis Hernández Navarro e publicada pelo jornal mexicano La Jornada, 08-02-2012. A tradução é do Cepat.
Além de ser o vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera é um dos mais importantes intelectuais de esquerda, latino-americano, no continente. Ainda que sua profissão inicial seja o de matemático (estudou na Universidade Nacional Autônoma do México), formou-se como sociólogo na prisão e na prática.
A entrevista é de Luis Hernández Navarro e publicada pelo jornal mexicano La Jornada, 08-02-2012. A tradução é do Cepat.
Ele teorizou a experiência boliviana de transformação como ninguém fez, ou seja, com originalidade, profundidade e desenvoltura. E a experiência boliviana atualmente é uma referência obrigatória e cada vez mais ascendente no movimento popular latino-americano. García Linera conhece e domina com profundidade o marxismo clássico, mas está muito longe de ser doutrinário. Seu pensamento é muito influenciado pela obra de Pierre Bourdieu.
Na entrevista para La Jornada, o vice-presidente assinala que o fato fundamental que se vive no atual processo, em curso, de transformação política é que os indígenas, maioria demográfica, são hoje ministros e ministras, deputados, senadores, diretores de empresas públicas, redatores de constituições, juízes máximos da justiça, governadores; presidente. Este fato, desde a sua fundação, significa a maior revolução social e igualitária que aconteceu na Bolívia.
García Linera caracteriza o modelo econômico de seu país como pós-neoliberal e de transição pós-capitalista. Um modelo que recuperou o controle dos recursos naturais, que estavam nas mãos de estrangeiros, para colocá-los nas mãos do Estado, dirigido pelo movimento indígena.
Eis a entrevista.
Faz seis anos que vocês governam a Bolívia. Houve, realmente, avanços na descolonização do Estado?
Na Bolívia, o fato fundamental que vivemos é que aquelas pessoas, a maioria da população de antes e de agora, os indígenas, a quem a brutalidade da invasão e os sedimentos centenários da dominação estabeleceram no próprio sentido de classes dominantes e classes dominadas que estavam predestinados a serem camponeses, trabalhadores de postos inferiores, artesãos informais, porteiros ou garçons, hoje são ministros e ministras, deputados, senadores, diretores de empresas públicas, redatores de constituições, juízes máximos da justiça, governadores; presidente.
A descolonização é um processo de desmontagem das estruturas institucionais, sociais, culturais e simbólicas que subsumem a ação cotidiana dos povos aos interesses, às hierarquias e às narrativas impostas por poderes territoriais externos. A colonialidade é uma relação de dominação territorial que se impõe à força e com o tempo se ‘naturaliza’, inscrevendo a dominação nos comportamentos ‘normais’, nas rotinas diárias, nas percepções de mundo dos próprios povos dominados. Por conseguinte, desmontar essa maquinaria da dominação requer muito tempo. Em especial, o tempo que é necessário para modificar a dominação convertida em sentido comum, no hábito cultural das pessoas.
As formas organizativas comunais, agrárias e sindicais do movimento indígena contemporâneo, com suas formas de deliberação em assembleias, de giro tradicional de cargos, em alguns casos, de controle comum dos meios de produção, são atualmente os centros de decisão na política e em boa parte da economia na Bolívia.
Nos dias atuais, para influir nos pressupostos do Estado e para saber a agenda governamental não adianta andar de braços dados com altos funcionários do Fundo Monetário, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e com as embaixadas estadunidenses ou europeias. Hoje, os circuitos do poder estatal passam pelos debates e decisões das assembleias indígenas, operárias e de bairros.
Os sujeitos da política e a institucionalização real do poder moveu-se para o âmbito do pobre e do indígena. Os anteriormente chamados ‘cenários de conflito’, como sindicatos e comunidades, hoje são os espaços do poder fático do Estado. E os antes condenados para a subalternidade silenciosa, atualmente são os sujeitos decisórios da trama política.
O fato da abertura do horizonte de possibilidade histórica dos indígenas, de poderem ser agricultores, operários, pedreiros, empregadas, mas também chanceleres, senadores, ministras ou juízes supremos, é a maior revolução social e igualitária que ocorreu na Bolívia desde sua fundação. ‘Índios no poder’, é a frase seca e depreciativa com que as deslocadas senhoras classes dominantes anunciam a hecatombe desses seis anos.
Como caracterizar o modelo econômico posto em prática? É uma expressão do socialismo no século XXI? É uma modalidade do pós-neoliberalismo?
Basicamente pós-neoliberal e de transição pós-capitalista. Recuperou-se o controle dos recursos naturais que estava nas mãos estrangeiras, para colocá-los nas mãos do Estado, que é dirigido pelo movimento indígena (gás, petróleo, parte dos minerais, água, energia elétrica); enquanto outros recursos, como o imposto sobre a terra, o latifúndio e as florestas, passaram para o controle de comunidades e povos indígena-camponeses.
O Estado é, no momento atual, o principal gerador de riqueza do país, e essa riqueza não é valorizada como capital; ela é redistribuída na sociedade por meio de bônus, rendas e benefícios sociais diretos para a população, além do congelamento das tarifas dos serviços básicos, dos combustíveis e a subvenção da produção agrária. Pretende-se priorizar a riqueza como valor de uso, acima do valor de troca. Nesse sentido, o Estado não se comporta como capitalista coletivo, próprio do capitalismo de Estado, senão como um redistribuidor de riquezas coletivas entre as classes trabalhadoras e um potencializador das capacidades materiais, técnicas e associativas dos modos de produção camponeses, comunitários e artesanais urbanos. Nesta expansão do comunitário agrário e urbano depositamos nossa esperança de transitar pelo pós-capitalismo, sabendo que essa também é uma obra universal e não somente de um país.
A partir da Bolívia, como se vê o processo de integração regional? Que papel desempenham os Estados Unidos e a Espanha? Que espaço tem China, Rússia e Irã?
O continente latino-americano atravessa um ciclo histórico excepcional. Grande parte dos governos é de caráter revolucionário e progressista. Os governos neoliberais tendem a mostrarem-se retrógados. E, ao mesmo tempo, a economia latino-americana desdobra iniciativas internas que a permite enfrentar de maneira vigorosa os efeitos da crise mundial. Em particular, os mercados regionais e a vinculação com a Ásia definiu uma arquitetura econômica continental de um novo tipo. É necessário apostar no aprofundamento desta articulação regional e, se possível, projetarmos uma espécie de Estado regional de estado e nações. Comportarmo-nos como Estado regional no âmbito do uso e negociação planetária das grandes riquezas estratégicas que possuímos (petróleo, minerais, lítio, água, agricultura, biodiversidade, indústria semielaborada, força de trabalho jovem e qualificada…) e, internamente, respeitar a soberania estatal e as identidades nacionais regionais que o continente possui. Só assim poderemos ter voz e força própria no curso das dinâmicas de mundialização da vida social.
Existe um papel ativo de Washington para sabotar a transformação boliviana em curso?
O governo estadunidense nunca aceitou que as nações latino-americanas possam definir seu destino porque sempre considerou que formamos parte da área de influência política para sua seguridade territorial, e somos o seu centro de provisão em riquezas naturais e sociais. Qualquer dissidência neste enfoque colonial coloca a nação insurgente na mira de ataque. A soberania dos povos é o inimigo número um da política estadunidense.
Isso aconteceu com a Bolívia nesses seis anos. Nós não temos nada contra o governo estadunidense, nem contra o seu povo. No entanto, não aceitamos que nada, absolutamente que ninguém de fora nos venha dizer o que temos que fazer, dizer ou pensar. E quando como governo de movimentos sociais começamos a assentar as bases materiais da soberania estatal ao nacionalizar o gás; quando rompemos com a vergonhosa influencia das embaixadas nas decisões ministeriais; quando definimos uma política de coesão nacional enfrentando abertamente as tendências separatistas latentes nas oligarquias regionais, a embaixada dos Estados Unidos não apenas apoiou financeiramente as forças conservadores, como as organizou e dirigiu politicamente, numa brutal ingerência em assuntos internos. Isso nos obrigou a expulsar o embaixador e depois a agência antidrogas desse país (DEA).
Desde então, os mecanismos de conspiração tornaram-se mais sofisticados: usam organizações não governamentais, infiltram-se por intermédio de terceiros nos agrupamentos indígenas, dividem e projetam lideranças paralelas no campo popular, como recentemente ficou demonstrado mediante o fluxo de chamadas da própria embaixada de alguns dirigentes indígenas da marcha do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS), no ano passado.
De qualquer maneira, nós buscamos respeitosas relações diplomáticas, mas também estamos atentos para repelir as intervenções estrangeiras de ‘alta’ ou ‘baixa’ intensidade.
Alguns setores da esquerda aponta que o bloco conservador conseguiu rearticular-se e tomar a ofensiva, enquanto o movimento social que levou o MAS ao poder foi absorvido pela política institucional. É correta esta consideração?
Hoje, o bloco conservador de oligarquias estrangeirizantes não tem um projeto alternativo de sociedade capaz de articular uma vontade geral de poder. O horizonte da atual política boliviana está marcado por um tripé virtuoso: o pluralismo da nação (povos e nações indígenas no mando do Estado); a autonomia (desconcentração territorial do poder) e a economia plural (coexistência articulada pelo Estado dos diversos modos de produção).
Temporalmente derrotado o projeto neoliberal de economia e sociedade da direita, nesse momento o que caracteriza a política boliviana é a emergência de ‘tensões criativas’ no interior do mesmo bloco nacional-popular no poder. Passado os grandes momentos de ascensão das massas, quando se construiu o ideário universal das grandes transformações, o movimento social vive em alguns casos um processo de retrocesso corporativo. Tendem a prevalecer, às vezes, interesses locais acima dos interesses nacionais, ou as organizações se enroscam em rivalidades internas pelo controle de cargos públicos. Porém, também emergem novas temáticas não previstas sobre como conduzir o processo revolucionário. É o caso do tema da defesa dos direitos da mãe terra, tensionados com a exigência também popular de industrializar os recursos naturais.
Como se pode notar, tratam-se de contradições no meio do povo, tensões que submetem ao debate coletivo o modo de levar adiante as mudanças revolucionárias. E isso é saudável, é democrático e é o ponto de apoio na renovação vivificante da ação dos movimentos sociais. Embora também se tratem de contradições que podem ser usadas pelo imperialismo e pelas forças de direita entocadas, que de modo ventríloquo e travestido projetam seus interesses, ao longo prazo, por meio de alguns sujeitos populares e de discursos aparentemente altermundistas e ecologistas.
Em setembro do ano passado, a marcha dos povos indígenas em defesa do TIPNIS e contra a construção de uma estrada foi reprimida pela polícia. O fato foi apresentado para a opinião pública como a perda de apoio indígena ao governo de Evo Morales. Foi afirmado que o governo boliviano obstinou-se em construir a estrada porque recebeu apoio econômico da empresa petroleira brasileira OAS. Isso está correto?
A população indígena na Bolívia, como na Guatemala, é majoritária em relação ao resto dos habitantes. São 62% os bolivianos indígenas. As principais nações indígenas são a aymara e a quéchua, com cerca de seis milhões de pessoas localizadas principalmente no altiplano, nos vales nas áreas de yungas e também em terras baixas. Outras nações indígenas são os guaranis, moxeños, yuracares, chiman, ayoreos e outras 29 que habitam a Amazônia, a Chiquitania e o Chaco, em terras baixas. A população total destas nações em terras baixas é estimada em 250 mil e 300 mil habitantes, no seu total.
O conflito sobre o TIPNIS envolveu alguns povos indígenas das terras baixas, mas se manteve o apoio dos indígenas das terras altas e vales, que são 95% da população indígena da Bolívia. E dos indígenas mobilizados, a maior parte eram dirigentes de outras áreas que não precisamente do TIPNIS, mas que contam com um apoio sistemático de organismos não governamentais ambientalistas, vários deles financiadas pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), além do respaldo das principais redes de comunicação televisiva privada, de propriedade de velhos militantes da oligarquia separatista, e com ampla influência na construção da opinião pública da classe média. Esses dias chegou a La Paz outra marcha de indígenas das terras baixas e com maior presença de indígenas do TIPNIS, que demandam a construção da estrada para o parque, argumentando que não é possível que os deixem à margem dos direitos à saúde, educação e transporte, que atualmente só podem acessar depois de dias de caminhada.
O problema é complexo. Estão mesclados temas próprios do debate revolucionário, como o do difícil equilíbrio entre o respeito à mãe terra e a necessidade urgente de ligar o país após séculos de desarticulação isolacionista das regiões. Está, também, o debate entre a relação orgânica e a liderança dos povos indígenas das terras altas, no Estado de pluralidade nacional, diferente da relação ainda ambígua com o Estado plurinacional por parte dos povos indígenas das terras baixas.
Porém, também é por meio da estratégia da oligarquia regional de Santa Cruz para impedir essa estrada, que desvincularia a atividade econômica de toda a Amazônia de seu controle empresarial. É o interesse estadunidense de resguardar a Amazônia como seu reservatório de água e biodiversidade, e de promover divisões entre as lideranças indígenas para criar condições para a expulsão dos indígenas do poder estatal. É o interesse de algumas ONGs acostumadas a fazer grandes negócios privados com os parques.
Em todo caso, em meio a essa trama de interesses, como governo temos que ter a capacidade de resolver democraticamente as tensões internas, e de desvelar e neutralizar os interesses contrarrevolucionários que muitas vezes se vestem de roupagem pseudorrevolucionário.
Por que construir essa estrada apesar da oposição de uma parte da população? Por três motivos. O primeiro, para garantir à população indígena do parque o acesso aos direitos e garantias constitucionais: água potável para que as crianças não morram de infecções estomacais. Escolas com professores que ensinem em seu idioma, preservando sua cultura e enriquecendo-a com outras culturas. Acesso a mercados para levar seus produtos sem ter que demorar uma semana em balsas para vender seu arroz ou comprar sal dez vezes mais caro que em qualquer armazém do bairro.
O segundo motivo é que a estrada permitirá ligar pela primeira vez a Amazônia, que é uma terceira parte do território boliviano, com o resto das regiões dos vales e altiplano. A Bolívia mantém isolada a terceira parte de sua territorialidade, o que permitiu que a soberania do Estado fosse substituída pelo poderio do fazendeiro, do madeireiro ou do narcotraficante.
E o terceiro motivo é o caráter geopolítico. As tendências separatistas da oligarquia, que estiveram a ponto de dividir Bolívia, em 2008, foram contidas porque foram derrotadas politicamente durante o golpe de Estado de setembro desse ano, e porque parte de sua base material, a agroindústria, foi ocupada pelo Estado. No entanto, há um último pilar econômico que mantém em pé as forças retrógadas de tendências separatistas: o controle da economia amazônica, que para chegar ao resto do país, obrigatoriamente, tem que passar pelo processamento e financiamento de empresas sob o controle de uma fração oligárquica assentada em Santa Cruz. Uma estrada que ligue diretamente a Amazônia com os vales e o altiplano reconfiguraria radicalmente a estrutura de poder econômico regional, derrubando a base material final dos separatistas e dando lugar a um novo eixo geoeconômico no Estado. O paradoxo de tudo isto é que a história coloca alguns esquerdistas como os melhores e mais loquazes defensores dos interesses mais conservadores e reacionários que existe nesse país.
Dizem que a Bolívia segue sendo uma abastecedora de matérias-primas no mercado internacional e que o modelo de desenvolvimento na prática (que alguns analistas qualificam como extrativistas) não questiona este papel. Isso é correto? Trata-se de uma fase transitória de acumulação que é acompanhada de uma redistribuição de renda?
Nem o extrativismo, nem o não extrativismo e nem o industrialismo são uma vacina contra a injustiça, a exploração e a desigualdade. Em si mesmos, não são nem modos de produzir, nem modos de administrar a riqueza. São sistemas técnicos de processar a natureza mediante o trabalho. E dependendo de como se usam esses sistemas técnicos, de como se administra a riqueza assim produzida, poderá haver regimes econômicos com maior ou menor justiça, com exploração ou sem exploração do trabalho.