Lições de janeiro: uma reflexão sobre o Fórum Social Mundial
O Fórum Social Mundial Temático, que transcorreu em Porto Alegre entre os dias 24 e 29 de janeiro deste ano, como sempre suscitou muitas controvérsias entre as distintas forças políticas e representações da sociedade civil, que participaram daquele evento. Ou que não participaram, mas observaram-no com maior ou menor dose de boa vontade.
O Fórum Social Mundial Temático, que transcorreu em Porto Alegre entre os dias 24 e 29 de janeiro deste ano, como sempre suscitou muitas controvérsias entre as distintas forças políticas e representações da sociedade civil, que participaram daquele evento. Ou que não participaram, mas observaram-no com maior ou menor dose de boa vontade.
Foi uma “feira ideológica”? Uma “internacional performática” dos fragmentos? Uma presença anárquica da “velha” ou “nova esquerda” meio pasmada, ainda, com as grandes mudanças globais tuteladas pelo capital financeiro em crise? Uma expressão inorgânica dos “novos” ou “velhos” movimentos sociais? Uma exibição de novas culturas políticas em formação? Creio que foi tudo isso e mais um pouco. E foi bom. Um grande festival de opiniões sobre os mais variados temas, com algumas receitas de praxe, certo nível de inventividade, muita confusão ideológica e críticas ferozes à “política estabelecida”. Nenhuma surpresa.
Seria possível outra coisa? Creio que não. Os receituários tradicionais da esquerda organizada ainda gravitam, em regra, entre o esquerdismo, que se abriga na radicalização superficial das categorias do serviço público e dos movimentos sociais, avessos, em regra, ao mundo “corrompido” da política parlamentar – como se a esfera da política estivesse fora da reprodução dos costumes e da cultura da própria sociedade civil -, de um lado, e a proposta de “doses”, maiores ou menores, de liberalismo econômico, de outro, sem a inventividade transformadora que caracterizou as distintas formações de esquerda em outras épocas. Nas lutas contra os regimes ditatoriais ou autoritários (europeus e latino-americanos), entre os anos 50 e 70 o debate teórico e doutrinário sobre democracia e revolução estava sempre presente, o que exigia mais inteligência e esforço do que simplesmente dizer que os governos são maus porque não atendem as demandas dos movimentos.
A revolução perdeu. Perdeu com o fim do socialismo real, com as mudanças tecnológicas que geram agregação de valor pelo conhecimento mais do que pelo trabalho produtivo mecânico; perdeu porque a subjugação do capital torna cada vez mais indistinto o tempo livre do tempo de trabalho, e perdeu com o império das burocracias autoritárias bloqueadoras das utopias. A ausência de democracia (a incapacidade de estruturar um Estado de Direito Democrático superior às experiências do iluminismo), a covardia dos partidos comunistas no poder perante o pluralismo, a superioridade do capitalismo estabelecido em desenvolver os aparatos produtivos e o armamentismo de conquista, tudo concorreu para aquela derrota.
As lutas deste período, porém, não foram perdidas. Através delas obtivemos o restabelecimento da democracia política, a legalização de todas correntes de opinião política e ideológica, a retomada plena da ideia de construção da nação, fora da tutela imperial. Além disso, promovemos ao estatuto da Constituição os direitos sociais mais importantes e subtraímos o estado da tutela absoluta das Forças Armadas. Seu poder estava “fora do lugar” e a conquista da democracia mostrou que estas Forças não eram polícias internas do império.
É muito e é pouco. Porque agora estamos começando a perder, novamente. A democracia está ameaçada em escala global, as guerras de conquista da energia fóssil retomam seu fôlego e as instituições democráticas -modeladas há mais de 200 anos- dão claras demonstrações de esgotamento. A “efetividade” da democracia está sendo cada vez mais barrada sem ter se realizado, e ela se demonstra, com algumas exceções, cada vez mais impotente. O capitalismo suporta cada vez menos a democracia e a democracia é cada vez menos adaptável ao capitalismo. Para que as promessas das constituições democráticas sejam realizadas com certa plenitude o desejo libertário deve superar as leis de bronze, mas ele cabe cada vez menos no seu contorno.
É a “inefetividade” da democracia. Os direitos cada vez mais descolados da cotidianeidade. Penso que esta categoria jurídica e política, devidamente traduzida para as lutas políticas que tem relevância em todos os países, revela a possibilidade de produzir uma ação unitária das esquerdas parlamentares e não parlamentares. Das esquerdas dos movimentos sociais e da intelectualidade. Das esquerdas que governam e que estão na oposição. Uma ação unitária de todos os que prezam as conquistas contidas nos diversos Estados de Direito, como transição para um programa de maior fôlego, ou mesmo como “programa máximo” em sentido lato, para quem o desejar.
Traduzo esta “inefetividade” com a seguinte questão estratégica para as esquerdas: os direitos sociais mínimos, das constituições democráticas, perderão – cada vez mais – a sua efetividade, se o capital financeiro prosseguir na tutela absoluta sobre as decisões dos estados, como ocorre agora na União Européia. Esta tutela, dependendo da evolução da crise, pode aguçar-se em todas as partes do mundo. A redução a zero, dos pactos políticos que compuseram o poder constituinte e a substituição da força constitutiva da política, pela força política e normativa das burocracias dos bancos centrais, esgota a promessa democrática tradicional: as revoluções democráticas à feição das burguesias do Século 19 esgotam, crescentemente, seu potencial democrático e social. O empreendedorismo é substituído pela cultura do jogo financeiro virtual do enriquecimento sem trabalho.
Nenhuma das grandes demandas sociais, ecológicas, culturais-nacionais, étnico-nacionais, econômicas e financeiras dos “movimentos” e dos partidos de esquerda, poderão ser cumpridas, com certa abrangência e qualidade, se o império do capital financeiro insaciável, sobre os estados, não for derrogado pela política. A revolução nacional-democrática dos anos 60 deve ser substituída pela revolução internacional democrática, global, para libertar os estados do jugo do capital financeiro: eis um dos temas que o Fórum Social Mundial poderia tratar, sem exigir que as forças que o compõem percam a sua natureza e especificidade.
Unida a esta questão macrofinanceira global -que é produto de uma política mundial dos agentes do capital, dos seus partidos e das suas lideranças- está a questão das desigualdades sociais, que suportam o modelo. As desigualdades, como estão concretizadas depois da crise do “sub prime” e da crise européia, expulsam, agora, da sociedade formal, milhões de seres humanos. E esta expulsão se dá não só na periferia dos sistema, mas também no seu centro orgânico e, ainda, tornam os países pobres da África e da América ainda mais pobres miseráveis.
Contraditoriamente, o modelo de desigualdade universal entre países e povos reflete nas empresas privadas e no Estado sem uniformizar a situação dos trabalhadores, como pensava Marx – o que era apenas uma tendência da época – mas formando, nestes dois mundos, público e privado, castas privilegiadas que, pela sua capacidade de poupar, ligam o seu destino ao rentismo e ao consumo suntuário. Estas castas, já não são mais os simples “colarinhos brancos”, mas formaram uma base social intermediária do capital, tanto no plano da política como no plano financeiro propriamente dito, com programa de vida próprio e estilo de vida separado dos pobres em geral e dos assalariados de renda baixa e média.
Os altos executivos dos bancos, das agências financeiras globais, públicas e privadas, os executivos e “managers”, em geral, dos grandes conglomerados privados, constituem uma base política e social ampla para dar sustentação às políticas de desregulação e de liquidação das políticas públicas de caráter distributivo. Talvez Gramsci os chamasse de “funcionários da superestrutura”, especialistas da concentração de renda, que produziram o “sub prime” e ganharam com ele e foram, ainda, salvos pela teta generosa do Estado, ou seja, pela própria poupança pública.
A agenda da tutela do capital financeiro sobre os estados e a agenda das desigualdades sociais são visíveis. Compõem uma agenda democrática “pura”, em todos os sentidos, e não são difíceis de serem compreendidas pelas grandes massas e – inclusive aqui no Brasil – diretamente acessíveis às chamadas “novas classes médias”, os “lutadores”, como já lhes chamaram. São os que formam um importante contingente social, originário da inclusão social, produtiva e educacional, proporcionada pelos governos do Presidente Lula e consolidados pela Presidenta Dilma. Esta dupla agenda pode ser acordada pela ampla maioria de governos, instituições e partidos, participantes do Fórum Social Mundial, para compor uma luta internacional, inspirada pelo Fórum e em seu nome, mas multifacetada de acordo com as condições das regiões onde elas se travam.
O grande problema do Fórum é a possibilidade, primeiro: do isolamento dos movimentos sociais, em relação ao curso das lutas políticas reais, que se travam no interior da estrutura estatal, no âmbito dos poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário -; e segundo: o isolamento dos partidos concretos, realmente existentes, em relação aos movimentos sociais. Eles estão nos sindicatos e nas instituições de representação da sociedade civil e também estão nos próprios movimentos, carentes de agenda política universal. Esta transição, dos movimentos para o coração do Estado, através da política, é o verdadeiro desafio revolucionário do nosso tempo e o Fórum Social Mundial deve uma contribuição para a solução deste enigma, sob pena dele esgotar-se numa estética de protesto sem causa política dotada de universalidade.
Como é que os rebeldes de “Chiapas”, bem como os indígenas da Bolívia organizados contra a estrada que cruza as suas terras e os índios brasileiros que lutam contra construção de Belo Monte – independentemente do mérito das suas demandas – se comunicam com a esfera da política, projetada no estado, para mais além dos protestos que se esvaziam e das análises acadêmicas libertárias? Trata-se, na realidade, da verdadeira “reinvenção” da política, no âmbito da crise da democracia, ora estimulada e aprofundada pela crise de dominação do capital financeiro global. Thomas Mann dizia que a Alemanha iria sair da miséria moral e material quando Karl Marx encontrasse Friedrich Holderin.
Qual o encontro que precisamos hoje? Em princípio um encontro de agendas entre os que tem fome e os que não tem trabalho, entre os que empobrecem e os que se recuperam pelo emprego, entre os que querem salvar o planeta e os que querem fazer a nação, entre a sociedade política (o estado) e a sociedade civil (onde estão os movimentos), para salvar o estado do domínio do capital financeiro e reinventar a democracia, tanto como elaboração intelectual e formal, como nas “práxis” governamentais pela esquerda. É impossível mudar o poder sem chegar ao poder.*&
*Tarso Genro é Governador do Rio Grande do Sul