Madrugada de 22 de janeiro. Residencial Pinheirinho em São José dos Campos, cidade distante 100 km da Capital. Dois mil policiais militares e guardas municipais chegam de surpresa e, numa verdadeira operação de guerra, com forte aparato repressivo (bombas de efeito moral, bala de borracha, cavalaria, cachorros e mesmo armas de fogo) iniciam a reintegração de posse de uma área ocupada há 10 anos por 1.700 famílias de trabalhadores pobres e que pertence à Selecta, empresa falida de Nagi Nahas, figura conhecida por acusações de fraudes em mega-especulações imobiliárias e devedor de tributos aos governos federal e municipal. O despejo forçado foi determinado por uma juíza de 1ª instância, Marcia Loureiro, e cumprida pelo governo Alckmin, em meio às tratativas e negociações para uma solução que envolvia o governo federal, municipal e estadual, os moradores e o juiz da massa falida. O comandante da operação declarou que resolveu usar o “fator surpresa” para não dar tempo das pessoas reagirem. Não vou entrar aqui no debate sobre os interesses imobiliários que podem estar por trás da decisão da juíza e da omissão do prefeito Cury.

Consolidado o despejo e demolição das casas, igrejas e comércio, as famílias foram alojadas precariamente em quadras esportivas. Numa delas, 1.069 crianças, muitas das quais ainda traumatizadas pela violência com que suas famílias foram tratadas na operação e centenas de idosos até agora desnorteados. Mesmo com o boicote de parte da grande mídia, as cenas violentas vieram à tona e chocaram a opinião pública. Ante o desgaste, os governos estadual e municipal anunciam que irão providenciar moradias para os desalojados.

Este triste episódio foi uma espécie de repetição do que ocorreu em 2009 num terreno baldio ocupado por 550 famílias e que pertencia à Viação Campo Limpo, no Capão Redondo, Zona Sul da Capital. A reintegração foi brutal por parte da PM. Os barracos foram incendiados e as famílias ficaram por diversos dias morando na rua. Depois da tragédia e pressionado, o governo estadual resolveu desapropriar a área. Um ano antes, em Limeira, a Justiça Estadual, a pedido do prefeito local, decidiu pela reintegração de uma área pertencente à antiga RFFSA do Governo Federal e ocupada por famílias de sem-terra que tinham organizado ali um assentamento rural. Chamou a atenção o forte aparato policial e a violência com que as famílias foram despejadas. Depois os sem-terra acabaram voltando e hoje ali é um assentamento regularizado pelo Incra. Muitos outros casos ocorrem quase que diariamente em nossas cidades.

Isso tudo poderia ser evitado se o poder público agisse com outra orientação. A começar pelos juízes que poderiam interpretar as leis também pelo viés dos direitos sociais, entre eles o da moradia digna, consagrados em nossas Constituições e não só pela defesa cega do direito à propriedade. Depois, pelos chefes dos poderes executivos, que poderiam destinar mais recursos para a área da construção de casas populares e, diante de processos de reintegração, agir como intermediários entre as partes envolvidas e as instâncias judiciais. Isso, aliás, é o que recomenda resoluções da ONU ratificadas pelo nosso País, onde o déficit habitacional atinge 5 milhões de famílias das quais 1 milhão vivem no Estado de São Paulo.

Em 2005, diante de situações de despejos forçados ocorrendo na cidade de São Paulo, apresentei o Projeto de Lei nº 572 propondo a criação de uma Comissão Estadual de Análise de Despejos, composta por 9 membros – 3 indicados pelo Executivo Estadual, 1 pelo Poder Judiciário, 1 pelo Ministério Público, 1 pelo Legislativo, 1 pela OAB, 1 pelo Condepe (Conselho Defesa Direitos da Pessoa Humana)e 1 pelos movimentos populares. A Comissão será acionada por qualquer parte interessada no processo encaminhando cópias da reintegração relacionadas a assentamentos rurais e urbanos. O objetivo da Comissão é discutir alternativas para as áreas a serem desocupadas de forma a garantir os direitos de todos os envolvidos nas ações, proprietários e moradores. Se decidida a reintegração de uma área, o Executivo comunicará o prefeito, o Judiciário, os conselhos municipais entre outros para garantir o respeito aos direitos básicos das pessoas. Acredito que para a maioria dos casos poderão ser construídas soluções, evitando-se assim o uso violento da força e o trauma social do despejo. O PL 572/2005 já foi aprovado em todas as Comissões Permanentes da Assembleia Legislativa, aguarda votação em Plenário e enfrenta oposição da base do Governo. É bom lembrar que lei similar já existe em Minas Gerais.

Vou trabalhar para que a comoção gerada pelo sentimento de injustiça com que foi tratado o caso do Pinheirinho para cobrar uma solução habitacional para aquelas famílias, mas também para criar um mecanismo institucional que possa se antecipar e evitar ações de despejos forçados em nosso Estado.

*Simão Pedro, deputado estadual pelo PT/SP e coordenador da Frente Parlamentar pela Habitação e Reforma Urbana na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.