Não é de hoje que o debate sobre a dificuldade de separação entre Estado e religião rende debates tanto na comunidade LGBT quanto entre mulheres do movimento feminista. Em um ano que registrou avanços na garantia de direitos dos homossexuais, com o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da união entre pessoas do mesmo sexo, o debate sobre a importância de respeitar o Estado laico ganhou fôlego nas discussões internas dos militantes e principalmente nas redes sociais.

O tema da laicidade tem sido incorporado na agenda das mulheres feministas com relação à legalização do aborto e na pauta de reivindicação dos movimento LGBT com relação ao casamento, adoção de filhos e combate à homofobia. Na avaliação do pesquisador Fernando Seffner do Instituto de Estudos da Religião, os movimentos sociais têm utilizado com cada vez mais frequência este debate para buscar avanços em políticas públicas e na legislação. “Percebo de maneira bem nítida que a discussão que o Estado é laico tomou corpo nos últimos anos. Isto porque as religiões, efetivamente, têm atuado como oposição a esses temas”, falou Seffner.

Diferente de países como o Irã ou o Vaticano, que seguem preceitos religiosos até mesmo na Constituição, o Brasil é um país que se define como laico. Mesmo assim, a forte pressão das instituições religiosas, quando o assunto envolve a sexualidade da comunidade LGBT e do movimento de mulheres, é uma demonstração da dificuldade de entendimento do que significa a laicidade das práticas do Estado.

A colisão do discurso religioso com as pautas que o movimento LGBT reivindica é um dos principais embates entre liberdade de credo e de orientação sexual. “Essa é a pedra no sapato da igreja. Se uma religião não quer acolher este tipo de comportamento até tem direito de rejeitar as pessoas, mas isso não pode extrapolar para os espaços públicos. É um autoritarismo dizer que não é só na minha igreja que não pode, mas não pode em lugar nenhum”, falou.

O professor também destacou que o debate sobre Estado laico envolve não somente a separação entre estado e religião, como também o respeito à diversidade religiosa. “O Estado laico não vai perseguir as religiões, é justamente o contrário. Uma sociedade profundamente religiosa como é o caso da brasileira deve assegurar a igualdade de direitos para quem é kardecista, católico, neopentecostal, budista, etc. Caso contrário, se volta ao período do Brasil Coroa”, compara Seffner.

“Cortina de fumaça legitima a violência contra os homossexuais”

Quando se fala em movimento gay, uma das principais bandeiras é a questão da criminalização da homofobia, prevista em projeto de lei que tramita há dez anos no Congresso e com grandes dificuldades de ser sequer votada na Câmara e no Senado. O ativista da ONG Nuances, Célio Golin, atribuiu a dificuldade de separar Estado e religião como obstáculo para avanço de direitos homossexuais. “A questão da sexualidade é muito complicada, pois pessoas com ideologia fundamentalista tentam convencer as outras de seus conceitos e dogmas. Então é uma invasão do direito de ir e vir do outro, associando questões negativas que criam uma espécie de cortina de fumaça no imaginário social legitimando a violência e preconceito contra os homossexuais”, argumentou.

Neste sentido, Seffner também defende que o comportamento da igreja em torno dos direitos dos homossexuais acaba legitimando o preconceito que se expressa na homofobia. “A igreja católica passou muitos anos dizendo que os negros não tinham almas, não diz mais porque se configura preconceito. Com relação aos homossexuais ainda não tivemos esse avanço”, comparou Seffner.

Golin também criticou as pressões políticas da bancada evangélica sobre o Executivo. “O movimento político que organizou uma bancada religiosa produziu dois episódios exemplares: a saída do ministro Antonio Palocci por pura pressão da bancada e o caso do kit homofobia. O fato é que nós temos um governo de esquerda que, em nome da governabilidade, faz arranjos que acabam trazendo segmentos fundamentalistas que atuam para barrar conquistas e o kit foi uma demonstração”.

“Estado não tem religião, o Brasil não é um estado confessional”

Já no caso do movimento feminista, o principal ponto de colisão é a legalização do aborto em caso de gravidez indesejada que enfrenta forte restrições de segmentos religiosos. As feministas alegam que a negação desse direito é uma das formas de “controle da religião sobre seus corpos”.

Para a feminista Télia Negrão, da Rede Feminista de Saúde, o Brasil todos os dias é desafiado em relação à laicidade de seu Estado. “Qualquer pessoa tem o direito de ter a religião, de não ter também, mas de professar o seu credo, seja qual for. Cada um tem a sua. Agora o Estado não tem religião, o Brasil não é um estado confessional”, criticou a feminista.

Ela analisa que existe uma influência muito pesada dos setores conservadores dentro das próprias estruturas de poder, não só no Legislativo mas também no Executivo e no Judiciário. “Os políticos têm muito medo das igrejas, nós temos um padrão cultural extremamente atrasado e retrógrado em relação à religião e aos corpos das mulheres. Avançar nesta perspectiva, significaria superação de um padrão cultural atrasado: religião é de foro íntimo e individual”, defende Télia.

O pesquisador Fernando Seffner, fez uma retrospectiva dos mitos fundadores da religião para explicar a ideia de controle dos corpos das mulheres. “O aborto é uma causa histórica do feminismo, tem a ver com uma instituição bem antiga de que a mulher, na maioria das sociedades, não é dona de seu corpo. O homem é, mas a mulher não e isso tem um enorme fundo religioso. Os mitos fundantes da religião, como é o caso de Adão e da Eva, colocam a mulher como figura subordinada”, falou.