“Somos a CIA do Povo”: Entrevista com Kristinn Hrafnsson, porta-voz do Wikileaks
Regido pelo princípio de que a livre circulação de informações emancipa os povos para que empreendam suas lutas, o WikiLeaks – organização responsável pela divulgação de documentos confidenciais que revelam a má conduta de governos, empresas e organizações no mundo inteiro – chegou a tornar públicos, até dezembro do ano passado, cerca de 250 mil documentos diplomáticos estadunidenses. Por sua luta, tem sido penalizado por grandes conglomerados financeiros, como Mastercard, Visa, American Express, Bank of America etc., que têm bloqueado a transferência de doações feitas por simpatizantes no mundo inteiro, por meio de seus cartões de crédito. Apesar da tentativa de miná-la, a organização continua ativa e recebendo doações. O jornalista investigativo islandês Kristinn Hrafnsson, seu porta-voz, falou sobre o assunto ao Brasil de Fato, durante sua participação no I Encontro Mundial de Blogueiros, realizado entre os dias 27 e 29 de outubro, em Foz do Iguaçu, no Paraná.
Brasil de Fato – Como você chegou ao WikiLeaks?
Kristinn Hrafnsson – Depois de trabalhar mais de 20 anos com jornalismo, tornava-me mais e mais exasperado com o fato de os jornalistas não estarem cumprindo com seu papel de expor a má conduta dos governos. O jornalismo é reflexo do que acontece na Europa e nos EUA, com a noção errada de objetividade. Os jornalistas se impõem uma castração quando vão cobrir os fatos, sob o pretexto de uma pretensa objetividade. Comecei a ser muito crítico com o jornalismo. Eu tinha estado no Afeganistão, no Iraque, cobria eventos internacionais. Claro que eu estava com nojo da cobertura da imprensa sobre as questões do meu país, momentos antes das invasões ao Iraque e Afeganistão. Mas, relação a estas, via-se que os jornalistas estavam sendo alimentados com mentiras como se fossem bebês para justificar o envolvimento militar estadunidense na região.
Onde você trabalhava?
Na televisão islandesa. Em 2008, houve a bolha com os bancos na Islândia, mais um exemplo de mentiras que os jornalistas compraram. Em quatro dias ela estourou e colapsou todo o sistema bancário. As pessoas que não tinham nenhuma experiência em promover manifestações políticas foram às ruas e ameaçaram queimar o parlamento. Foi, basicamente, o que derrubou o governo, um processo popular. Quando a poeira começou a baixar, começamos a receber informações de como os bancos armavam as fraudes; o trabalho interno. O que todos achavam que era um milagre econômico era simplesmente o trabalho de jovens banqueiros com tendências doentias por jogos. Em 2009 eu conheci o WikiLeaks, quando ele expôs pela primeira vez esse sistema ao publicar a carta de empréstimos do maior banco da Islândia. Eles eram tão poderosos que controlavam governos e as instituições que deveriam monitorá-los. Para mim, foi um momento chave de mudança quando eu percebi que ele podia expor o que meus colegas jornalistas não expunham, as falcatruas. Nesse período, conheci Julian Assange na Islândia e nos tornamos amigos. Ele me contou que a proposta do WikiLeaks era baseada no ideal dos hackers australianos do final dos anos 1980, e, embora o termo hacker tenha hoje uma conotação ruim, trabalhava com a ideia clara e simples de que a informação deve ser pública. No momento em que me engajei, esse movimento estava crescendo em espiral, vindo à tona esses vazamentos massivos que temos publicado desde abril do ano passado. O primeiro foi o vídeo do helicóptero num ataque ao Iraque [Assassinato colateral], que me deixou muito chocado. A ideologia do WikiLeaks é muito simples e direta: trata-se de liberdade de informação, transparência e importância dos informantes que ajudam a revelar corrupção e má conduta. Quando a notícia é apropriadamente disseminada, pode ser um veículo de mudança social, para trazer o que chamamos de justiça.
Qual balanço vocês fazem do resultado desses vazamentos?
É difícil avaliar os impactos, mas talvez o mais forte tenha sido o psicológico. Por mostrar que uma organização pequena pode expor as grandes más ações das nações mais poderosas, que tem o impacto de dar poder ao povo e convencê-lo de que a justiça é possível. De que é possível trazer mudanças sociais por meio da ação direta. Nós mostramos tantas informações novas sobre as guerras no Iraque e no Afeganistão, expondo suas realidades, que foi possível contar o que realmente aconteceu a partir dos próprios atores que dela participaram, dos papéis oficiais. Os papéis jogaram luz sobre a vocação imperialista dos EUA no mundo e mostraram como eles operam em cada país, além das informações de má conduta que os próprios EUA encontraram nesses países.
Você vê relação entre os vazamentos do WikiLeaks e a Primavera Árabe e os movimentos “Occupy”?
É quase certo que, quando começamos a expor os papéis da Tunísia, por exemplo, isso foi como um catalisador que deixou as pessoas mais furiosas para fazer a transformação. Não queremos superestimar o papel do WikiLeaks, mas acredito que as pessoas ficaram mais dispostas após os vazamentos. Mas o real ponto de virada foi a autoimolação do jovem Mohamed na praça, que derrubou o Ben Ali em dez dias. Não quero exagerar, mas acredito que alguma dose de contribuição foi dada naqueles processos. Quando as pessoas derrubaram os ditadores na Tunísia e Egito, perceberam que podiam derrubar também os maiores ditadores de todos, os bancos, o capital financeiro, as grandes corporações, que na realidade causaram mais estragos do que qualquer praga. Não houve mudanças, mesmo com esse efeito devastador. Foram socorridos financeiramente, não houve regulação do sistema financeiro em lugar nenhum. Os movimentos “occupy” são grandes apoiadores do WikiLeaks, reconhecem-se de alguma forma como lugar de inspiração. Começaram pequenos e foram crescendo, e a expectativa é a de que haja mais impulso e ganhe um papel mais proeminente. Esperamos poder entregar ainda muito mais informação sobre as instituições financeiras, que em geral trazem muito segredo e muita corrupção, geralmente em graus próximos, proporcionais. Da mesma forma em que segredos de Estado são geralmente justificados para proteger as pessoas contra o terrorismo etc, no caso financeiro, os segredos dos bancos são considerados essenciais, mas na prática são uma forma de esconder as “falcatruas”.
Vocês trabalham com informações prontas ou há situações em que, a partir do vazamento de um documento, é preciso investigar mais, aprofundar a apuração? Apenas a exposição da informação é suficiente?
Fizemos isso seja por nossa própria conta ou via parceria com outros órgãos de mídia. Depende basicamente da natureza do material. No caso do vídeo do helicóptero, trouxemos mais informações internas e divulgamos as duas coisas ao mesmo tempo, o vídeo e as informações mais detalhadas. Claro que as informações do Iraque e do Afeganistão tornaram o WikiLeaks mais famoso, mas antes disso já vínhamos trabalhando informações sobre falcatruas em todas as partes do mundo, como o banco do Julius Baer na Suíça, a Igreja da Cientologia, o despejo de lixo tóxico na África, corrupção no governo queniano… Havia um largo escopo de informações que foram sendo reveladas aos poucos, e quando você as junta vê que não é uma agenda meramente antiestadunidense.
O trabalho do WikiLeaks mostrou a hipocrisia do discurso da liberdade de expressão e do direito à informação. Você diria que as garantias legais de liberdade de expressão nas democracias ocidentais são fracas?
Um dos aspectos psicológicos mais interessantes do trabalho é justamente expor essa hipocrisia. É hilário, por exemplo, comparar um discurso da Hillary Clinton, em janeiro de 2010, falando da importância da internet para informantes conseguirem vazar esquemas de corrupção na China, e alguns meses depois se deparar com a mesma exposição, mas de seu próprio governo. O tom mudou completamente. Expusemos também a hipocrisia na mídia corporativa; revelamos, por exemplo, quão suscetíveis são empresas como o New York Times e o The Guardian para uma cultura de autocensura e de cooperação com o governo. Esses são alguns efeitos colaterais da nossa atuação. No que se refere à legislação, é frustrante ver como, ao invés de se partir de um ponto extremo de que tudo deve ser livre, com algumas exceções muito bem definidas, quando se vai trabalhar no aspecto legal em relação à democratização da informação parte-se do contrário: o segredo é a regra, apenas algumas coisas devem ser públicas, o que fere a lógica do direito público ao acesso à informação. Há também a tendência, em grande parte dos governos ocidentais, de privatizar parte importante da esfera pública, jogando o que devia ser público para o privado e acabando com a liberdade de informação. Esse é um dos problemas que fazem a ideia da liberdade de informação menos efetiva.
Qual seria a grande mudança no WikiLeaks desde o início do trabalho? Aumentou a credibilidade ou o impacto, ou eles vêm juntos? O WikiLeaks pode, hoje, garantir que se houver uma informação ele vai divulgar e que, se divulgar, ela vai repercutir?
Nós publicamos informações que foram escondidas ou suprimidas e que são de relevância política, histórica, social ou econômica. Nós somos o refúgio dessas informações. Somos a agência de inteligência do povo. A CIA do povo.
De quanto o WikiLeaks precisa para continuar trabalhando?
3,2 milhões de dólares. Uma boa parte vai ser usada para promover batalhas legais contra as corporações financeiras que estão fazendo o bloqueio econômico ao WikiLeaks, como Visa, Mastercard, PayPal, Bank of America, Western Union… vamos destruir esses canalhas. Estamos falando de expor governos, mas, pela resposta que essas organizações financeiras deram ao nosso trabalho, fica claro a quem esses governos estão ligados. Visa, American Express, estão todos ao nosso redor, e mantêm a ideia de que não são políticos, de que funcionam para todos… Você pode dar seu dinheiro para a Ku Klux Klan com seu Visa, patrocinar zoofilia com seu Mastercard, pode bancar movimentos nazi da Europa, grupos de extrema direita, você pode comprar quase tudo, menos doar para o WikiLeaks. (Colaborou Natália Viana)