Brasil não quer repetir os erros dos impérios. Entrevista com Samuel Pinheiro Guimarães
Quando Brasil e Argentina começaram a cooperar com força, no início do processo de redemocratização, Samuel Pinheiro Guimarães já figurava entre os mais ativos. Em novembro passado, os presidentes dos quatro países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) criaram o cargo de alto representante do bloco, deram-lhe funções de construção e negociação e as atribuíram a ele por unanimidade.
Quando Brasil e Argentina começaram a cooperar com força, no início do processo de redemocratização, Samuel Pinheiro Guimarães já figurava entre os mais ativos. Em novembro passado, os presidentes dos quatro países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) criaram o cargo de alto representante do bloco, deram-lhe funções de construção e negociação e as atribuíram a ele por unanimidade.
Pinheiro Guimarães exibiu seu perfeito espanhol na primeira viagem a Buenos Aires como alto representante. Prometeu visitar cada país seguidamente. Ocupado em ampliar o Mercosul para além do que chamou com ironia “uma burocracia cartesiana”, conversou com o chanceler Héctor Timerman e até teve tempo para reunir-se com um colega: Carlos Piñeiro Iñiguez, ex-embaixador no Equador que acaba de assumir o Instituto do Serviço Exterior da Nação. Por convite de Piñeiro, Pinheiro inclusive deu uma aula de uma hora para os futuros diplomatas que cursam o Instituto.
Página/12: É verdade que o Brasil tem uma ideia imperial de diplomacia ou isso é um mito?
Samuel Pinheiro Guimarães: (Ri.) Não. O Brasil tem um interesse muito forte no desenvolvimento de toda a região apesar das assimetrias entre os distintos países. Não é um império, não quer sê-lo nem quer repetir os erros dos impérios. Ao contrário. Acredita em associar-se, em cooperar, em reformar um sistema internacional que se caracteriza, a meu juízo, pela convivência de potências centrais e de ex-colônias, como nós. Temos interesses em comum com os países mais pobres, os países em desenvolvimento, para mudar as regras do mundo.
O que seria preciso mudar?
A crise que vivemos mostrou a falência dos modelos neoliberais tanto em nossos países como nos desenvolvidos. As regras financeiras devem permitir espaço para os desenvolvimentos nacionais, e o mesmo deve acontecer com as regras sobre comércio e meio ambiente. Na Rodada de Doha, foi a primeira vez que os países em desenvolvimento tiveram uma posição firme e não aceitaram o cardápio tal como lhes foi apresentado.
Se tomamos como dado o afeto e a irmandade, por que convém ao Brasil uma relação de cooperação com os vizinhos?
Temos muitos vizinhos. Se não contamos os Estados Unidos, que acreditam ter 191 vizinhos, estamos logo depois da China e da Rússia. Eles têm 14. Nós temos 10. Com esse número tão grande, está claro que é melhor ter vizinhos estáveis, em boas condições e em paz. Ninguém quer vizinhos turbulentos e pobres, não?
Integrações
Pinheiro Guimarães ficou à vontade no ISEN. Vice-chanceler e depois ministro de Assuntos Estratégicos de Lula, foi o modernizador do Instituto Rio Branco, do Itamaraty. Em sua conversa com os alunos do ISEN, argumentou que é ingênuo querer integrar-se ao mundo sem fazer parte de um bloco. Disse que, em termos comerciais, uma parte da América Latina já optou por acordos de livre comércio com os Estados Unidos: países da América Central, Chile, Peru, Colômbia. “Nós não quisemos a ALCA, em 2005, não somente por razões comerciais”, observou. “A ALCA era uma política econômica completa, que envolvia comércio, investimentos, negócios e propriedade intelectual”.
Indagado sobre a existência de choques entre o Mercosul e a Unasul, negou. “A Unasul é um modo de manter próximos países que, comercialmente, optaram por outras políticas. É bom que todos integremos o Conselho Sulamericano de Defesa. Para mim é motivo de suspeitas quando alguém recomenda que não devemos nos preocupar com nossa defesa, que outro país vai se ocupar disso. Somos pacíficos, mas não temos por que ficar desarmados enquanto outros têm armas e as desenvolvem e quando sabemos também que a indústria militar é chave para o desenvolvimento tecnológico.
Também foi taxativo quando um aluno perguntou-lhe se o Brasil, como parte dos Estados em desenvolvimento intermediário do mundo, não teria subido de posição. “Os que dizem isso querem que abandonemos nossas políticas”, analisou. “Avançamos extraordinariamente, mas no Brasil ainda há 60 milhões de pessoas em situação de pobreza. Uma Argentina e meia. Não, não subimos de posição. Seguimos trabalhando para isso”, disse o diplomata que sempre se sentiu confortável com Lula.
Lula, síntese
Como foi ter Lula como chefe?
Uma experiência extraordinária. O próprio Lula é uma síntese da maioria dos brasileiros. Ele vem do Nordeste. Seu pai era uma pessoa muito violenta. Abandonou a família. Lula saiu do Nordeste para a periferia de São Paulo, com sua mãe e irmãos. Foi vítima de um acidente de trabalho. Sua primeira mulher perdeu a vida em um hospital. É trabalhador. Passou fome. Fez greve. Quando fala de uma inundação sabe do que fala. Viveu isso. Quando fala de greves ou desemprego, sabe do que se trata. Quando fala de discriminação, também. Por isso sua preocupação não é acadêmica. Ele viveu tudo isso.
E como enfocava os temas internacionais?
Lula tinha uma enorme experiência diplomática anterior ao governo. Tinha feito mais de 120 viagens e o primeiro chefe de governo estrangeiro que conheceu, o alemão Helmut Schmidt, pediu para vê-lo em sua casa. Conhecia vários deles antes que fossem líderes. Muitas vezes disse que era extraordinário a América do Sul ter chegado ao ponto de ter um operário presidente do Brasil e um indígena na Bolívia. Ao mesmo tempo, no início de seu governo, posicionou-se contra a guerra do Iraque.
O cargo de Alto Representante do Mercosul não existia.
Não, e agradeço não só ao meu país que me propôs esse posto, mas a todos aqueles que aprovaram minha nomeação, entre eles a Argentina.
As funções de Alto Representante são novas.
Sim. Tenho amplas funções dentro do bloco e também fora, certamente que seguindo as decisões políticas dos presidentes.
O Mercosul goza de boa saúde?
O comércio se ampliou de maneira muito significativa. As taxas de crescimento são altas. Cresceram os investimentos. Ao mesmo tempo, a cooperação política se traduz em reuniões periódicas dos presidentes. Em certos países, há muitas críticas. No Brasil mais que na Argentina, sobretudo se há alguma diferença comercial. Há muito que melhorar do ponto de vista da imagem do Mercosul.
Em que isso melhora a vida do cidadão comum?
A primeira coisa é o emprego. Se há exportação é porque se produziu antes e se criaram postos de trabalho. Nossos países exportam muitos produtos manufaturados aos países sócios do Mercosul. Isso aumenta a escala produtiva e reduz os custos de produção. Os empresários ganham mais e os trabalhadores têm mais e melhores empregos. E a competitividade é maior, comparada a de outros países. Politicamente, aumenta a compreensão mútua entre os países.
O ingresso da Venezuela depende só da ratificação do Senado paraguaio.
Sim. Essa é uma questão política interna do Paraguai. É uma questão de tempo. Antes, a Venezuela era um país que não tinha sequer agricultura. Dependia de uma única matéria prima, o petróleo, que, além disso, era explorado pelos Estados Unidos para os Estados Unidos. É um país riquíssimo, com minerais e energia. Decide reorientar sua política para o Sul com o objetivo de incrementar o desenvolvimento do país. Assim, converteu-se em um mercado potencial importante.
Em energia?
Depois da Arábia Saudita, que é o primeiro produtor, a Venezuela está entre os cinco ou seis principais produtores de petróleo do mundo. Quer diversificar suas exportações.
O ingresso da Venezuela no Mercosul traz alguma dificuldade?
Pelo contrário. O país já vem participando do bloco e traz uma vocação integracionista forte.
Como se administra o equilíbrio entre o desenvolvimento e a competição entre as empresas dos quatro países?
Vivemos em um sistema capitalista. Isso implica a competição entre as empresas que, às vezes, significa baixa de custos e maior tecnologia. Mas não falamos de regimes capitalistas puros e sim de capitalismos reais. Quer maior intervenção que o salvamento que os países centrais fizeram com seus bancos? Ou por acaso os bancos quebraram e o Bank of America se converteu no Bank of Shangai?
Como avalia as relações entre a América do Sul e os Estados Unidos?
Ela varia de país para país.
Então restrinjamos a pergunta e falemos de Mercosul.
Não resolve, mas facilita. Não vejo conflitos. Claro, levemos em conta que os Estados Unidos são, por enquanto, a primeira economia mundial, mas a diferença militar é enorme: cinco mil ogivas nucleares contra 200 da China.
Como devemos nos posicionar frente a essa influência?
Samuel Pinheiro Guimarães: A influência das multinacionais estadunidenses no Brasil e na Argentina é um fato. E não há restrições. No passado, o Brasil, por exemplo, aplicou normas para que os investidores tivessem que usar insumos nacionais, peças de automóveis por exemplo. A influência estadunidense em termos de livros, televisão, cinema é acachapante. É um tema industrial, cultural e ideológico. Por isso, os Estados não têm que restringir a empresa estrangeira, mas sim estimular os conteúdos locais, sobretudo na área audiovisual, que é o terreno da divulgação. Inclusive da divulgação do Mercosul e da cultura de cada país. Ao invés de hegemonia cultural, diversificação.
Ninguém deve ser dominante?
Não.
Qual a vantagem de diversificar?
Como é a vida? Diretamente sabemos pouco. O restante conhecemos por meio de algum relato. Bem: diversifiquemos os relatos.
Tradução: Katarina Peixoto