A convite da Procuradoria Geral do Rio Grande do Sul, a Profª Dra. Carla Gomes, catedrática da Universidade de Lisboa, palestrou sobre as Perspectivas Internacionais dos Direitos Humanos, nesta quarta-feira (27). A exposição foi destinada exclusivamente aos Procuradores do Estado e Servidores da PGE. Uma  iniciativa da nova gestão em implementar a cultura dos Direitos Humanos na Instituição.

A convite da Procuradoria Geral do Rio Grande do Sul, a Profª Dra. Carla Gomes, catedrática da Universidade de Lisboa, palestrou sobre as Perspectivas Internacionais dos Direitos Humanos, nesta quarta-feira (27). A exposição foi destinada exclusivamente aos Procuradores do Estado e Servidores da PGE. Uma  iniciativa da nova gestão em implementar a cultura dos Direitos Humanos na Instituição.

Dra. Carla apresentou as questões ligadas às gerações de direitos fundamentais, citando as Constituições portuguesa (1976) e brasileira (1988), os Pactos da ONU e as interpretações que geram equívocos na leitura das gerações de direito. Antes da palestra, concedeu entrevista exclusiva ao Sul21.

Apesar de muito reservada e cuidadosa,  a professora não deixou de tecer comentários sobre as políticas de Direitos Humanos no Brasil. Ela disse que  o Brasil acata as recomendações da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) conforme sua conveniência política. Além disso, em comparação com a Europa, o Brasil ainda precisa avançar no tema. Carla falou, também,  que,  se houver pacificação política, as anistias podem ser um bom instrumento para harmonizar as correntes da história.

Sul21 Quais as principais violações aos direitos humanos no mundo atualmente?

Carla Gomes – Eu suponho que seja as perseguições étnicas com arraigados sentimentos de nacionalismos, como o ocorrido na Europa com a Guerra da Iugoslávia. Tem também as perseguições religiosas, especialmente a perseguição ao islamismo. Existem ainda os problemas coletivos, como genocídios, perseguições étnicas e problemas de integração cultural que passam pelo viés religioso. E, no âmbito internacional, existem questões como o caso de Guantánamo, que se refere à proteção dos direitos dos presidiários e suspeitos de terrorismo pelos estados onde eles perpetram estes crimes. Mas, de fato, eles têm os seus direitos completamente desrespeitados.

Na Europa estamos muito tentados a nos libertarmos do discurso do “politicamente correto”. Durante algum tempo nós tivemos a expectativa de que a interação e a diversidade cultural eram plenamente coadunáveis com o nosso sistema ocidental de valores. Mas, estamos reconhecendo que isto não é possível. Ou seja, o imigrante deve se integrar. Só que, muitas vezes, as tradições culturais que ele traz consigo são tão fortes que ele não consegue se libertar delas e, depois, há um certo receio do reverso da medalha, de que ele queira se afirmar contra os valores ocidentais. Por exemplo, existe a questão do véu islâmico que na França está dando um enorme problema. As pessoas estão sendo penalizadas por usarem véu. O que atribuo como um grande sinal de insensatez. Quem deve usar véu pode usar um lenço ou um chapéu, desde que não passe uma imagem institucional.

Então, estes são alguns dos problemas que vivemos hoje no âmbito da proteção dos direitos humanos. Mas, isto do ponto de vista material. Porque tem toda a problemática da tutela dos direitos.

A senhora pode falar mais sobre este outro aspecto?

Na disciplina de Direito da Responsabilidade Internacional, que redigi no semestre passado na Universidade de Lisboa, convidei o professor Valério Mazzuoli, que é um grande especialista de Direitos Humanos no Brasil, para palestrar sobre o tema do seu pós-doutorado. Ele tratava da tutela dos direitos fundamentais na América Latina, no âmbito da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH). E surgiu um debate entre nós e os alunos, confrontando o sistema de proteção dos direitos humanos da América Latina e o da Europa. As nossas conclusões foram basicamente no sentido de que na Europa estamos mais avançados neste ponto. Sobretudo por um fator: a jurisdição obrigatória. O Tribunal Europeu tem jurisdição obrigatória. Todos estados que ratifiquem a convenção europeia imediatamente se submetem à jurisdição do Tribunal. Então, se um cidadão de algum estado vê violado um direito fundamental, que está consagrado nesta convenção, depois de esgotados os recursos internos, ele tem o direito de ter uma última decisão pelo Tribunal europeu. E esta decisão é normalmente de caráter indenizatório e é exequível junto do seu estado. E o cidadão, mesmo que tenha ficado lesado no seu direito, pode ser indenizado. Mas, na Convenção Interamericana não é assim. Neste caso a jurisdição não só não é obrigatória como o sistema de direitos humanos funciona de outro modo.

No plano internacional, a Europa também leva vantagem. Porque o que temos em termos mundiais é o sistema de pactos da Organização das Nações Unidas. Nele o cidadão não tem acesso a um tribunal. Tem acesso a uma comissão que aprecia sua queixa e muitas caem, porque não há obrigação de prosseguir o procedimento. Em outros casos é emitida uma recomendação. Mas, a recomendação não é uma sentença. Este sistema se torna muito mais frágil e menos eficaz.

Portanto, nós concluímos que, apesar de ser um bom paralelo, o plano da Europa é mais eficaz.

Qual o principal problema do sistema brasileiro de Direitos Humanos?

Eu tenho receio de meter a foice em seara alheia. Mas, aqui no Brasil, existe uma particularidade interessante nos Direitos Humanos. Vocês têm um sistema de dualismo de Direito Internacional, ou seja, as convenções só vinculam imediatamente o estado brasileiro, uma vez incorporadas em legislação nacional, o que pode gerar problemas em termos de responsabilidade internacional. O legislador ratifica uma convenção, incorpora no direito nacional, mas, dois anos depois, aprova uma lei que pode contrariar completamente a convenção internacional. Portanto, pelo que eu aprendi sobre o Brasil, o sistema de Direito Humanos brasileiro está vinculado basicamente no sistema dos pactos, que é aquele aspecto frágil da recomendação, que o estado acata conforme queira. E se o acatar da recomendação for uma boa manobra de “marketing político”, naturalmente o governo brasileiro vai acatar a recomendação para ter uma pompa internacional. Para ficar bem na fotografia.
“O Brasil neste momento é visto com uma grande potência internacional”

A senhora poderia citar algum exemplo deste tipo de “oportunismo”?

Não. Não poderia. Mas, no plano da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, o que temos é um sistema cujas decisões ficam muito enclausuradas na vontade de o estado executá-las ou não. Se interessar à imagem do estado, no cenário internacional, é cumprida. Se não, vai ficando, vai ficando….

O governador gaúcho, Tarso Genro, quando ministro da Justiça conecedeu refúgio político ao ativista italiano Cesare Battisti. A senhora tem uma opinião sobre este caso?

Eu conheço o caso. Tive uma aluna que fez um trabalho de conclusão sobre ele, mas eu não me arrisco a falar. Há vários aspectos que não podem ser avaliados levianamente.

Como equalizar as grandes obras de desenvolvimento de uma nação, como a construção de hidrelétricas e as que envolvem a Copa do Mundo, respeitando os direitos humanos?

Essa é a pergunta que vale um milhão de dólares (risos). Mas esta fórmula merece as minhas maiores reservas. Porque o desenvolvimento sustentável começou por ser uma fórmula de direito ambiental. No Rio de Janeiro se tornou uma forma de caráter completamente econômico.
“Hoje em dia ninguém sabe o que é o desenvolvimento sustentável”

Não há uma versão unificada, clara e objetiva do que é isso. Seria aquele desenvolvimento que permite um equilibrado nível de vida, um equilibrado progresso, sem comprometer um ecossistema. Simplesmente o que assistimos no mundo é quase um sacrifício do ambiente em prol da economia. E economia/qualidade de vida das pessoas supostamente. Só que em uma versão de muito curto prazo. Mas, a questão é que você preserva o meio ambiente para a geração presente e para as gerações futuras.

Como a senhora avalia esta administração no Brasil, que ainda ontem foi notificado pela ONU (Organização das Nações Unidas) por não indenizar suficientemente os desapropriados para obras da Copa do Mundo de 2014?

A sensação que eu tenho é que no Brasil se vive hoje melhor que há dez anos em razão das mudanças que fez o ex-presidente Lula. A tendência é de que agora a presidenta Dilma Rousseff continue. A questão dos direitos ambientais no Brasil, por exemplo, parece-me que tem recebido uma grande atenção. Eu acompanho os índices de desmatamento na Amazônia e eu tenho percebido que eles estão reduzindo. Há uma tentativa de reflorestamento de partes da Amazônia. Mas, ao mesmo tempo, existe um debate sobre o Código Florestal que, em muitos pontos, pode conduzir o país a um retrocesso do ponto de vista das áreas de proteção. Aqui eu percebo que há um forte debate sobre as áreas de preservação que sob influência das forças sociais e políticas que querem desafetar estas zonas para uso agrícola ou urbanização. As pessoas não devem ser sacrificadas ao ambiente, mas a riqueza dele é transgeracional. O que o governo deve fazer é tentar melhor a qualidade de vida das pessoas, mas não sacrificar excessivamente o meio ambiente. Quando sacrificar, fazê-lo com uma distribuição equitativa dos recursos. Mas é certo que o problema é concretizar isso. Por isso mesmo eu não quero ser política. Estou muito tranquila nesta minha condição de acadêmica…

Crimes contra a humanidade são imprescritíveis. Como a senhora vê a anistia?

Há este problema de saber se estas pessoas que cometeram crimes contra humanidade, que mataram pessoas, se elas merecem ser anistiadas. E se esta anistia pode ser contestada, uma vez decretada. Estes crimes eu acho que devem ser considerados imprescritíveis.
“Não sou absolutamente contrária às anistias, tendo em consideração o contexto social em que se vive”

Ou seja, se houver uma pacificação política a anistia pode ser m bom instrumento para harmonizar as correntes da história. Tendencialmente eu acho que estes crimes devem ser perseguidos e estas pessoas não devem ficar impunes. Mas, se o objetivo em concreto da pacificação social puder ser mais bem prosseguido através do perdão a estas pessoas, pelo menos àquelas cuja culpa não é de cúpula, eu acho que isto deve ser feito. Eu seria favorável à anistia sempre muito bem avaliada no conjunto das circunstâncias.

Saiba mais:

Dr.ª Carla Amado Gomes – Nascida em Luanda, em 1970. Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Professora Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. É Vice-Presidente do Instituto da Cooperação Jurídica da Faculdade de Direito de Lisboa desde 2006. Foi assessora no Tribunal Constitucional entre 1998/1999.

Possui diversas obras publicadas nas áreas do Direito Administrativo, Direito Processual Administrativo, Direito Constitucional, Direito Processual Constitucional, Direito do Ambiente, Direito do Patrimônio Cultural, Direito da Educação, Direito Parlamentar e Direito da União Europeia.