Racismo e homofobia são discriminações distintas em origens, formas e conseqüências. Há alguns dias, três casos ajudaram a explicitar as diferenças e semelhanças, e também a estabelecer as conexões entre elas e unificar a reação a todas as formas de desigualdade e intolerância. A primeira vítima foi um estudante negro, gay assumido e militante, estudando no interior do Rio Grande do Sul, covardemente agredido, preso e ameaçado de morte por policiais. Nas ameaças, racismo e preconceito regional explícitos.

Respondendo a pergunta da cantora Preta Gil, em caso de maior repercussão midiática, o homofóbico deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) afirmou em programa de TV aberta que seus filhos não namorariam uma mulher negra porque “têm boa educação”, associando a possibilidade da relação à promiscuidade. Assustado com a repercussão pública e ameaçado de perder o mandato, retrocedeu e tentou justificar-se com a versão de que confundiu a pergunta, imaginando tratar-se de “gays”. Inúmeras declarações estapafúrdias do deputado têm se seguido àquela.

Não parou por aí. O também deputado federal Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), afirmou pelo Twitter que africanos "descendem de ancestrais amaldiçoados por Noé" e que gays têm "podridão de sentimentos" que "levam ao ódio, ao crime e à rejeição".
Nos três casos, a cara da opressão é o próprio Estado, personificado nos policiais e nos deputados federais. O Poder Executivo, responsável pela força policial, deve proteger os cidadãos e cidadãs, no cumprimento às leis aprovadas no mesmo Legislativo que abriga os dois deputados. Os casos exibiram o profundo fosso que o Brasil tem de superar para promover a cidadania de segmentos discriminados.

O crescimento da pauta LGBT na agenda pública brasileira teve o efeito colateral de organizar a oposição reacionária aos direitos dessa parcela da sociedade. Tornou-se a principal bandeira da bancada evangélica, obrigou um retrocesso na campanha de 2010 e tem tomado o espaço midiático que tiveram as cotas raciais na década passada. Do início do ano para cá, os casos de homofobia ganharam enorme visibilidade – lastreada, é bom que se diga, pelos casos de agressões na Avenida Paulista, que vitimaram jovens de classe média. Não se trata de uma coincidência apenas.

O assassinato de travestis ou de negras lésbicas e negros gays não costuma ganhar igual notoriedade. A homofobia, quanto praticada cotidianamente contra negros e negras, nas periferias das cidades e no interior do país, encontra no anonimato a receita da impunidade e o incentivo à reincidência. Os eventos, entretanto, jogaram luz sobre essa faceta da dupla discriminação. Pela primeira vez, a oportunidade de debater homofobia e racismo juntos, compreendendo suas imbricações. O assunto parece ter sido colocado, mesmo que momentaneamente, em debate nacional.

Os três casos demonstram as diferenças e semelhanças entre racismo e homofobia. Jovens de classe média agredidos estampam manchetes de jornais, mas o assassinato cruel de uma travesti negra de 14 anos não merece sequer uma nota de rodapé. Por sua vez, declarações racistas podem levar a processo de cassação de mandato parlamentar, mas as mesmas palavras ditas contra gays e lésbicas é tolerável. Nesse jogo, é difícil mesmo compreender o que é pior, entre duas discriminações. A única certeza é de que os negros e as negras LGBT sairão perdendo por todos os lados.

Mas existe um ponto positivo decorrido dos três atos deploráveis. Conseguiram unificar setores dos movimentos negro e LGBT, em geral avessos à solidariedade mútuas, em repúdio aos “ismos” e “fobias”. Há de se admitir, no entanto, que o ponto de contato não foi apenas a defesa das vítimas. Apesar do estudante ser negro e gay assumido, e da cantora negra falar abertamente e orgulhosamente das experiências que viveu com outras mulheres, o principal elo de identidade foi a reação contra a postura racista e homofóbica dos deputados. Nem os skinheads obtêm tal façanha, embora suas vítimas preferenciais sejam justamente LGBT, negros e nordestinos, os três casos em voga. Diante disso, questiona-se se é possível que os movimentos sociais acumulem força para inverter situações desfavoráveis. A reação a Bolsonaro e seu recuo sinalizam que sim, e a capacidade de fazer alianças certamente contribui nas agendas comuns.

Negras lésbicas e negros gays, bissexuais, travestis e transexuais constroem uma espécie de ponte entre duas realidades distintas, que sofrem desigualdades diferentes. No esforço de corresponder à dupla identidade, costumam estar excluídas de ambas. O movimento de negros e negras lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais têm ainda uma grande caminho para avançar.

Nilton Luz é coordenador da Rede Nacional de Negras e Negros LGBT.