A marcha das revoluções continua com vigor no mundo árabe. Agora é a vez da Líbia. Os protestos tiveram início com a prisão do advogado líbio e ativista dos direitos humanos Fathi Terbil dias antes do "Dia de Fúria" (17 de fevereiro). Terbil representa um grupo de famílias cujos filhos foram massacrados (por volta de 1200 prisioneiros opositores do regime) pelas autoridades da Líbia, em 1996, em Trípoli (prisão de Abu Salim). No dia 17 de fevereiro, o líbio-americano Najla Abdurrahman escrevia, indignado, um artigo na revista Foreign Policy com o seguinte título: líbios estão entregando suas vidas para derrubar Muammar al-Gaddafi. Será que ninguém está prestando atenção?

Com razão. Até o momento não há nenhum sinal de qualquer ação mais contundente da celebrada “comunidade internacional”. Mesmo após centenas de mortos, no 5º dia de repressão, a repercussão ainda é pequena. O que seria de se estranhar, num primeiro momento, pois o regime de coronel Kadafi está no poder mais tempo do que qualquer outra ditadura no mundo árabe (42 anos) além de ser responsável por várias ações terroristas na década de 80.

Mas, não deixa de ser tão surpreendente assim se lembrarmos que, em 2008, a então secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, realizou um tour no norte da África passando por Tunísia, Argélia, Marrocos e Líbia ( coincidência?) declarando, ao final, que as relações entre os EUA e a Líbia entravam numa nova era de cooperação. Quando questionada sobre o problema dos direitos humanos naquele pais, Rice disse que havia discutido com o Sr Kadafi “de maneira respeitosa”. O ministro líbio de Relações Exteriores, por sua vez, disse que a presença de Rice foi a prova de que a Líbia, os EUA e o mundo tinham mudado. Sem dúvida nenhuma que o mundo mudou! A Líbia foi reabilitada de seu status de Estado pária, em 2003, concordando em abandonar seu programa nuclear e promover a abertura aos investimentos ocidentais, principalmente para as grandes empresas petrolíferas que assinaram contratos bilionários. A Líbia, conformando-se às resoluções da ONU, livrou-se do embargo econômico, e passou a restabelecer seus laços políticos e diplomáticos com os países europeus e os EUA, reintegrando-se na comunidade internacional. Em 2006, o coronel Kadafi aderiu a um programa para instaurar o livre mercado e reconheceu o papel central da iniciativa privada na Líbia, preparando o caminho para implementar as chamadas reformas econômicas sob a supervisão do FMI e do Banco Mundial. O ministro Tony Blair teve atuação destacada nesse entendimento aprovando ainda a venda de gás lacrimogêneo, armas de “controle de multidões”, fuzis e metralhadoras para Bahrein e Líbia.

O embaixador norte-americano na Líbia, Cretz, em depoimento no Carnegie Endowment for Peace, em 2008, informou que houve grandes progressos durante esses dois anos de “normalização” nas relações EUA-Líbia e que estava iniciando uma cooperação significativa entre os dois países. Cretz elogiou ainda os esforços de privatização, enfatizando que as missões de comércio dos EUA tiveram excelente receptividade. No que se refere aos Direitos Humanos, o embaixador afirmou existir um diálogo aberto e franco entre os dois paises, reconhecendo, entretanto, que a promoção da democracia é uma questão delicada e deve ser abordada com cuidado.

Mas o embaixador esqueceu de mencionar que a economia da Líbia continua extremamente dependente das flutuações dos preços internacionais do petróleo e do gás. Os bilhões de dólares acumulados ao longo dos anos não foram utilizados para diversificar a economia. Há uma enorme discrepância entre as várias classes sociais e seus respectivos setores produtivos. O setor agrícola, por exemplo, emprega 20% da força de trabalho, embora contribua apenas com 2% do PIB. O setor industrial, incluindo petróleo, gás e petroquímica, é responsável por mais de 60% do PIB, e emprega menos de 25% da força de trabalho. As taxas de desemprego variam entre 20 a 30 %.

É importante notar que a Líbia é um Estado-nação sui generis onde as ligações tribais são fundamentais. Kadafi tem governado por meio da mediação de um "comitê de liderança social", composto por cerca de 15 representantes de várias tribos que tem presença até mesmo dentro das fileiras das forças armadas, cada qual representando um grupo tribal. Assim, ao contrário dos militares da Tunísia ou Egito, a inexistência de coesão e profissionalismo não permite a intervenção para resolver o conflito com os manifestantes. Ainda não se sabe quais as unidades militares foram envolvidas na tentativa de conter os distúrbios e se há cisão entre elas. Também não sabemos se são verídicas as informações de que há mercenários e criminosos contratados pelo governo. Entretanto algumas declarações que começam a circular na mídia podem indicar o desfecho da crise. Uma das lideranças mais destacadas da poderosa tribo Al-Zuwayya disse à rede Al Jazeera que já intimou o coronel Kadafi deixar o país, ameaçando cortar as exportações de petróleo.

Infelizmente, ao que tudo indica, o alerta do filho de Kadafi, de que há risco iminente de uma verdadeira guerra civil, parece ser procedente, pois como bem observou um jornalista perspicaz o comportamento dos manifestantes e das forças de segurança dão razão para acreditamos que qualquer recuo de um dos lados significará a morte ou a prisão definitiva. Será que ninguém está disposto a ajudar os líbios?

Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da PUC-SP