“Nos falta recuperar um pedaço da nossa história”. Entrevista com Flavio Koutzii
Ex-asilado político, Flávio Koutzii assume no governo Tarso Genro a função de assessoramento superior. Vai garantir que as demandas da secretaria cheguem rapidamente ao governador e tenham, também, soluções rápidas. Trabalha com uma equipe pequena, de oito pessoas, que se revezam nas reuniões e elaboração de relatórios.
Ex-asilado político, Flávio Koutzii assume no governo Tarso Genro a função de assessoramento superior. Vai garantir que as demandas da secretaria cheguem rapidamente ao governador e tenham, também, soluções rápidas. Trabalha com uma equipe pequena, de oito pessoas, que se revezam nas reuniões e elaboração de relatórios.
Na entrevista ao Sul21, Koutzii defendeu a criação da Comissão da Verdade, uma das lutas da ministra da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, Maria do Rosário. Ele acredita que, agora, no governo Dilma, a Comissão será criada e os culpados pelo desaparecimento de 379 pessoas, segundo a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, durante a ditadura brasileira, serão punidos. “Nos falta recuperar um pedaço da nossa história”, diz Koutzii, que se emociona ao lembrar a posse de Dilma Rousseff na presidência da República. Para ele, Dilma representa o lema do ex-presidente francês François Mitterrand, pela conquista da presidência, em 1981: “a força tranquila”.
Sul21 – Como funciona a coordenação de Assessoramento Superior do Governador?
Flávio Koutzii – A própria definição era um pouco genérica quando o governador me convidou para a função. Sou o coordenador e tenho um grupo de oito pessoas. O João Victor é o executivo e tem um papel importante. Ele se destacou na campanha eleitoral por ser o coordenador da bancada na Assembleia Legislativa. Então, tem conhecimento de todos os projetos do legislativo. Portanto, fizemos uma combinação, de atuarmos em parceria. Temos amizade e confiança recíproca e vamos jogar juntos. Em diferentes situações, eu ou ele atuamos. Na parte mais política, eu participo do núcleo de gestão, todas as manhãs, não mais do que meia hora.
O que é discutido nestas reuniões?
Não fazemos grandes análises. É um encontro para alinhavamento, entendimento e decisão. A forma de trabalho do governador, como ele mesmo já transpareceu nas entrevistas, é clara. Ele nos convida a uma forma de trabalhar muito precisa para concisão, discussões compactadas e tempo de decisão e execução rápida, de forma exigente e permanente. A nossa assessoria contribui para garantir esta forma de trabalho no encaminhamento das demandas por parte da secretarias. Este trabalho também pode acontecer na relação direta entre as secretarias, dentro do conceito da transversalidade, e aí estou falando não de uma palavra mágica. A transversalidade cobre duas concepções diferentes: de composição das estruturas, onde genericamente podemos definir como a lógica dos 30% de outros partidos como compensação nas estruturas comandadas por alguém de um determinado partido, e na conexão entre as secretarias, que tem interface para executar os projetos do governo.
O senhor está dizendo que a transversalidade prevê secretarias pluripartidárias. Tem alguns gestores que pensam diferente. Está clara a forma de trabalho do governo?
Eu entendi assim. Alguns secretários podem ter outro entendimento. Mas, o que não é dúvida para todos é que as secretarias não terão porteiras fechadas. E isto não será algo fácil de fazer. Mas, concluída esta composição, e com o passar do tempo, será perceptível as virtudes da transversalidade. O que está intrínseco nesse conceito é que não haverá feudos de partidos, com assuntos que ninguém nunca saberá. Os problemas ou dificuldades não serão públicos só quando os chefes relatarem. A transversalidade ajuda a instigar a gestão, traz a boa inquietação. Outra noção boa que traz este conceito é a boa funcionalidade das estruturas do governo. Evita o que já vimos em outros governos: as secretarias se tornarem ilhas e o arquipélago ser um desastre.
Nós do PT temos bastante acúmulo do governo Lula, do governo Olívio, dos nossos governos nas prefeituras. Eu te diria a mesma coisa se esta entrevista estivesse acontecendo oito anos atrás, mas hoje posso te dizer com mais intensidade e amplitude que temos uma nova geração de gestores petistas que passaram por experiências de gestão, acertando e errando, compreendendo como chegar perto do ideário petista, levando em conta as realidades financeiras, limitações do aparelho estatal, como também de interconexões que não exercitávamos anteriormente.
Esta é outra questão que parece contraditória. O senhor fala de “geração de gestores petistas”. Onde ela está contemplada no governo? O que vimos é a repetição de quadros do primeiro governo petista.
É muito boa essa pergunta. O Sul21 já trouxe esse debate em outra matéria que tinha um intertítulo: “A herança do Olívio”. Por razões óbvias, eu fiquei meio assim ao ler. Mas, esta pergunta oportuniza um raciocínio interessante. Seria uma tragédia se as figuras que estão no governo hoje e que estiveram em outro governo 10 anos atrás não tivessem nenhuma experiência. Mas, aproveitar essa vivência anterior pode ser vista como um mérito. Os quadros que realizaram determinadas experiências e depois voltaram para suas funções públicas, se as tinham, foram acumulando e podem contribuir agora. E esta pergunta traz embutido um alerta positivo: tem uma certa “taxa de velharia” no governo atual. Eu defendo que isso é bom. Mas, não por ter a idade que tenho, mas, sim, porque todos os que estão neste governo, principalmente os partidos que integraram depois a coligação, têm uma visão diferente da nossa. E os mais experientes ajudam a preservar aquilo que preside este processo, que é nós termos uma centralidade política, um programa e uma situação privilegiada com o governo federal.
De que forma exatamente poderá trazer benefícios para o estado o alinhamento partidário dos governos federal e estadual?
O governo Dilma é de uma era política diferente, herdada da era Lula. Só a cegueira ou o sectarismo de direita não percebem. Hoje, a palavra xiita deveria ser usada em relação a vários cronistas e comentaristas políticos que dizem a mesma coisa há 20 anos. Eles poderiam mudar as suas perguntas sobre o país; a sociedade já deu a resposta para elas. E falo isso sem demagogia. A imprensa está muito polarizada.
Existem quatro ou cinco perguntas inevitáveis que serão sempre feitas a todo petista que estiver na frente do jornalista hoje.
A pauta tem que ser outra. Recentemente saiu na internet a lista das dez manchetes dos últimos dias nos jornais da grande imprensa nacional. Todas eram a pauta proposta na campanha do José Serra (PSDB). Eles podem até defender esta pauta, como claramente o fazem, mas não dá para estabelecer uma relação com a realidade escolhida pela maioria da população. Não quer dizer uma relação submissa ou de aceitação pacífica ao governo Dilma. Mas, é preciso dialogar com as ideias que provavelmente um governo que teve oito anos de experiência, e tem uma inflexão continuista, terá. E digo continuista no bom sentido.
Qual pauta o senhor refere ser a pauta serrista? A insistência com o tema da educação brasileira, por exemplo?
Eu acho que esse tema se transformou em uma espécie de mantra da direita e do conservadorismo derrotado para um sentido particular. Claro que temos ainda enormes problemas na Educação, como na Saúde. Mas, o que me parece evidente e que faz parte de uma análise intelectualmente séria e politicamente honesta é dizer também que além dos problemas, temos avanços reais na educação brasileira. Os salários não aumentaram espetacularmente, mas faz diferença a criação de um piso nacional para o magistério.
Por isso que eu evoco a comparação disso como o “demônio da alma secreta de todo o petista que envenenará o cara que estiver mais perto”. Estas coisas demoníacas e tão animalescas e bestializadas que muito tempo foram cultivadas pela revista Veja, eu conheço. É uma estratégia de propaganda de demonização que vem desde a época do nazismo. A utilização de uma hidra com sete cabeças que foi a capa da Veja quando teve o seminário do PT, foi para associar o que seria a imagem do próximo governo do PT, o da Dilma.
Esses símbolos embolam nesta sopa meio diabólica outros temas, como o da educação agora. Por isso que eu uso a expressão mantra. É um jeito de fazer a comunicação. A parte alcançada é diminuída na sua importância e significação, e se utilizam métodos comparativos de índices mundiais, que é natural que estejamos atrás. Mas, se compararmos com índices do próprio Brasil, teve avanços. Nunca antes na história deste país se dobrou o número de escolas técnicas federais que tínhamos ao longo de toda a história republicana brasileira. Isso não é um detalhe ou aquele truque que qualquer político faz, que é legítimo, de mostrar pequenas obras para fazer marketing. Não é isso. Tu dobrar a oferta para a demanda de ensino técnico tem a ver com uma preocupação com o ensino, que é a mesma preocupação de toda população. A unificação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) também foi uma conquista importante. Mas, também virou o exemplo de desastre, porque o controle das empresas terceirizadas teve problema.
Mesmo com os percalços, estamos estabelecendo um padrão nacional e sistemático. Citei apenas dois exemplos. Mas o mantra utiliza a tática de desconhecer os progressos, por mais que ainda sejam insuficientes, dando ideia de que nada aconteceu.
Essa tática também será utilizada pela imprensa gaúcha? Ao exemplo do que ocorreu na gestão de Olívio Dutra?
Podemos esperar um cenário menos controverso do que tivemos no governo Olívio, por várias razões. Tivemos oito anos de gestão Lula. Já aprendemos com os erros do passado. Tomamos a atitude complexa de ampliar a base de governabilidade. Partindo disso, diminui parcialmente o campo de uma feroz forma de atuação da imprensa, que foi a que atuou desde a largada do governo Olívio. Criamos condições de arrancar com uma crispação muito menor. Porém, sou daqueles que pensa individualmente que o debate continua.
Apoio às mídias alternativas será suficiente para alcançar um equilíbrio neste debate?
Sem dúvida. Os indicadores nacionais de gastos com publicidade no governo Lula mostram que foram repassados recursos para 8 mil veículos, não mais 800 como era antes. Isto foi uma conquista democrática. Mas não porque se atendeu o compadre do pequeno jornal, mas porque atendeu a diversificação das mídias, redestribuindo as verbas públicas. Aqui (RS) teremos este mesmo critério. Respeitaremos os veículos tradicionais, mas vamos incentivar os demais.
A sua coordenação lhe permite opinar sobre todas as áreas do governo?
Sim. Mas minha participação varia muito. Os demais companheiros da equipe revezam os acompanhamentos das reuniões. Sempre fazemos breves sínteses das reuniões para o acompanhamento do governador. Isso nos dá certa noção geral do governo, mas não ultrapassamos as nossas competências. É claro que, como membro do núcleo de gestão, participo com observações que penso ser pertinentes.
Terá áreas mais prioritárias de relações na sua coordenação, como a articulação política junto à Casa Civil, por exemplo?
Nós temos finalidade específica. Somos assessores do governador que têm atribuições desde participar do centro político de decisões, monitorar alguns projetos e seguir determinações do governador. É uma tarefa para a qual precisamos ter maturidade, para não se sombrear com outras áreas do governo. É necessário se autolimitar, para ser realmente uma força auxiliar com a hierarquia voltada ao governador, dialogar bem e ajudar as secretarias.
Como está o andamento geral do governo nestas primeiras semanas?
Ainda estamos nos organizando e terminando a composição do segundo escalão. Mas já temos nos apropriado de alguns temas, como as cartas-consultas dos empréstimos financeiros e a aprovação dos projetos na Assembleia Legislativa.
Como é a sua relação com o governador Tarso Genro?
Nos conhecemos há muito tempo. Mas, nunca estive tão perto dele como nesta eleição. Acompanhei os debates da coordenação de campanha. Vivenciei algumas avaliações, decisões. E, no período da transição, também acompanhei os labirintos da composição. A instância para arbitrar situações que viravam impasses era o governador, mas a nossa tarefa sempre foi levar o mínimo de questões para o governador arbitrar. Nesse processo eu me aproximei mais do Tarso.
Mas o senhor fundou junto com ele uma das correntes do PT. Como foi essa aproximação político-partidária?
Quando eu voltei da França, onde estava exilado, em 1984, o Tarso estava entrando no PT. Nesta época se falava de construir o partido e para mim foi fantástico, pois eu tinha ficado 14 anos fora. Mas eu era um cara meio portenho e até sempre debochei que não sei como me entendiam, porque o meu português era terrível. Sempre foi muito viva a memória de Buenos Aires, da prisão…
Aqueles anos na Argentina foram muito impactantes na minha vida. Como o período na França. Foram cinco anos, mas foram dramáticos. Foi uma tentativa de reconstrução pessoal, depois de duas derrotas gigantescas, prisão, tortura, muita gente perdida… Minha autocrítica com minhas próprias responsabilidades, com meu sentimento de culpa em ter falhado aqui.
A ministra da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, começou o mandato pedindo que seja aprovada a criação da Comissão da Verdade, que irá apurar os crimes da ditadura militar. O senhor acredita que o governo Dilma irá conseguir isso?
Agora vai. Este é um atraso para nossa nação. Tanto o ministro Paulo Vanuchi como o Tarso foram figuras emblemáticas na tentativa de avançar neste tema. Tanto no Plano de Direitos Humanos quanto na tentativa de responsabilizar os torturadores por crimes contra humanidade. Portanto, reler o tema da anistia como ele tem que ser feito.
E ver o atraso do Brasil me remete ao meu pedaço de vida argentina. A Argentina colocou na cadeia os seus ditadores. E o Brasil não conseguiu sequer tratar do assunto. A direita e seus interessados dizem que este é um tema revanchista. Não. Nos falta recuperar um pedaço da história. É impossível que os jovens continuem sendo formados dentro do Exército, que seja legítimo ter uma educação deformada da história. Uma espécie de fossilização do passado e uma indecência inadmissível.
Eu me considero concernido por todas essas coisas. Mas não acho que isso é uma questão de acerto pessoal. Há um pedaço faltando nesta história. Como podemos, simplesmente, aceitar o desaparecimento de cerca de 400 pessoas do país? Simplesmente nos convidam a esquecer? O que me alarma terrivelmente é o discernimento sobre a ética deste tema. Ninguém quer fazer um novo capítulo do passado. Temos que acertar as contas com o passado para ter uma luminosidade mais clara do conjunto da nossa história. Isso tem a ver com a educação, com a memória de um povo e com a formação do nosso Exército. No governo Lula começou a haver, especialmente a partir do segundo mandato, uma modernização do Exército brasileiro. Essa modernização implicará em algumas revisões doutrinárias do que deve ser uma força nacional de defesa. E o resto? Também. A formação cívica, onde a moral cívica não é da ditadura militar. Este tema ficou pendente do governo Lula e a nossa presidenta terá coragem para fazê-lo.
Precisou de uma mulher para fazer isso?
É verdade. Duas né. (risos)
Qual o significado da eleição de Dilma Rousseff para o país?
Eu senti mais o aspecto da vitória, do ponto de vista mais amplo, de todos. Foi a candidatura do projeto em que eu acredito, que conseguiu coisas notáveis para o país, apesar de ainda faltarem avanços. Medularmente envolvido com a política como estou, posso dizer que o mau-caratismo da campanha eleitoral nacional, fez com que a vitória de Dilma fosse uma confirmação de sua segurança e da sua força. Ela encarou um câncer, uma situação de ser candidata à presidência da República, uma campanha que atacou pontos sensíveis e fora do debate político e conseguiu crescer e vencer. A minha impressão pessoal do dia de sua posse….
(emocionou-se e chorou)
Desculpa. Me engasguei. Não sou um personagem de paparicações, mas tem uma imagem de força na Dilma que lembra o lema do Mitterrand (François), quando ganhou as eleições na França, em 1981: “La force tranquille”. É a força tranquila. Tem uma síntese genial essa frase e me fez lembrar a síntese da trajetória de conquista da Dilma. Essa foi a sensação subjetiva que me passou. Que ela tem uma densidade e uma história de vida que é dura, mas ela foi tranquila e segurou.
Como o senhor prevê a participação do estado nas eleições do Parlamento do Mercosul e como será a relação diplomática com os países que compõem o bloco?
O único país que já elegeu para o Parlamento é o Paraguai. Até agora todo o Parlamento era indicado. Este assunto é importante. O deputado federal Rosinha no Paraná presidiu uma parte da gestação do futuro Parlamento eleito. Mas, este tema ainda não foi tratado. Não está em pauta ainda no governo. Talvez esquente mais na metade do ano. Em todo caso, com o Mercosul nós temos toda a ambição. Vamos contar com o trabalho da assessoria de Relações Internacionais para isso.