Marcos Dantas: A mídia se partidarizou
Os grandes conglomerados da mídia não mediram esforços para fabricar fatos e influir no roteiro político das eleições presidenciais de 2010. No papel de oposição declarada, chegaram às fronteiras do obscurantismo ao estimular preconceitos de ordem religiosa para tornar bem-sucedido o programa político que consideravam o mais conveniente aos seus interesses.
Os grandes conglomerados da mídia não mediram esforços para fabricar fatos e influir no roteiro político das eleições presidenciais de 2010. No papel de oposição declarada, chegaram às fronteiras do obscurantismo ao estimular preconceitos de ordem religiosa para tornar bem-sucedido o programa político que consideravam o mais conveniente aos seus interesses.
Na avaliação de Marcos Dantas, professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, não é exatamente uma novidade histórica o alinhamento da mídia brasileira a projetos conservadores que, em algumas ocasiões, desaguaram em golpes de Estado, como ocorreu em 1964. “O que diferencia o momento atual é que não dá mais para contar com um golpe militar e, por isso, são necessárias outras estratégias de convencimento”, salienta o especialista em Economia Política da Comunicação e doutor em Engenharia de Produção pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ. Estudioso das novas tecnologias digitais, Marcos Dantas acredita que as mídias sociais vêm rompendo, em muitos casos, a pauta de debates imposta pelos meios tradicionais. “Na Internet, não se pode controlar a produção de conteúdo. O conglomerado que controla o setor de comunicação no Brasil tem consciência de que as novas mídias são uma ameaça aos seus negócios”, avalia o professor.
Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, Dantas defende uma “re-regulamentação” das comunicações voltada para a convergência das mídias e o fortalecimento da produção de conteúdo nacional. No entanto, adverte que a efetiva democratização dos meios de comunicação é muito difícil em uma sociedade movida pelo poder do mercado.
Nesta última eleição presidencial, como o senhor avalia o papel da mídia tradicional? A mídia, de fato, se partidarizou?
Podemos afirmar que a mídia se partidarizou por uma razão muito simples. A presidente da Associação Nacional de Jornais, Edith Frias, do grupo Folha, deu uma declaração pública dizendo que quando a oposição é débil a mídia deve assumir esse papel. É algo oficial, não uma análise feita de fora. A mídia assumiu oficialmente uma posição partidária e não sou eu que vou contradizê-la.
Pode-se dizer que é algo que não acontece com tanta intensidade desde as eleições de 1989?
Não sei. Mas esse comportamento é recorrente. Muito provavelmente os mais velhos lembrarão a crítica implacável dos meios de comunicação ao segundo mandato de Getúlio Vargas. A derrocada do Jango foi outro momento de união da mídia em torno de forças retrógradas. No golpe militar, os editoriais e as reportagens da maioria absoluta dos grandes jornais foram todos amplamente favoráveis aos militares. Do ponto de vista histórico, essa unanimidade da imprensa em torno de determinadas posições políticas é tradicional e aconteceu também na eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989. Agora, a história se repetiu nesta eleição presidencial de 2010. É uma trajetória que mostra muita coesão da mídia em momentos cruciais de nossa história.
Seria exagero identificar um comportamento golpista da mídia, como alguns chegaram a apontar?
Não diria que é exagero se levarmos em conta o que aconteceu, por exemplo, na Venezuela. Sem dúvida alguma, houve uma tentativa de derrubada do governo constitucional de Chavez, em 2002, com a ajuda decisiva da televisão e dos jornais. E quase conseguiram seu intento. Também há o exemplo do apoio da mídia brasileira ao golpe de 1964. O que diferencia os momentos é que, agora, não dá mais para contar com um golpe militar. Por isso, são necessárias outras estratégias de convencimento e de construção de consensos, que levem a população a dar consequência a um projeto golpista através, por exemplo, de um impeachment. Aparentemente, houve sim um esforço de fabricação de consenso para levar a uma mudança do rumo político e histórico do momento.
A chamada grande imprensa, no processo eleitoral, deu curso a debates retrógrados que vinculavam temas como o aborto, a opção sexual e visões religiosas. Instalou-se no país quase um clima de inquisição e perseguição religiosa. Como o senhor avalia isso?
Olha, estamos muito perto dos acontecimentos para poder avaliar com segurança esses aspectos. Na minha condição de acadêmico, é preciso certa prudência. Quando digo que há um processo de fabricação de consensos por parte dos meios de comunicação, é porque existem estudos que comprovam isso. O momento que vivemos merece investigação mais aprofundada para que possamos compreendê-lo melhor. O que posso dizer é que essas questões que você levanta me causam estupefação.
Por quê?
Porque hoje existe, ou deveria existir, um consenso em torno da defesa de um Estado laico e republicano. Um consenso em torno da defesa de um projeto de raízes iluministas. E os dois candidatos que participaram do pleito presidencial no segundo turno são pessoas que possuem essa raiz, mesmo com suas diferenças. Então é muito difícil entender que, de repente, os meios de comunicação venham a suscitar um debate fundamentalista no Brasil. Um debate obscurantista e absolutamente reacionário. Isso deveria ter sido alvo de combate por parte de todos os candidatos. Eles não deveriam aceitar, em hipótese alguma, a interferência do obscurantismo religioso nas discussões políticas, que significa abrir espaço para a construção no Brasil de uma República teocrática. Não vamos imaginar que esse fenômeno seja exclusivamente muçulmano. Nada impede que seja cristão também. E hoje existe uma parte grande da nossa população que está sendo arrebanhada por um projeto teocrático. Esse é outro fenômeno que merece discussão. Eu não consigo encontrar uma explicação de como se suscitou tal debate numa campanha presidencial, a não ser por uma espécie de golpismo superficial.
Foi depois da realização da I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), em abril de 2009, que a grande mídia intensificou a estratégia de oposição ao governo com a intenção de resguardar os próprios interesses?
A Confecom pode ter contribuído, mas penso que a mídia está expressando questões mais profundas relacionadas à sociedade brasileira. Os seus interesses se articulam com um conjunto amplo de outros interesses, nacionais e internacionais. O que estava em jogo nessas últimas eleições era o novo papel internacional do Brasil. Um papel que pode ser reforçado ou não, dependendo da orientação que se dê ao pré-sal, por exemplo, que criou uma nova dimensão geopolítica para o país. O que estava em jogo era um projeto de construção de um espaço sul-americano para os sul-americanos. Além disso, houve a incorporação ao consumo de cerca de 30 milhões de brasileiros. É preciso, claro, que também tenham acesso à educação, à cultura. Trata-se de um processo que não pode parar. Existem mudanças em curso e mais quatro ou oito anos do mesmo projeto podem torná-las irreversíveis. Os meios de comunicação, articulados com outros interesses, tentam cumprir um papel de impedir que esse projeto prossiga.
Nesse processo, qual a sua avaliação do fenômeno dos novos meios de comunicação, especialmente das redes sociais na Internet?
Essa questão requer responsabilidade acadêmica para tentarmos compreender o fenômeno. Ainda não temos muitos elementos. Há 15 anos, a televisão aberta tinha quase o monopólio da audiência, no mundo e no Brasil. Nesses últimos anos, esse monopólio foi quebrado praticamente no mundo inteiro pela penetração da TV por assinatura e da Internet. Mas no Brasil isso ainda não aconteceu. Hoje, nos principais países capitalistas, a população tem à sua disposição centenas de canais de televisão. Assim, nenhum país pode dizer que tem 50%, 40% ou 30% de audiência.
E isso ainda acontece no Brasil?
Sim, a Globo não tem mais uma audiência de 60% porque a Record emparelhou com ela em alguns horários, mas ainda detém índices médios de 30% a 40%. Mas em qualquer lugar do mundo hoje, grandes redes, mesmo a BBC inglesa, têm cerca de 10% de audiência e ficam felizes com esse percentual. E existem centenas de canais com 1% ou 2%, que mostram uma diversidade de oferta e segmentação do mercado que são imensas. A reconstrução da estratégia de audiência mudou completamente a maneira de fazer negócios em vários países.
Mas as chamadas mídias sociais conseguem confrontar a mídia tradicional em termos de informação, escapando à lógica de produção monopolizada da notícia?
Sim, conseguem. Na Internet não se pode controlar a produção de conteúdo. De repente, um cara lá na Austrália, como aconteceu recentemente, coloca na rede documentos secretos sobre ações de militares norte-americanos no Afeganistão e muda a pauta. Um dos elementos mais importantes da estratégia de produção de consenso é exatamente o controle do agendamento. Quando se tem um conjunto pequeno de corporações controlando a informação, esse grupo diz o que pode ou não ser notícia. Mas quando se tem uma diversidade grande de produtores de informação essa pauta controlada começa a ser quebrada. O conglomerado que controla o setor de comunicação no Brasil há cerca de 50 anos tem perfeita consciência de que o fenômeno das novas mídias é uma ameaça aos seus negócios.
E como esses grupos ligados à mídia tradicional estão se preparando para enfrentar essa mudança?
Bem, eles sabem que a transição vem. E raciocinam da mesma maneira que D. João VI ao aconselhar o filho D. Pedro a respeito da Independência do Brasil em relação a Portugal. Se ela é inevitável, “antes seja para ti, que me hás de respeitar, do que para alguns desses aventureiros”. Ou seja, eles estão tentando controlar a transição. Com o atual processo de mudança política, econômica e social no Brasil, inclusive com a realização da Confecom, temem perder o controle do ritmo e do rumo dessa transição que acontece em seu próprio negócio. Daí também a ferocidade com que tentam barrar tal processo.
E daí também a dificuldade de regular o oligopólio no setor de comunicações, como acontece em qualquer país do mundo?
Temos um dispositivo constitucional de 1988 que nunca foi aplicado. Esse é o exemplo mais óbvio de como o sistema consegue controlar o ritmo da mudança e tem o poder até mesmo de barrá-la. Mas é possível que agora se consiga abrir o debate porque existem novos atores envolvidos, como ficou claro na Confecom. A sociedade está querendo discutir e influir nos rumos dessa discussão.
No Rio de Janeiro, um mesmo grupo empresarial controla a TV aberta, as tevês pagas e a rádio AM de maior audiência, além dos dois jornais mais lidos. Há exemplo disso no mundo?
Não. Mas a questão do oligopólio tem que ser vista de modo mais complexo. É um conceito econômico que indica que há um pequeno grupo de empresas de determinado setor controlando o mercado. Por esse estrito viés econômico, seria possível dizer que não há monopólio no Brasil. Existem centenas de emissoras de rádio, dezenas de jornais. Ao todo no Brasil existem, se não me engano, 470 emissoras de televisão pertencentes a grupos empresariais diferentes. Mas não se pode olhar a questão pelo conceito estritamente econômico, não é um problema para o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão que fiscaliza casos de abuso de poder econômico. Devemos analisar como funciona o setor das comunicações, do ponto de vista econômico, mas também entender os seus elos com a política e com a cultura.
Há modelo no mundo parecido com o brasileiro?
O modelo norte-americano é muito parecido com o brasileiro. Mas nos Estados Unidos existiam, não sei se ainda existem, mais de mil emissoras de televisão aberta espalhadas pelo país. E havia uma legislação que obrigava que 25% da programação dessas emissoras tivessem origem local. O restante da programação era da cabeça de rede. A estrutura de rede nacional é bem parecida com a que existe no Brasil
Essa obrigatoriedade de programação local é uma das demandas da Confecom?
É, mas quando falo nos Estados Unidos lembro, de imediato, de cerca de seis ou sete pólos econômicos distribuídos pelo país, como Nova Iorque, Miami, Seattle, Houston, São Francisco, Los Angeles, Chicago, Detroit. E quando falo de Brasil, lembro de São Paulo. Então, quando defendo a produção local sei que é preciso também um dinamismo econômico local para sustentá-la. Portanto, a questão do oligopólio da mídia vai além da lei e faz parte de um processo amplo de mudança.
E é possível vislumbrar alguma mudança nessa direção?
Recentemente participei de um seminário no Nordeste e fiquei admirado com o que ouvi. Está havendo hoje um crescente dinamismo econômico do interior e já existem cidades médias que são relativamente autossustentáveis do ponto de vista econômico.
Isso já se reflete na produção de cultura?
Eu não ousaria dizer que já se reflete, mas há uma clara expectativa de que esse processo reflita no plano da cultura. Se tivermos políticas públicas adequadas, é possível fazer com que o dinamismo econômico também estimule a produção local. Nesse caso, um dispositivo regulador que determine que a programação tenha 25% de produção local vai certamente acelerar esse processo.
Por que é tão difícil no Brasil aprovar uma lei geral que regule o setor de comunicações?
É um processo. No Brasil, existe uma estrutura que se organizou, há cerca de 50 anos, com o controle de determinadas corporações, e elas não vão querer “largar o osso”. Como disse, estão brigando para controlar o ritmo e a direção da mudança. Um exemplo de que isso já vem acontecendo é a “Lei do Cabo”. Houve um momento em que, espontaneamente, começaram a aparecer operadoras de TV a cabo. Quando isso aconteceu, a produção de conteúdo era um monopólio das emissoras de TV, inclusive regulado pela própria Constituição. Criou-se então um vazio legal. Encaminhou-se um projeto de lei, o tempo inteiro instrumentalizado pela Rede Globo, que gerou um mercado de televisão a cabo sob o seu controle. Foi uma lei feita sob medida. E alcançava apenas o cabo, deixando de fora a outra modalidade de TV por assinatura, por meio de satélite. Ali, a Globo fez uma negociação com o Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações, dando algumas migalhas, como um canal comunitário, e aprovou uma lei que lhe permitiu criar a Net e dominar 60% do mercado. Com isso, o mercado parou de crescer no Brasil. Estacionou.
Parou de crescer por causa da renda média dos brasileiros, já que os serviços monopolizados pela Net são caros?
Sim, pela renda e também pelo tipo de conteúdo, que não interessava ao público. Enquanto isso, a Globo foi se preparando para a transição, construindo seus próprios canais para concorrer no mercado do cabo, como os telecines, o GNT, entre outros. Ela começou a testar esse tipo de mercado e a se transformar em uma grande produtora de conteúdo. E é exatamente o que ela é hoje. Diria até que a Rede Globo terá um grande futuro se assumir esse perfil para disputar, por exemplo, com os grupos Warner e Fox. Mas aí entra a cultura de emissora da TV Globo. Ela se pergunta: o que sei fazer? E responde: produzir e emitir. E não admite que lhe digam que, agora, não pode mais possuir um canal de VHF.
A implantação do Conselho Nacional de Comunicação, que é uma das resoluções da Confecom, seria um instrumento importante para democratizar a mídia no Brasil?
Vou tentar discutir melhor essa questão da democratização da mídia. Digo com clareza o seguinte: em uma sociedade de mercado, é muito difícil democratizar os meios de comunicação. Não vamos confundir mercado com democracia. Para alcançarmos a democratização da mídia é preciso democratizar a sociedade. Posso até afirmar, dialeticamente, que para a democratização da sociedade um dos aspectos importantes é democratizar a mídia. São como dois pedais de uma bicicleta. Mas não vejo como a criação de um Conselho de Comunicação resolverá isso sozinha. É necessário um conjunto amplo de mecanismos para democratizar a sociedade e, com base nessa perspectiva, introduzir uma questão importante nesta discussão.
E qual é?
É a própria visão dos meios de comunicação, que é funcionalista. Por essa visão, cuja referência mais distante é o liberalismo na acepção mais legítima, os meios de comunicação teriam uma função ligada à cultura, à democracia, à informação ampla. Acontece que, numa sociedade capitalista moderna, os meios de comunicação são empresas capitalistas voltadas para o lucro. Se quisermos adotar uma visão funcionalista, teríamos que dizer que a função deles é dar lucro e ponto final. O seu objetivo não é a democracia. São empresas que produzem para lucrar e têm no capitalismo uma dimensão cada vez mais importante. O conhecido economista John Kenneth Galbraith disse que é impossível pensar a sociedade industrial sem a televisão. Lamentavelmente, boa parte dos economistas, inclusive os marxistas, não atentou para todas as consequências dessa conclusão. De fato, não se pode pensar o capitalismo contemporâneo sem compreender o lugar que os meios de comunicação ocupam nele, que é o de produção de consumo. Eles não estão nem aí para discutir ideias, para a democracia ou para a liberdade de expressão. Querem produzir consumo e é isso o que fazem.
O negócio é mover a roda?
Exatamente. Claro, as pessoas precisam de mais crédito e mais renda para consumirem. Mas apenas isso não é suficiente. É necessário criar uma mentalidade voltada para o consumo. Não apenas pela publicidade, que tem um foco direto, mas pelas ideias e valores que chegam às pessoas que assistem a uma novela, a um programa de auditório ou a um jogo de futebol. Todo esse ambiente está criando uma visão que associa a vida ao consumo. Quando a renda cresce, a primeira coisa que a pessoa faz, impulsivamente, é comprar. Por isso, numa economia de mercado, o máximo possível é expandir, criar e diversificar os canais competitivos de produção de consumo. A remodelação capitalista dos últimos 20 anos, apoiada pelas novas tecnologias, gerou tal efeito nos Estados Unidos, Europa e Japão. Os canais competitivos foram multiplicados, mas isso não é democratizar os meios de comunicação. É apenas ampliar a faixa de oferta de consumo. Quem gosta de futebol sintoniza em um canal específico e não precisa mais ficar esperando o domingo à tarde para ver uma partida. Da mesma forma, não é mais preciso esperar o “Corujão” para ver um filme. Isso significa a diversificação de ofertas e a criação de outros valores sempre voltados para a produção de consumo.
Que propostas da Confecom o senhor citaria como as mais importantes?
Bom, não quero brigar com meus amigos. É claro que, se tivermos que criar um conselho, vamos fazê-lo, até porque ele pode ser um espaço de debate interessante. Mas eu, contrariando boa parte de meus colegas, não acho a proposta do conselho a mais importante. As propostas mais importantes produzidas na Confecom são aquelas que focam numa regulamentação das comunicações brasileiras voltada para a convergência e para a produção de conteúdo. São aquelas que identificam a necessidade de se ter uma regulamentação que considere o conteúdo em seu conjunto, indiferentemente da plataforma tecnológica. Ou seja, não importa se assisto à televisão na telinha, na telona ou no computador. Em relação à plataforma, interessa apenas a possibilidade de se ter a oferta mais diversificada possível. Agora, do ponto de vista do conteúdo, é preciso uma política pública que fortaleça, primeiramente, a identidade nacional, que passa pelas identidades regionais e culturais existentes no país. Em segundo lugar, essa política deverá garantir espaço para a produção de conteúdo não comercial, ou seja, de natureza exclusivamente cultural, educacional, lúdica. As propostas da Confecom que fortalecem a ideia de produção de conteúdo nacional são, na minha avaliação, as mais importantes.
Decorrido mais de um ano do término da Confecom, o que aconteceu com as propostas aprovadas e como anda a mobilização em torno delas? Pode haver avanço no próximo governo?
O atual governo criou um grupo de trabalho e prometeu deixar pronto um projeto de regulamentação para o próximo ano. No próprio governo de Fernando Henrique Cardoso havia uma proposta elaborada de regulamentação para os meios de comunicação eletrônica, deixando de fora as chamadas telecomunicações, porque já existia a Lei Geral das Telecomunicações (LGT). É muito provável que, agora, depois de oito anos e todas essas mudanças, tenhamos um projeto de lei que trate das comunicações em um mesmo pacote, separando o que é infraestrutura e o que é conteúdo. É a proposta que defendo. Um modelo muito interessante é o do Projeto de Lei 29, já aprovado na Câmara e que está tramitando no Senado.
Qual a novidade desse projeto?
Ele desagrega a cadeia produtiva, ou seja, identifica quem produz conteúdo, quem programa e quem transporta. A partir daí, para cada um desses atores, o projeto estabelece as regras adequadas. A proposta nasceu de um movimento feito pelas teles para comprar pequenas operadoras de TV a cabo. Isso gerou uma reação da Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA), dominada pelas organizações Globo, para impedir a iniciativa das teles. A alegação era a de que, pela LGT, as teles não poderiam ser proprietárias de operadoras de TV a cabo. Começa então uma guerra de projetos de lei no Congresso, com posições opostas.
E o que aconteceu depois?
Um desses projetos acabou nas mãos do deputado Jorge Bittar (PT/RJ), que foi o seu relator na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara Federal. Ele teve a sensibilidade para reunir projetos capengas e propor uma grande regulamentação de TV por assinatura. Primeiro, trouxe para o PL 29 a TV por satélite, que não está na “Lei do Cabo”, e a chamada MMDS, outra tecnologia, mas que está em extinção. Isso significa criar um serviço de acesso condicionado, não importando a plataforma. E depois, propôs a discussão a respeito do conteúdo, até porque TV por assinatura, hoje, no Brasil, é sinônimo de programação estrangeira. Já na televisão aberta, por uma política de pressão da ditadura militar, existe forte presença de conteúdo nacional. E a população se habituou a ver a novela brasileira e o Jornalismo brasileiro. Pode-se achar bom ou ruim, mas a população se acostumou com o jeito brasileiro de fazer televisão. Então, começamos uma briga para que se colocasse um forte percentual de conteúdo nacional na TV por assinatura. Apesar dos lobbies e de alguns recuos, o projeto manteve a ideia central de que qualquer pacote de TV por assinatura tem que ter 1/3 de canais brasileiros e pelo menos três horas e meia diárias de programação nacional qualificada.
Explique melhor essa ideia.
Fomos buscar na legislação europeia o conceito de espaço qualificado, que é definido por exclusão. Ou seja, programação qualificada é o que não é jogo de futebol, programa de auditório, noticiário. Por exclusão, sobram os documentários, filmes, seriados, enfim, esse tipo de programação. É um avanço e há uma possibilidade de aprovar esse projeto antes do fim do ano.
Qual a sua opinião acerca do papel das escolas de Comunicação, atualmente?
Não se pode deixar de dar ao jovem a formação necessária para que ele seja um bom profissional, mas acho que o papel de qualquer universidade é construir consciência crítica. E está cada vez mais difícil. Quando Karl Marx escreveu naquele velho manifesto que o capitalismo penetra em tudo, ele não imaginava a que níveis isso chegaria na sociedade atual. As pessoas com maior visão crítica optam, normalmente, pela carreira acadêmica. E aí há o risco de se ter uma produção acadêmica crítica, que fica fazendo discurso contra os meios, e a realidade do mercado é outra. É algo que não se sustenta porque, pela ordem natural das coisas, as novas gerações começarão a produzir na academia também para o mercado. Já existe, por exemplo, a Globo Universidade. Em outros setores da Ciência, como a Biologia, já há uma forte imbricação entre universidade e empresa. No campo das Ciências Humanas e Sociais, existe uma herança crítica, mas o fato é que a universidade não está fora da sociedade. Fica a pergunta: até que ponto essa herança vai resistir, a não ser que se comece a reconstruí-la na própria sociedade?