Eu, o RAP e a escrita
No início da minha adolescência eu me descobri através das letras de RAP, rolava uma identificação de cor, classe, geracional, musical, entre tantas outras. Foi através do RAP que eu comecei a ver-me como sujeito da minha própria história, e a ter sonhos inacabáveis. As músicas falavam dos problemas sociais, das contradições, e alimentavam meu espírito revolucionário, eu queria sempre mais, as vezes não sabia o que, mas eu desejava abraçar o mundo e fazer a diferença.
Era como se eu tivesse me encontrado no mundo, aos 12 anos o RAP revelou quem eu era. Eu passava horas transcrevendo músicas que tinham 8, 10, e até 12 minutos, versos que não se repetiam, e que alimentavam a minha alma, era incrível, talvez um sentimento que até hoje eu não saiba descrever. Não ligava para televisão, o meu negócio era o rádio, quando não estava na escola, estava ouvindo rádio ou na rua conversando sobre o RAP com amigas e amigos. Eu gravava fitas e fitas dos programas de RAP das rádios comunitárias, a maioria eram piratas, pois o RAP não tinha espaço em outra sintonia que não fosse a 105.1 FM, esta que eu não deixava de escutar das 18h00 as 22h00 todos os dias. Minha mãe enlouquecia quando chegava a conta de telefone, eu sempre ligava muitas vezes até conseguir dar um "salve" ao vivo para os manos e minas, e pedir minha música preferida. Meu pai não entendia porque eu só falava de RAP, e um certo dia ele me disse que o RAP não me levaria a lugar nenhum, engano dele.
As fitas que eu gravava eram todas muito úteis e era com elas que eu ocupava boa parte do tempo, tinha uma pasta onde guardava as transcrições das letras de RAP que eu fazia, não havia coisa melhor para eu ocupar os meus dias, eu pirava naqueles versos que eu julgava revolucionários. Com o tempo passei a escrever minhas próprias letras, e passei uma fase da minha vida cantando RAP, tive alguns grupos: "Estilo de Vida", "Distúrbio Verbal", e também cantei uns solos. Até hoje a melhor fase da minha vida, ainda não teve outro momento que mexa com as minhas emoções como a época que me descobri através do RAP, isso alimenta quem eu sou até hoje.
Eu tinha uma professora de português que ficava admirada, e pedia para eu cantar minhas letras para ela, eu sempre tinha vergonha. Talvez o que tenha a deixado admirada seja o fato de que foi através do RAP que eu desenvolvi a minha escrita, seja transcrevendo as minhas músicas favoritas, seja escrevendo as minhas próprias letras, e por isso não deixava de entregar nenhuma das redações que ela solicitava em sala de aula, eu escrevia sobre tudo, o que antes do RAP não era tão comum. Através do RAP eu comecei a construir minhas narrativas, desenvolver o senso crítico, e expressar a minha identidade. O RAP mudou muitas coisas em minha vida, se revelou como uma ferramenta pedagógica, me ensinou a escrever, a escutar, a opinar, e a ler, pois com o tempo percebia que aquelas letras eram textos que falavam de assuntos diversos, e o que eu escrevia, tendo o RAP como método, eram textos, o que me fazia escrever cada vez mais. Hoje, escrevendo minha dissertação do mestrado fico lembrando de tudo isso, e não poderia deixar de fazer esse depoimento.
Talvez muitas das estratégias que as professoras que eu tive durante a minha educação básica não tenham dado certo porque não adentraram meu universo como o RAP, eu não guardo boas lembranças de todas essas fases. Ao contrário, o RAP deu muito certo na minha vida, e na vida de uma geração de Hip Hoppers que extrapolaram os limites expressos nas estatísticas. É uma geração de jovens negros e periféricos que tiveram a oportunidade de, através desse movimento, construir novas expectativas de vida e mudar seu itinerário. Hoje, olhando os manos e minas que atuavam comigo lá atrás percebo que este movimento foi capaz de transformar nossas vidas, são grandes mudanças, a maioria conquistas individuais, mas acredito que o alcance dos nossos sonhos individuais nos fortaleça para a atuação coletiva.
Salve Márcio Brown, Márcio Banto, Josué, Juliana, W.M, L.D., Diego, Adilson, Hélen, Ariane, Afonso, Idi, Leandro (Tufo), Magda, Macarrão, Seu Zé (Dimensão 5), Marcela, Juliano, Kizzy, Veiga, Sarah, Mary, Mancha, Deivison, Kamarão, Raisuli, Priscila, Fred, Nino Brown, Cassia Preta, Ciro, Adriano, Cibele, Mara, Magu, Morfy, L.G, Panikinho, Maurício Correria, Janaina Machado, Família MLK, VPP, Ação Periférica, Elizandra, Fórum de Hip Hop do interior, Força Ativa, R.O.T.AÇÃO, Kilombagem, Tchuck, Família Pic Favela, entre tantos outros que compartilham histórias de transformações proporcionadas pelo Hip Hop e do mesmo amor que tenho por este movimento.
Agradeço ao RAP por ter me ensinado a escrever.
*Jaqueline Lima Santos é mestranda em Ciências Sociais/Antropologia pelo Departamento de Ciências Sociais da UNESP – Marília e pesquisadora do NUPE – Núcleo Negro da UNESP para Pesquisa e Extensão.
Leia também:
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– Teoria e Debate: Cultura – Entrevista com Mano Brown, por Spensy Pimentel (Publicado em Teoria e Debate nº 46 – novembro/dezembro/janeiro de 2001)