A negociação com o Iran
Antes de ingressar no tema, vale lembrar um precedente importante. Anos atrás, os Estados Unidos alegavam insistentemente que o Iraque, então dirigido por Sadam Hussein, tinha desenvolvido armas químicas de destruição em massa, o que representava um grande risco para o mundo, dado o caráter ditatorial, violento, ilógico e inconfiável do governo daquele país. Mas a agência da ONU para a fiscalização das armas químicas era dirigida por um brasileiro, o honrado e competente Embaixador Bustami, que afirmava o contrário, isto é, que não havia armas químicas no Iraq. Foi então que, da forma mais autoritária, unilateral, atrevida e injuriosa ao Brasil, os Estados Unidos, como donos da ONU, decretaram a demissão do Embaixador Bustami e colocaram em seu lugar um representante seu, que repetia as acusações falsas, submisso aos planos da invasão que já estava decidida, por outras razões, como todos sabem. Não se encontrou nenhuma arma química, após a invasão, alguns protestos foram feitos no Senado Brasileiro mas a mídia nossa, menos brasileira, não deu nenhuma importância ao assunto, que caiu no esquecimento.
O precedente, e a semelhança das ameaças que se dirigem agora ao Iran, não com armas químicas mas armas nucleares, leva o senso comum a indagar: será que a guerra ao Iran já não está decidida e planejada junto com Israel, e a articulação de punições pelo Conselho de Segurança não passa de um jogo preliminar que o Brasil e a Turquia ingenuamente atrapalharam ? Vamos convir em que é uma hipótese a considerar com boa taxa de probabilidade. Até o dimensionamento das sanções teria sido bem calculado: não foram duras, para ter a aprovação da China e para não desacoroçoar verdadeiramente o Iran; até mesmo, ao contrário, encorajá-lo a prosseguir briosamente a todo vapor no seu programa de enriquecimento de urânio, ensejando a confirmação do grande risco apontado ao mundo pelos Estados Unidos. O acordo, afinal, corresponde em quase tudo ao que a grande potência havia aceito seis meses atrás, e não foi sequer examinado, considerado, mas as sanções propostas afrontosamente no dia seguinte. Muito estranho para o senso comum.
Bem, e se for isso mesmo? Ontem foi o Iraque; hoje é o Iran, será absurdo pensar que amanhã pode ser o Brasil, que também desenvolve sozinho um programa de enriquecimento de urânio, que tem uma das maiores reservas do mundo deste mineral estratégico, e que está descobrindo as maiores jazidas de petróleo reveladas nos últimos anos? Ora, eu sou intrinsecamente ingênuo, gosto de ser assim, sou feliz em ser assim, mas tenho de levantar essa desconfiança, e acho que os brasileiros têm mil vezes mais razões para desconfiar da arrogância militar americana do que eles de nós, que tradicionalmente nos colocamos sempre com a aspiração de ser potência da paz e da negociação.
E foi esta tradição, a meu ver, que esteve no cerne da motivação que levou o Presidente Lula a se meter nessa seara perigosa e dificultosa. Nunca foi uma área de atuação diplomática do Brasil, apontam os velhos conservadores do Itamaraty, com evidente laivo de ciúme. Passou a ser, entretanto, por duas razões principais que eles não enxergam, ou não querem enxergar: uma, que o Brasil cresceu muito depois do período deles e ampliou enormemente o seu espectro de visão e de interesses, ganhou aliados muito fortes na China, na índia e na Rússia, e pretende muito justamente ser
membro permanente do Conselho de Segurança e atuar na política de construção da paz mundial. Outra que o Brasil passou a ser potência petrolífera, e tem que manter um diálogo político permanente com as nações que possuem esta riqueza, mesmo as que não são amigas dos americanos, como o Iran, como a Venezuela.
Publicado no boletim Correio Saturnino – artigo 114/2010