Brasília: o colapso da aventura neoliberal
Brasília: um cinqüentenário melancólico
Brasília: um cinqüentenário melancólico
Brasília chega aos 50 anos, imersa na mais profunda crise política de sua História. A Capital da República foi sacudida por uma sucessão de denúncias irrespondíveis. As imagens foram exibidas em todos os canais de televisão – e com farta repercussão em outros meios de comunicação – que levaram à queda e à prisão o Governador do Distrito Federal; o vice-governador à renúncia; envolveu parte significativa dos Deputados da Câmara Distrital e alcançou setores do Judiciário. Graves ao ponto de ser posta na agenda nacional a hipótese de uma Intervenção Federal na Capital do país.
Cinqüenta anos depois de espantar o mundo com a arrojada invenção de Lúcio Costa e Niemeyer, com a sensibilidade de Burle Marx e o cálculo de Joaquim Cardozo; com a determinação de Israel e Sayão, com as harmonias de Cláudio Santoro e a exata simplicidade de Athos Bulcão; com a vontade visionária de JK mobilizando o país para realizar sonhos materializados pelo trabalho dos candangos – esses construtores de pirâmides – a cidade se vê prostrada pela vergonha a que foi exposta pelos dirigentes que elegeu no último pleito.
A sociedade perplexa assistiu a um espetáculo humilhante que pôs a nu o submundo do tráfico de influência, do suborno, da traição, da mesquinharia, do arrivismo, da delação, das pequenas vinganças, do roubo puro e simples em que se converteu o exercício do poder político no Distrito Federal. Tudo sob a bandeira da “eficiência”, do “choque de gestão”, da “modernização gerencial”, da “transparência” anunciada pelo programa do DEM/PSDB. A perplexidade se converteu em indignação diante desfaçatez e da ausência de limites constatada no comportamento de uma quadrilha que por todos os meios tentava ainda retardar e tornar inócuas as investigações conduzidas pela própria Câmara Legislativa.
Chegou-se por fim a uma desastrada tentativa de obstrução da justiça, que acabou por resultar na prisão do Governador José Roberto Arruda. Esse processo doloroso para os cidadãos e cidadãs de Brasília conduziu-nos à eleição indireta de um governo para um mandato tampão até que a sociedade se pronuncie em outubro próximo.
Para a sociedade política – ou seja, para os Partidos – que se posicionam para disputar o governo do Distrito Federal é preciso ir além da perplexidade e da indignação. Não basta repetir à exaustão os apelos éticos à consciência dos mandatados que produziram essa catástrofe política e institucional. É necessário compreender o processo para produzir ação.
Aos partidos não se perdoa a perplexidade. Dos partidos se exige mobilizar a sociedade, educá-la e organizá-la para a ação política. Para transformar ou para conservar. No que toca ao Partido dos Trabalhadores, em sintonia com as expectativas mais profundas da sociedade, para transformar essa realidade que nos envergonha.
A herança oligárquica
Certa vez perguntaram a Joaquim Domingos Roriz, recém egresso da Prefeitura de Goiânia depois de cumprir um mandato para o qual fora nomeado pela Ditadura Militar – naquele período não havia eleições para os prefeitos de capitais – se não se sentia desconfortável ao assumir o governo do Distrito Federal igualmente nomeado pela Ditadura Militar. O que afinal tinha a ver com Brasília? E ele, risonho, simpático respondeu, com o conhecido sotaque: “Vocês é que não sabem! Isso aqui tudo era fazenda do meu pai!”.
Munido dessa convicção Roriz governou o Distrito Federal. Estabeleceu como fonte de mando e poder a manipulação do bem primordial, a base física: a terra. Um bem que pertencia ao Estado e sobre o qual ele, como titular, exerceu na plenitude de sua vontade política como se fosse donatário de uma Capitania Hereditária. Teceu a partir desse exercício uma rede de lealdades e subordinação capilarizada em cada assentamento em que as famílias migrantes vindas das regiões mais pobres do Brasil, guiadas pela miragem de possuir um lote na Capital Federal onde pudessem construir sua casa. Ainda que fosse numa cidade satélite distante. Ainda que fosse carente de qualquer estrutura de serviços. Isso não importa. Pronto, estava aí conformada uma sólida e extensa base social e eleitoral que lhe garantiria vitória certa em embates futuros.
Estabelecer uma extensa rede de apoio social e eleitoral, a partir da disposição discricionária de um bem público: a terra. “Roriz me deu um lote”. Esse era o objetivo primeiro. Extrair desse gesto patriarcal, magnânimo, uma relação de subordinação com seus “eleitores” para conquistar e conservar-se no exercício do poder é o objetivo último. E permanente. Para tecer essa rede, Joaquim Roriz moldou o instrumento adequado: o PMDB. Roriz fez do PMDB um partido popular – no sentido da extração social dos seus eleitores – calcado na cultura tradicional e oligárquica do exercício da política como assunto de poucos. A equação se define assim: a) elites coesas em torno do patriarca; b) ocupação e subordinação das três esferas de governo; c) bases populares extensas; d) relação “paternal” com elas.
Traduzindo: o chefe político recebe dessa base sistematicamente construída o benefício coletivo – o voto que o elege – e retribui com o tratamento individual a cada família atada permanentemente pelo vínculo da “gratidão”. A relação, portanto, entre o eleitor e o mandatário é individual, sem mediações. É pré-política. Quando essa base social composta pelos setores mais pobres da população se associa e ensaia qualquer ação de natureza coletiva – ou seja, quando politiza a relação – se vê de imediato frente ao aparato repressivo do estado.
Aqui reside o núcleo social e a lógica política dessa experiência de mando no Distrito Federal.
Uma lógica oligárquica herdada da tradição rural e escravocrata que prevalece no país há cinco séculos. Trata-se da sobrevivência de um paradoxo: se contrapõe à ousadia, à invenção que Brasília encarnou como símbolo de modernidade para o Brasil e para o mundo.
O breve “intervalo” democrático-popular (1995-1998)
A eleição de Cristovam Buarque liderando a Frente Brasília Popular (PT, PSB, PDT, PCdoB, PCB, PMN) respondeu às expectativas de setores sociais médios, segmentos dos trabalhadores organizados em sindicatos, num momento de elevada politização da sociedade e de alta sensibilidade para as bandeiras da esquerda, diante da política de desmonte do Estado iniciada pelo governo Collor e que seria aprofundada ao longo do governo FHC, numa cidade em que o serviço público tem um peso econômico, político e cultural incontestável.
Não houve tempo suficiente para amadurecer a experiência democrática e popular de gestão conduzida entre 1995 e 1998 pelo Partido dos Trabalhadores e pelos Partidos da Aliança Brasília Popular que o sustentou. Um elemento definidor do projeto alternativo escolhido pelos eleitores foi o Orçamento Participativo. Essa experiência, a exemplo do que ocorreu em outras gestões lideradas pelo PT demonstrou que demanda um tempo de amadurecimento maior do que se supunha nas suas formulações iniciais. Interferiram objetivamente fatores de várias ordens. Já de início os limites institucionais expressos nas relações compreensivelmente tensionadas entre os instrumentos da Democracia Representativa – nomeadamente a Câmara Distrital onde estávamos em minoria – e os mecanismos de participação direta dos cidadãos: os Conselhos.Tais tensões derivam da abertura de um espaço novo de ação política pelo qual os cidadãos exercem algum “controle social” e por isso entram em choque com a atividade fiscalizadora dos Deputados Distritais respaldados pela legitimidade do voto popular; há, por outro lado, um aspecto de natureza cultural que diz respeito à herança das chamadas “classes subalternas” que reproduzem no seu quotidiano uma concepção de que a “política é assunto para letrados, para doutores” e se torna refratária a participar dos fóruns de debates e dos Conselhos. Esse dado ergue um desafio no plano da “educação política” que nem sempre o impulso do Estado pode suprir, é tarefa que exige tempo e instrumentos: redes sociais e políticas – sindicatos, associações, clubes, organismos comunitários – que vão se tecendo e se legitimando no próprio exercício das formas de “Democracia Participativa”; e, por fim, há um aspecto relevante no que toca às escolhas políticas feitas: a porcentagem do Orçamento total do DF sobre a qual o OP delibera é pouco relevante. Passo necessário para a pedagogia do processo de participação, acaba – em razão dos limites da duração do mandato – não contribuindo para a consolidação do novo espaço criado.
O período 95/98 se caracterizou mais por Políticas Públicas voltadas para responder às demandas reprimidas das áreas sociais: educação (Bolsa Escola), saúde (Saúde em Casa); segurança pública (Paz no Trânsito) cultura (Temporadas Populares) e menos por obras de infra-estrutura, algumas já reclamadas como urgentes pela população (Metrô, Terceira Ponte etc.). Os resultados colhidos pela população – e pelo governo – não se viabilizaram como instrumentos eficazes para a disputa política que se seguiu, em alguma medida por falta de solidez dos vínculos entre o Governo Democrático Popular e a base social beneficiada. Ela foi mais destinatária do que protagonista do processo. E optou, no final por trazer o Roriz de volta.
Os Consórcios Empresarias à frente do GDF
A vitória de José Roberto Arruda e Paulo Otávio – da Aliança PSDB/DEM – significou a vitória de uma concepção privatista na condução dos assuntos públicos derivada da hegemonia ideológica neoliberal, naquele momento vivendo momentos de quase histeria face ao segundo confronto com a perspectiva democrática e popular iniciada com o primeiro mandato do Presidente Lula.
Não é ocioso lembrar que a dobradinha Arruda/Paulo Otávio se beneficiou do deslocamento do eleitorado de classe média para a direita do espectro político. Composto por servidores públicos, insatisfeitos com algumas políticas do Governo Federal, a Reforma da Previdência, por exemplo, e com as denúncias de Caixa 2 envolvendo militantes do PT, esses eleitores viram na dupla Arruda/Paulo Otávio o instrumento para o revide aos seus interesses contrariados. Para tanto, já haviam “perdoado” Arruda pelo episódio da violação do painel de votação do Senado Federal, fizeram dele o Deputado Federal mais votado no DF no pleito seguinte e se deixaram seduzir pelo discurso neoliberal do “choque de gestão”, da eficácia gerencial, da competência empresarial para gerir a máquina pública.
Em suma, delegaram aos Consórcios Empresariais a condução de um novo ciclo de desenvolvimento para a cidade. Estabeleceram uma aliança com as forças políticas que gravitavam em torno de Joaquim Roriz e venceram facilmente as eleições. Uma aliança entre a Nova Direita neoliberal e a Velha Direita oligárquica. O objetivo: reinaugurar Brasília no seu cinqüentenário! Os métodos não foram exatamente novos em se tratando das experiências de gestão dos governos de direita no Brasil: realizar grandes obras de infra-estrutura em todo o DF para prepará-lo para os grandes momentos do aniversário, e oferecer uma estrutura moderna e adequada para disputar eventos da Copa do Mundo e das Olimpíadas.
A lógica dos negócios que se impôs à administração pública exigia demarcação de áreas de interesse entre os diferentes atores tendo como alvo principal os mecanismos da administração voltados para a gestão do território e para realização das obras. Leia-se especulação imobiliária que alcança hoje níveis estratosféricos e superfaturamento no atacado e no varejo. Não é ocioso referir que o vice-governador Paulo Octávio reconhecidamente um dos maiores proprietários imobiliários do DF se instalou à frente da gestão desse processo. Numa pessoa se concentram as duas dimensões: o governante que dispõe sobre a aplicação do recurso público e o empresário principal destinatário desse mesmo recurso. Não por acaso a mais delicada – e mais custosa – operação político-empresarial do governo Arruda foi a aprovação do PDOT. Tratou-se da institucionalização do modelo de gestão preconizado pela aliança que governava o Distrito Federal assentada sobre a apropriação privada do bem público, mediante o suborno da maioria na Câmara Distrital, como veio a ser desvendado mais tarde.
Todo o caleidoscópio de imagens que humilharam os cidadãos do Distrito Federal ao serem exibidas na TV se esgota com duas ou três ações repressivas: a cassação dos mandatos dos parlamentares envolvidos, o bloqueio e a devolução dos bens subtraídos ao erário. O PDOT, não. Esse projeta para o futuro – porque institucionaliza – um modelo de pilhagem na gestão dos assuntos públicos no DF. Portanto, não há como ignorar ou conciliar com um instrumento de gestão pública que padece de um vício de origem: o suborno. E se aplicará, enquanto estiver em vigência, subordinado a gestão de um bem público aos interesses do capital imobiliário. Qualquer Programa de Governo que se proponha a resgatar credibilidade da gestão pública perante os cidadãos deve se comprometer a pura e simplesmente revogá-lo.
*Hamilton Pereira (Pedro Tierra) é militante do PT e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. Foi secretário de Cultura do Governo do Distrito Federal no período de 1997/1998.