Os avanços e as insuficiências do PNBL
Por Jonas Valente
Por Jonas Valente
O governo publicou no último dia 14 o Decreto 7.175, que institui o Programa Nacional de Banda Larga (PNBL). A meta principal do Programa é assegurar o acesso à Internet em alta velocidade a cerca de 39 milhões de domicílios até 2014. O Decreto traz uma série de avanços importantes. Talvez o mais representativo seja o papel indutor dado ao Estado, especialmente com a retomada da Telebrás como protagonista do setor. Mas peca pela omissão de questões fulcrais para fazer com que esta nova tecnologia sirva de fato à promoção da comunicação como um direito humano para todos os brasileiros e todas as brasileiras.
O PNBL está formatado para ser um conjunto de ações que visa à massificação da banda larga, estabelecendo como meta mais do que triplicar os atuais 11,8 milhões de lares conectados atualmente. O mérito do Programa está em assumir que o mercado é incapaz de assegurar o alcance desta meta. No entanto, tal ampliação, no Programa, não assume o objetivo central que vem norteando as políticas de diversos países: a universalização deste serviço. Sem este horizonte, corre-se o risco de que esta tecnologia torne-se um elemento qualificador da desigualdade existente em nosso país.
Para atingir as metas do PNBL, o governo federal promete atuar para baratear a oferta dde banda larga a partir do fomento ao desenvolvimento de um mercado apoiado em pequenos e médios provedores. O principal instrumento seria o uso da Telebrás como fornecedora de dados no atacado. A empresa negociará a preços mais baixos do que os praticados pelas grandes detentoras de infra-estrutura (em sua maioria, operadoras de telefonia) e exigirá, em troca, que o serviço chegue na casa do cidadão a um preço máximo para uma dada velocidade. A previsão é que o valor fique entre R$ 35 e R$ 25, a depender do nível de isenção de impostos concedido.
Para pessoas que não têm renda suficiente para comprar pacotes nesta faixa de preço, estuda-se uma espécie de “banda larga popular”, que poderia custar entre R$ 15 e R$ 10. No entanto, ela teria velocidade de 512 Kbps e limitações do volume de dados. A redução de custos neste caso seria possibilitada por uma forte redução do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS).
Para dotar a Telebrás de condições para cumprir este novo papel, será criada uma Rede Nacional aproveitando a infra-estrutura de propriedade de empresas públicas, como Petrobrás, Furnas, Eletronorte e Compania Hidrelétrica do São Francisco (Chesf). O uso das fibras da Eletronet, alvo de denúncias de jornalões paulistas, foi abandonado. Segundo o governo, pelo fato do investimento na melhoria desta rede ser equivalente ao de uma nova. A opção foi pela expansão da Rede Nacional, que deve acumular 30 mil Km de fibras óticas e chegar à Brasília e a outras 25 capitais em 2014. Uma extensão feita por linhas de rádio vai possibilitar a cobertura de um raio de 100 Km de cada ponto da rede.
A intenção deste modelo é acabar com o gargalo dos backbones e backhauls (grandes e médios troncos por onde passam os dados) das concessionárias, cujo tráfego é oferecido a preços altíssimos aos pequenos e médios provedores para miná-los na concorrência com os pacotes das próprias operadoras. Por isso, a lógica de fixação de um preço máximo a ser garantido pelos provedores que comprarem dados da Telebrás é bastante positiva. A expansão e a capilaridade da rede também, pois delas dependem parte importante do sucesso do PNBL.
No entanto, um aspecto medular ainda a ser equalizado é a oferta do serviço de internet em alta velocidade diretamente pelo governo federal, ou pelo Poder Público em geral. O Decreto prevê, no Artigo 4º, inciso IV, esta possibilidade “apenas e tão somente em localidades onde inexista oferta adequada” dos serviços. O Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital (CGPID) será o responsável por identificar estas áreas.
Esta formulação é restritiva. A Constituição Federal diz, em seu Artigo 21, que “compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais”. Não há, portanto, por que um Decreto limitar a ação direta do Estado se esta é uma diretriz da nossa Carta Magna.
Apesar da redação limitadora, o conceito de “localidades onde inexista oferta adequada” ainda permite uma abertura para traçar um planejamento com vistas à oferta própria da banda larga pela União. O uso deste expediente deve ser entendido como pilar do Programa, pois não há qualquer perspectiva de que a universalização da banda larga possa ser feita pelo mercado.
Segundo dados do Ministério das Comunicações, compilados no documento “Brasil em Alta Velocidade”(disponível em www.mc.gov.br), há um “gap de acesso” no Brasil (domicílios que estão em condições geográficas ou de renda incapazes de atrair a oferta do serviço) de 55,7% dos lares. Diagnóstico apresentado pelo próprio governo mostra como o custo da banda larga representa 4,5% das despesas de uma família. Desta forma, é improvável que as operadoras comerciais, mesmo com preços subsidiados por isenções ou pela Telebrás, consigam chegar a uma parcela importante da população brasileira.
A tentativa de oferecer o serviço a R$ 10 é importante. Porém, a velocidade escolhida (512 Kbps) e a admissão de limites no volume de dados que podem ser carregados são condicionantes preocupantes. O governo argumenta que tal combinação é a possível, e que ela já seria uma evolução frente ao quadro atual, já que boa parte dos brasileiros possui conexões com velocidade de 256 Kbps. Independente desta constatação, o PNBL deve tratar a banda larga como parte de um direito, devendo o acesso a ela ser garantido de forma isonômica.
Qual seria a saída, já que o mercado não será o vetor de universalização do acesso a este serviço? Discutir uma solução mágica e imediata é temerário. Mas é possível visualizar um caminho mais ambicioso do que o explicitado no Decreto 7.175. A Telebrás deveria capitanear uma infra-estrutura estatal que contaria com o backbone feito a partir de sua Rede Nacional, com backhauls sustentados pelos governos estaduais com o último quilômetro (mecanismos para fazer chegar a banda larga na casa do cidadão) mantidos por esses ou por prefeituras. Ou até mesmo pelo governo federal, quando necessário. Este sistema deveria buscar a oferta gratuita sempre que possível. Quando não fosse viável, disponibilizaria o serviço a um custo muito baixo e a taxas de velocidade a serem ampliadas gradualmente.
Regulação: separação estrutural e regime público
O governo também pretende qualificar a concorrência por meio da aprovação de regras incidentes sobre as grandes operadoras. Entre elas estão a regulamentação do compartilhamento das redes (conhecido também como unbundling) e a definição do modelo de custos do tráfego de dados. O primeiro vai coibir as concessionárias na fixação de preços abusivos para o tráfego de dados que comercializam. Este é um grande obstáculo hoje para os pequenos e médios provedores e mesmo para estados e prefeituras que têm programas de inclusão digital. O segundo compreende o cálculo sobre quanto custa o tráfego de dados por uma dada infra-estrutura. Este mecanismo é condição para que a agência reguladora, Anatel, possa fiscalizar se o preço cobrado é justo ou não. Ambas já deveriam ter sido regulamentadas pela Anatel há anos, mas, por conta da fragilidade e falta de vontade política da Agência, ainda não o foram.
Para garantir os objetivos do PNBL, de aumento da competição e redução dos preços, estas medidas são importantes, mas insuficientes. Uma saída mais efetiva seria a adoção do modelo de separação estrutural entre os detentores da infra-estrutura e os prestadores do serviço. Nele, não poderia haver uma empresa que detivesse a rede e prestasse o serviço. Quem optasse pelo negócio da venda de tráfego no atacado buscaria comercializar para o maior número de operadores. Já quem oferta o serviço teria mais alternativas de fornecedores de dados. Ele já é utilizado no Reino Unido, Itália, Nova Zelândia e Suécia.
Contudo, a implantação de nenhuma destas medidas será efetiva efetividade se o serviço não passar a ser prestado em regime público. Este, segundo a Lei Geral de Telecomunicações (9.472/97), é um enquadramento jurídico que deve ser aplicado àqueles serviços considerados essenciais, “de interesse coletivo, cuja existência, universalização e continuidade a própria União comprometa-se a assegurar” (Art. 64). Tal definição não se adéqua à internet em alta velocidade?
O regime público é condição para que o Estado tenha condições de assegurar obrigações de universalização, qualidade, velocidade e continuidade, bem como o controle das tarifas. Para além da discussão sobre universalização já colocada, faz-se necessário discutir a qualidade, especialmente a velocidade. Segundo dados do governo federal, a internet no Brasil é lenta: 33% das conexões têm somente até 256 kbps e apenas 1% das conexões são superiores a 8Mbps.
Como o modelo preconizado pelo PNBL se apóia fortemente na oferta pelo mercado, atribuir esta responsabilidade aos prestadores privados sem determinar regras efetivas que garantam a boa prestação do serviço pode ser um tiro no pé. É importante lembrar que as operadoras de Telecom são campeãs de reclamações no Procon. Também é bom recordar a pane recente da Telefónica em São Paulo, que deixou a cidade sem telefone e sem Internet por dias.
Gestão da política
A gestão do Programa ficará a cargo do Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital (CGPID). A opção é interessante, dá um caráter interministerial e coloca o núcleo da condução do PNBL dentro da Presidência da República. Junto ao Comitê, o governo anunciou a criação de um Fórum Brasil Digital, com a presença de representantes do poder público, associações representativas das operadoras comerciais do setor e entidades da sociedade civil. A iniciativa é importante.
Preocupa o fato de não haver qualquer menção a ela no Decreto 7.175. O Fóum não pode ser uma instância informal, mas um órgão institucionalizado. Para além disso, é necessário fazer uma reflexão sobre sua composição. A sociedade civil deve ter participação majoritária, já que reúne, de diversas formas, os sujeitos do direito a ser assegurado por meio das ações do PNBL. Uma presença excessiva das operadoras privadas traz o risco de captura do FBD, ao permitir a elas regulem seu próprio negócio.
Para além do acesso
Outra melhoria importante a ser feita no Programa é o equilíbrio entre suas várias dimensões. Corretamente, ele encara o problema do acesso com foco na infra-estrutura para permitir uma oferta mais acessível. Mas a democratização da Internet não se esgota no simples acesso à ela. Diferente de outros meios, a Internet permite uma interação maior. Por isso, tão importante quanto é a política para a produção e circulação de conteúdos que garanta instrumentos à população para poder entrar no mundo digital não apenas como consumidores, mas como sujeitos da Rede Mundial de Computadores.
Esta discussão está prevista dentro de um grupo temático a ser criado no CGPID, sob coordenação dos ministérios da Educação e da Cultura. Este último já vem discutindo uma política de conteúdos digitais. Este tema precisa entrar no debate público, para que não seja tratado como uma segunda etapa do PNBL, mas como um eixo cuja implantação comece já no curto prazo.
Deve fazer parte do esforço do Programa o Marco Civil em elaboração no âmbito do Ministério da Justiça. O processo é rico, pelo seu caráter colaborativo. No site culturadigital.br/marcocivil, o ante-projeto de lei é debatido com qualquer cidadão que participar da comunidade. A dinâmica pode ser um exemplo de procedimentos a ser adotado nas outras discussões do PNBL.
*Jonas Valente, jornalista, membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e pesquisador do Laboratório de Políticas de Comunicação da UnB (Lapcom).