Por Rodrigo Cesar

Uma das frases mais difundidas do Manifesto Comunista é a convocatória final: “Proletários de todos os países, uni-vos!” Há uma outra no parágrafo anterior que obteve menos fama: “Que as classes dominantes tremam à idéia de uma revolução comunista!” A atividade política e teórica que os autores desempenharam, seja individualmente ou na parceria que durou 39 anos, bastou para preocupar seus opositores.

Por Rodrigo Cesar

Uma das frases mais difundidas do Manifesto Comunista é a convocatória final: “Proletários de todos os países, uni-vos!” Há uma outra no parágrafo anterior que obteve menos fama: “Que as classes dominantes tremam à idéia de uma revolução comunista!” A atividade política e teórica que os autores desempenharam, seja individualmente ou na parceria que durou 39 anos, bastou para preocupar seus opositores.

Em discurso diante da sepultura de Marx no cemitério de Highgate, a 17 de março de 1883, Friedrich Engels considerou “totalmente impossível calcular o que o proletariado militante da Europa e da América e a ciência histórica perderam com este homem” que “era, antes de tudo, um revolucionário” e “por isso, era o homem mais odiado e mais caluniado de seu tempo”. A trajetória do pensamento e, sobretudo, da atividade marxista posterior à morte de seus fundadores até os dias atuais tem sido suficiente, por seus erros ou acertos, para intensificar as críticas a ela endereçadas. Seja na esfera da disputa política e ideológica, seja no universo acadêmico, especificamente, mobiliza-se energia significativa em sua denúncia e em sua defesa.

A seguir apresentamos alguns elementos das principais críticas mobilizadas ao marxismo – bem como argumentos para sua contraposição – para, posteriormente, problematizar algumas percepções sobre o marxismo ao longo de sua história e, por fim, situar o Manifesto Comunista na atualidade.

Um dos fatores preponderantes para a originalidade do materialismo histórico dialético é também o alvo de uma das principais críticas que tem sofrido. Por afirmar que é a vida real e prática que determina a consciência do ser (não o inverso) e que é o modo como os seres humanos em sociedade se organizam para garantir sua produção e reprodução material que estabelece as bases de desenvolvimento da história, os fundadores da teoria são acusados daquilo que aqui vamos chamar de determinismo economicista.

Para estes críticos, Marx, Engels e seus partidários cometem o equívoco de desconsiderar, ou pelo menos relegar a uma condição meramente coadjuvante, a consciência dos indivíduos e, por conseguinte, a própria ação de homens e mulheres na história. Reagem à consideração encontrada na crítica da economia política d’O Capital, de que o capitalismo promove a personificação das coisas e a coisificação das pessoas, entendendo-a menos como uma dura ofensiva contra a lógica de alienação dos seres humanos do que um reducionismo determinista regido pela economia, no qual as idéias não tem qualquer influência.

Analisemos melhor a questão. Na obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx afirma que “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas transmitidas pelo passado.” No Manifesto Comunista prevalece a noção de que a luta de classes se desenvolve como uma luta política, na qual se faz necessária a organização e a ação consciente do proletariado e dos comunistas opondo-se à ordem burguesa em ascensão. Coloca-se, assim, tanto o sujeito quanto seu terreno de ação no curso da história. Concretamente, observa-se, que ao invés de elevar a economia a um status soberano, trata-se de estabelecer uma relação dialética entre a ação dos indivíduos e as condições nas quais atuam, sendo necessário submeter a força das idéias e da consciência humana à prova da realidade material e objetiva vivenciada na prática.

Em correspondência escrita nos dias 21 e 22 de setembro de 1890 a Joseph Bloch, Engels reconhece que Marx e ele próprio tem culpa se “os mais jovens insistem, às vezes, mais do que devem, sobre o aspecto econômico”. Porém, prossegue justificando: “Face aos adversários, éramos forçados a sublinhar este princípio primordial que eles negavam e nem sempre dispúnhamos de tempo, de espaço e de oportunidade para dar a importância devida aos demais fatores que intervém no jogo das ações e das reações.” Para ele, “a história faz-se de tal modo que o resultado final decorre sempre dos conflitos que se estabelecem entre muitas vontades individuais, cada uma das quais é o resultado de uma multidão de condições de existência particulares.” Indicando que a produção e a reprodução da vida real é um fator que determina a história apenas “em última instância”, quem modifica este pressuposto “afirmando que o fato econômico é o único fato determinante, converte aquela tese [da concepção materialista da história] numa frase vazia, abstrata e absurda”.

Se por um lado, os argumentos mobilizados concorrem para afastar do materialismo histórico dialético uma atribuição de economicismo vulgar, por outro, permanece de pé outra forte acusação, qual seja, a de desenvolver um raciocínio teleológico, em que a interpretação dos fenômenos é realizada de acordo com uma finalidade estabelecida previamente. No caso do marxismo, trata-se de afirmar que concebe a revolução proletária e a construção de uma sociedade dos produtores livremente associados, sem classes e sem Estado (a sociedade comunista), como inevitável: o destino final da humanidade impresso na lógica da história.

Em carta de Marx a Weydemeyer, datada de 5 de março de 1852, o remetente afirma ser seu mérito inovador não a análise da sociedade a partir das classes ou da luta travada entre si, mas demonstrar “que a luta de classes conduz, necessariamente, à ditadura do proletariado” e que esta “nada mais é que a transição à abolição de todas as classes e a uma sociedade sem classes”. Passagens como estas abrem margem à crítica que considera o marxismo uma doutrina teleológica.

O mesmo poderia ser dito de um trecho exemplar do próprio Manifesto Comunista, onde se lê que justamente por produzir “seus próprios coveiros” o “declínio [da burguesia] e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis”. A condição inevitável da finalidade estabelecida, portanto, não deixaria dúvidas de que a crítica seria pertinente.

Contudo, em direção diferente se orientam outras considerações traçadas pelos mesmos autores na mesma obra (!). Logo depois de apresentarem a tese que se tornou famosa – “A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes” – eles afirmam que esta é “uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito”. Sendo assim, como consideram a luta entre burguesia e proletariado como a expressão do conflito dialético na mais nova fase de desenvolvimento das forças produtivas – no caso, capitalistas e operando sob as mesmas leis de funcionamento das sociedades humanas na história – não descartam a possibilidade das novas classes em luta também serem destruídas (ou destruírem-se). Se essa hipótese se sustenta, a inevitabilidade (e com ela a teleologia) perde sua razão de ser.

Ademais, é preciso considerar que o materialismo histórico dialético nasce e se desenvolve sob o pressuposto exposto nas Teses sobre Feuerbach de que é preciso estar atento à “importância da atividade ’revolucionária’, da atividade ‘prático-crítica’” e de que “Os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes maneiras; do que se trata é de transformá-lo”. É a partir desta premissa que se demonstra, na crítica da economia política d’O Capital, de que o modo de produção capitalista tem contradições e fraturas internas que tornam possível a sua superação. Sobretudo, analisando a sociedade capitalista, assim como outras formações sociais e econômicas anteriores, como sendo marcada pela exploração do homem pelo homem, afirma-se necessário por fim à tal barreira para o pleno desenvolvimento das capacidades humanas, o que aconteceria com a supressão revolucionária daquilo que a originou – a opressão das classes proprietárias sobre as classes despossuídas dos meios de produção necessários para a sua reprodução material. Portanto, é menos uma fatalidade e mais uma possibilidade e uma necessidade o que orienta a ação teórica e prática consciente em direção à sociedade em classes.

Por essas controversas, e principalmente pelas que foram suscitadas, ressignificadas ou potencializadas pelos resultados práticos da ação dos marxistas na história, outra polêmica foi trazida à tona referente ao marxismo. Afinal, estamos falando de um método de análise ou uma doutrina política?

O termo marxismo foi cunhado pelos adversários de Marx e difundido, sobretudo, por ocasião da disputa interna na Associação Internacional dos Trabalhadores – AIT (1864-1875). Trata-se, portanto, de uma terminologia originada pela influência política dos fundadores do materialismo histórico dialético na AIT e, no caso de Engels, na II Internacional Socialista. Influência esta indissociável do método que utilizavam não apenas para analisar a realidade criticamente, mas também para transformá-la através da ação política: a práxis revolucionária.

Hoje, analisar o marxismo apenas a partir do pensamento formulado ou da política conduzida por Marx e Engels seria ignorar sua própria trajetória. Justamente pelo impacto prático do marxismo na vida de milhões de pessoas principalmente durante o século XX marcado por diversas revoluções que reivindicavam as idéias destes pensadores, sua história e evolução, para serem analisadas de modo a abranger toda a sua pluralidade e heterogeneidade, não podem ser escritas tendo como pressuposto uma dualidade entre método de análise e doutrina política. Percorrer este caminho não apenas prejudicaria a interpretação histórica por seccionar a análise do marxismo em campos de conhecimento compartimentados – as questões relativas às idéias políticas, de um lado, e aquelas que dizem respeito aos impactos econômicos e sociais, de outro – como também traria problemas para o estudo das novas formulações e polêmicas pela qual passou.

Como enquadrar o revisionismo de Bernstein e sua polêmica com Rosa Luxemburgo? Como tratar das questões de estratégia e da transição socialista na Rússia de Lênin? De que forma considerar a contribuição de Gramsci à luz do desenvolvimento capitalista e a necessidade de atualizar a estratégia revolucionária nos países ditos ocidentalizados? E a polêmica entre Althusser e Thompson, situa-se apenas no campo teórico, debruçando-se sobre um método de análise, ou possui desdobramentos práticos para a ação prática dos marxistas?

Se, por um lado, a difusão do marxismo no universo acadêmico, ocorrida nas décadas de 1960 e 1970 principalmente, contribuiu para situá-lo entre as teorias dotadas de reconhecimento científico – inclusive por parte daqueles que não compartilham nem de suas teses nem das propostas políticas delas decorrentes –, por outro, contribuiu também para considerá-lo mais efetivo como instrumento teórico de análise e interpretação da realidade do que efetivamente de sua transformação através da ação prática: algo que, já vimos, não condiz com a “práxis [em] que o homem precisa provar a verdade, isto é, a realidade e a força, a terrenalidade do seu pensamento”, pressuposto fundador do materialismo histórico dialético expresso na segunda das Teses sobre Feuerbach.

Atualmente, o marxismo enfrenta o desafio de apresentar respostas a questões nada fáceis de destrinchar. O que foi modificado e o que permanece do capitalismo analisado por Marx, quando nos lançamos na tarefa de analisar o capitalismo contemporâneo em franca crise estrutural? Quais as principais questões que precisam ser retomadas para analisar a formação social brasileira e latino-americana, bem como a forma pela qual o capitalismo aqui se desenvolveu e, consequentemente, o modo pelo qual pode ser superado nestas áreas? O que nos ensinam as experiências de construção do socialismo iniciadas em 1917 – algumas derrotadas e outras ainda em aberto? O que nos reserva o século XXI diante dos projetos políticos em disputa pela hegemonia do mundo em transição?

E o Manifesto Comunista, mais de 160 anos depois de sua redação, continua atual ou tornou-se obsoleto? Marx e Engels, colocando-se diante de questão semelhante por ocasião da reimpressão do texto para a publicação da edição alemã em 1872, tem a clareza de que se trata de um documento datado e imerso no contexto histórico do qual emergiu. Deste modo, os autores assinalam no respectivo prefácio: “Por mais que tenham mudado as condições nos últimos 25 anos, os princípios gerais expressados neste Manifesto conservam, em seu conjunto, toda a sua exatidão. Em algumas partes certos detalhes devem ser melhorados. Segundo o próprio Manifesto, a aplicação prática dos princípios dependerá, em todos os lugares e em todas as épocas, das condições históricas vigentes e por isso não se deve atribuir importância demasiada às medidas revolucionárias propostas no final da seção II. Hoje em dia este trecho seria redigido de maneira diferente em muitos aspectos. Em certos pormenores, levando-se em conta o desenvolvimento colossal da indústria moderna desde1848, os progressos correspondentes da organização da classe operária e a experiência prática adquirida, primeiramente na revolução de fevereiro e, mais ainda, na Comuna de Paris, onde coube ao proletariado, pela primeira vez, a posse do poder político, durante quase dois meses.”

Quanto à atualidade do texto não restam dúvidas, sua vitalidade impressiona.

Mas é preciso alertar: revisitar aquele documento não é mero exercício teórico. Trata-se de buscar no berço das tradições marxistas não as respostas, mas um resgate histórico da luta pelo socialismo em meio à crise revolucionária européia de meados do século XIX. Do mesmo modo que os autores do Manifesto elaboraram uma estratégia adequada àquele período histórico, cabe aos socialistas deste princípio de século XXI debruçar-se sobre o capitalismo contemporâneo e sua crise estrutural em curso, a estrutura de classes que se desenvolveu nas últimas décadas, as experiências adquiridas pelo movimento socialista e as particularidades das realidades brasileira e latino-americana para a elaboração de uma estratégia própria.

No momento em que o capitalismo busca se reorganizar para evitar que sua crise política e econômica tenha desdobramentos revolucionários, façamos também o nosso dever de casa. Assim construiremos nossa própria vitalidade.

*Rodrigo Cesar, estudante de história da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, estagiário do Centro Sérgio Buarque de Holanda/FPA e militante do PT.
 

Sobre o tema, leia também:

Artigos

– Socialismo Real – O fim do que foi princípio, por Frei Betto
revista Teoria & Debate nº 10- abril/maio/junho de 1990

– Socialismo Real – Pela tradição marxista, por João Machado
revista Teoria & Debate nº 10- abril/maio/junho de 1990

– Entrevista com Michael Löwy, autor de O Marxismo na América Latina

– Debate Manifesto Comunista 150 anos, artigos de Tarso Genro, Marco Aurélio Garcia, Carlos Nelson Coutinho, João Machado
Revista  Teoria & Debate nº 36 – outubro/novembro/dezembro de 1997

Livros da Editora Fundação Perseu Abramo

– O Manifesto Comunista: 150 anos depois, de Daniel Aarão Reis Filho (co-edição Contraponto)

– O Marxismo na América Latina: Uma antologia de 1909 aos dias atuais, de Michael Löwy

– Rosa Luxemburg: Os dilemas da ação revolucionária, de Isabel Loureiro (co-edição Editora Unesp)