por Pedro Paranaguá

por Pedro Paranaguá

Diante do descumprimento da decisão do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) por parte dos Estados Unidos da América (EUA) no caso do algodão, este órgão da Organização Mundial do Comércio (OMC) autorizou a aplicação da retaliação cruzada pelo Brasil. Nesse sentido, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) abriu recentemente consulta pública sobre as medidas que o Brasil poderá tomar na área de propriedade intelectual. Esse quadro representa um teste para a OMC, que pode ver sua legitimidade ameaçada caso os EUA ignorem suas regras e incentivos para o cumprimento destas.

A retaliação cruzada pode – e deve – ser feita quando se estabelece que a suspensão de concessões no mesmo setor não será eficaz ou quando for mais prejudicial ao país autorizado a estabelecer tais normas[1]. Se o aumento do imposto de importação de alguns bens oriundos dos EUA for mais desfavorável do que positivo para o Brasil, este país tem o direito de suspender concessões e obrigações no setor de propriedade intelectual, isto é, deixar de pagar por direitos de patentes e direitos autorais.

No caso do algodão, a retaliação cruzada visa a incentivar que os EUA cumpram a decisão da OMC, ou seja, que retirem os subsídios ilícitos a seus produtores de algodão. Tal medida não é permanente: dura apenas enquanto os EUA não obedecerem à OMC[2]. Qual é a lógica desse incentivo? Ora, setores como de entretenimento, biotecnologia, informática e químico-farmacêutico dos EUA logicamente não ficarão satisfeitos com tal medida. Justamente porque tais indústrias possuem tamanho poder econômico e político – e porque dependem de pagamentos provenientes de propriedade intelectual –, pressionarão o governo dos EUA para que este retire os subsídios contrários às regras da OMC. O Brasil está tomando a melhor medida possível, dentro das regras da OMC, para incentivar que os EUA passem a respeitar as regras do comércio mundial.

Se utilizada com inteligência, a retaliação cruzada pode beneficiar: i) os consumidores brasileiros, que pagarão menos ou não precisarão pagar nada para comprar ou utilizar, por exemplo, livros didáticos, softwares ou medicamentos patenteados de empresas estadunidenses; ii) a indústria local, que poderá lançar medicamentos genéricos; iii) o setor privado nacional afetado pelas medidas ilegais dos EUA, que compensará as perdas sofridas; iv) o governo, que fará com que as regras internacionais sejam cumpridas por todos – a principal vantagem do multilateralismo; e v) a comunidade internacional, uma vez que um dos países mais poderosos será obrigado a cumprir as regras que acordou com os demais membros da OMC.

Cabe ressaltar que a ideia de retaliação é estadunidense. De acordo com alguns analistas[3], ao longo dos anos, os EUA utilizaram recorrentemente esse sistema de forma unilateral e contrária às regras da OMC[4]. Agora, o governo e o setor privado dos EUA estão receosos de provar da própria fórmula. Ainda que se sugira que o Brasil não está respeitando os direitos de propriedade intelectual dos EUA[5], é certo que as medidas aplicadas pelo Brasil estão em conformidade às regras da OMC e foram autorizadas por seu sistema de solução de controvérsias.

O funcionamento do sistema da OMC está sob escrutínio. Seu sistema de enforcement parece estar sob xeque-mate. Se países poderosos ignorarem as regras, o sistema multilateral de comércio pode começar a perder legitimidade.

Se um acordo diplomático não for alcançado – e o Brasil seguir adiante com as contramedidas autorizadas –, será interessante observar como o Brasil implementará a retaliação cruzada. Certamente, não será uma tarefa fácil. Por exemplo, produtores locais de medicamentos podem não ser incentivados por um possível licenciamento compulsório: é difícil investir em um produto que poderá ser retirado do mercado em poucos meses. O Brasil terá de ser prudente na escolha de quais direitos de propriedade intelectual devem ser suspensos e como isso será feito.

Independentemente da decisão, em recente discurso no Banco de Exportação e Importação dos EUA, o presidente estadunidense Barack Obama afirmou que seu governo utilizará seu “arsenal completo” para combater “práticas que descaradamente prejudicam” a indústria dos EUA, e isso inclui “fazer valer os tratados [internacionais] existentes”[6]. Nesse caso, a questão que remanescerá é: será que finalmente os EUA respeitarão suas obrigações multilaterais perante a OMC, no setor de algodão?

*Pedro Paranaguá é Mestre (cum laude) em direito da propriedade intelectual pela Universidade de Londres e doutorando na mesma área na Universidade de Duke. É professor da FGV-Rio e consultor.

Notas:

[1] Ver: Abbott, Frederick. Cross-Retaliation in TRIPS: Options for Developing Countries. ICTSD Dispute Settlement and Legal Aspects of International Trade Series, Issue Paper 8, p. 9.

[2] Conforme artigos 22.1 e 22.8 do Entendimento Relativo a Normas e Procedimentos sobre Soluções de Controvérsia (DSU, sigla em inglês).

[3] Ver: Drahos, Peter; Braithwaite, John. Information Feudalism, The New Press, 2002; Sell, Susan. Private Power, Public Law: The Globalization of Intellectual Property Rights, Cambridge, 2003; e Sell, Susan. Power and Ideas: North-South Politics of Intellectual Property and Antitrust, State University NY Press, 1998.

[4] Conforme artigos 3(2) e 3(2)(a) do DSU. Ver: United States — Section 110(5) of US Copyright Act (DS160), painel da OMC ressaltou que as medidas unilaterais tomadas pelos EUA podem não ser compatíveis com o sistema multilateral de solução de conflitos.

[5] Ver: Dantas, Iuri. Brazil Said to Target U.S. Movies in Trade Dispute (Update1), March 09, 2010, BusinessWeek. Disponível em: <http://www.businessweek.com/news/2010-03-09/brazil-said-to-target-u-s-movies-in-trade-dispute-update1-.html>.

[6] Ver: The White House, Office of the Press Secretary, Remarks by the President at the Export-Import Bank’s Annual Conference, 11 mar. 2010. Disponível em: <http://www.whitehouse.gov/the-press-office/remarks-president-export-import-banks-annual-conference>.

Fonte: ICTSD (Via WeBlog – A2K)