Por Roberto Saturnino Braga

Acho que já escrevi sobre Cuba nestes Correios mas tenho que voltar ao tema, tal a insistência com que ele é tratado na mídia. A insistência, aliás, é o próprio testemunho da sua importância: um dos menores países do mundo, com uma história de séculos de submissão, que há 50 anos, sacudiu esta sujeição, realizando uma revolução socialista em desafio aberto à sua soberana de então, a maior potência militar e capitalista do mundo em todos os tempos, a poucos quilômetros de distância de sua costa; um país tão pequeno que entretanto tem resistido a incontáveis tentativas de destruição por parte dessa gigantesca potência, que lhe impõe um cerco econômico rigoroso, que submete a população da ilha a dificílimas condições de pobreza, que financia e instiga a todo  momento movimentos dissidentes internos, que irradia de Miami, permanentemente, há décadas, programas de desmoralização da revolução, que chegou até a patrocinar uma invasão armada que foi repelida. Assim é que este pequeno país, e sua revolução, que resistem há 50 anos a toda essa colossal carga de oposição, devem ter algo mais a mostrar ao mundo e à história além de uma ditadura repressora das liberdades.

Não é fácil, para mim, um socialista definitivo, que não dispensa a democracia, um discípulo de João Mangabeira, falar sobre Cuba. Não tanto por bater de frente com a mídia arrasadora, o que já é quase um hábito, mas por ter de enfrentar contradições comigo mesmo, decorrentes da exigência da democracia
pluripartidária e do respeito aos direitos humanos que, no fim das contas, é o que mais conta no desenvolvimento da Humanidade. Todavia (sic), todavia não posso deixar de ter, e de demonstrar publicamente, como já fiz em discursos no Senado, minha simpatia pela revolução cubana. A simpatia vem do fato de Cuba, mesmo submetida a duríssimas condições econômicas, ter realizado avanços notáveis, bem maiores do que a maioria dos países mais ricos do que ela, avanços realmente notáveis na efetivação dos direitos humanos de segunda geração, isto é, aqueles direitos de cunho social, nas áreas de educação, cultura, saúde, moradia, segurança pública, emprego e condições de trabalho, equidade econômico-social em geral. E também de ter sustentado tão duramente uma soberania de decisões no mais alto grau. São conquistas muito relevantes para serem deixadas de lado, desconsideradas pelo fato de não se observarem lá os direitos civis, que realmente são essenciais. Não é desculpa, de maneira alguma, não é desculpa para a inexistência de democracia, mas também não é algo que se possa desconsiderar.

A desculpa deles para a ditadura é outra: é a permanente incitação à derrubada da revolução, é a permanente ameaça destruidora e sabotadora do regime movida pelo grande capital. Não convence mas não deixa de ser uma explicação que tem certas analogias com a de outros países, democratas, campeões dos direitos humanos, que, em nome da segurança interna ameaçada, mantêm presos políticos em quantidades muito maiores e abrem institucionalmente,  embora excepcionalmente, oportunidades à prática de tortura e maus tratos, prática que, até agora, não foi apontada no caso de Cuba. Refiro-me, por  exemplo, a Israel e aos Estados Unidos, sempre poupados pela mídia que ataca Cuba. Isso para não falar da China, hoje tão respeitada pela mídia capitalista.
Acho que a Revolução Cubana perdeu o seu ponto de oportunidade para a inflexão democrática há mais de uma década, quando havia uma promissora renovação de lideranças e despontavam alguns possíveis e talentosos sucessores, capazes de realizar a tarefa. Passado este ponto, apagadas essas luzes renovadoras, e ofuscado naturalmente o brilho vital do líder maior, a gerontocracia entronizada, repetindo o fenômeno soviético, parece muito pouco competente para recriação institucional em direção à democracia.

Lamento muito, profundamente, aguardando o desfecho que dificilmente será auspicioso para os velhos socialistas. E compreendo e aprovo os gestos de amizade feitos pelo nosso Governo e de outros países do Continente, em respeito ao princípio de autodeterminação das nações, em atenção à solidariedade latinoamericana, e em consonância com o sentimento de equidade e justiça social que Cuba soube realmente valorizar.

Nosso Presidente não foi feliz na última visita, pela coincidência com a morte de um preso político em greve de fome, que ele, como visitante, tinha de  lamentar tão-somente, respeitando a regra da soberania nacional, mas podia ter evitado declarações mal colocadas de comparação entre presos políticos e bandidos comuns. A mídia, obviamente, deitou e rolou, política é assim mesmo, e, como já disse aqui, a verdadeira oposição no Brasil de hoje está na mídia, não nos partidos políticos.

Mas o fato é que Cuba merece um estudo histórico de caso, minucioso e isento, tanto quanto possível; o que vai exigir, provavelmente, um tempo de mais algumas décadas, capaz de arrefecer os sentimentos radicalizados, contrários e favoráveis, que inevitavelmente ainda inspira no presente. Fidel e Che Guevara
serão heróis cultuados e apupados por muito tempo.

Mas como e por quê o regime sobrevive? Caráter e patriotismo da população, que se submete a todos os sacrifícios para evitar a retomada por parte daqueles que há tanto tempo agridem e apertam o cerco, e que, antes, faziam da ilha uma colônia de férias e um prostíbulo de luxo? Possivelmente. Mas é um caso que
merece estudo. Porque, de qualquer forma, é espantoso.

Roberto Saturnino Braga, ex-senador (PT-RJ), presidente do Instituto Solidariedade Brasil (ISB) e membro do Conselho Curador da FPA

Artigo publicado no Boletim Correio Saturnino 105.