por Bia Barbosa*

por Bia Barbosa*

Sereno, mas extremamente agradecido pelas declarações de apoio recebidas nas últimas semanas, o ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vannuchi, participou nesta quarta-feira (27) de uma das atividades do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. O tema do debate era trabalho escravo, mas foi inevitável para Vannuchi falar dos duros ataques recebidos – da imprensa e de setores conservadores da sociedade brasileira – ao Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), publicado em decreto presidencial no início do ano.

O foco inicial da artilharia midiática, caracterizada pelo ministro como um pequeno linchamento público, foi a criação da Comissão da Verdade, para jogar luz às violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura. Daí em diante, diversos pontos do PNDH-3 passaram a ser criticados, incluindo ataques à proposta da responsabilização dos meios de comunicação que violam direitos humanos e aos defensores do direito à terra.

Apesar de tudo, a posição do ministro não é de revanchismo. Em entrevista à imprensa, ele falou de firmeza, serenidade e humildade para os próximos passos de implementação do Programa. “Em direitos humanos, o instrumento é o diálogo, é a explicação paciente, persistente. Outro mundo só é possível na paz e na convivência, e isso só virá se o diálogo for feito, com cada um sendo respeitado. Isso nos foi negado; fui lembrado como terrorista. Mas seria péssimo reagir a isso com ressentimento e mágoa”, afirmou.

Ao mesmo tempo, defendendo a convivência democrática, não deixou de criticar o atrelamento dos meios de comunicação com setores conservadores no Brasil. “A democracia tem lugar para todos os segmentos, e é bom que, desta vez, eles tenham utilizado o instrumento da imprensa para esta ofensiva, porque em outros tempos eles usaram dispositivos muito menos democráticos do que este”, disse. “No entanto, há tempos não lia uma confissão tão grande de alguém defendendo a volta do DOI-CODI”, afirmou, numa referência ao artigo sobre o PNDH publicado pelo jurista Ives Gandra Martins na Folha de S.Paulo, em que ele utiliza uma metáfora do crítico literário Agripino Grieco recomendando que se queime livros de má qualidade e, caso sejam republicados, que se queime o próprio autor.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista dada por Paulo Vannuchi à imprensa durante a décima edição do Fórum Social Mundial.

Pergunta: Ministro, o senhor disse que estão tentando reconstruir o DOI-CODI.

Paulo Vannuchi: Usei essa expressão porque num artigo, quando se levanta a idéia de que se o autor insistir em algo ele deve ser queimado… O autor, neste caso, é a democracia brasileira. É um processo de encontros regionais, de 14 mil pessoas que foram a Brasília e fizeram uma Conferência Nacional, e de quase um ano de negociações para se chegar ao PNDH. Há uma reflexão ao ler um jurista escrever isso, “queime-se o autor”. Em 21 anos de reconstrução democrática, ainda há pensamos que ecoam a idéia de que, na diferença, o outro deve ser queimado. Está errado. É preciso conviver. O FSM é uma grande demonstração disso, com pluralidade, divergência. A democracia é o regime que consagra a legitimidade do dissenso, de interesses diferentes, opiniões diferentes, pluralidade. Vamos trocar a eliminação de um pelo outro pelo diálogo, pela troca de idéias, e sempre que possível elaborar um ponto de vista de composição, numa síntese superior.

Foi o que aconteceu com a retirada da expressão “analisar os delitos da repressão política” do artigo sobre a Comissão da Verdade?

Isso foi um recuo. E o recuo acontece diariamente na política, nas relações pessoais. Sempre se recua para se chegar a pontos de vista eqüidistantes de composição, procurando o consenso. Então, se naquele momento havia uma diferença e o presidente Lula tinha se comprometido com uma demanda do Ministro Jobim e não me comunicou – e ao não me comunicar perdeu o prazo da revisão – era preciso corrigir no momento da redação do decreto. E isso foi feito. Agora o importante é o debate no grupo de trabalho, finalmente constituído nesta terça (26).

O senhor se sente derrotado neste processo?

Não me sinto derrotado pelo Ministro Jobim. Nessas discussões não se coloca quem ganhou ou quem perdeu. O importante é o que o Brasil ganhou. A composição do grupo de trabalho é muito boa, é de acordo entre as diferentes áreas, não havia divergências em relação a isso, construímos isso os dois ministros com outras pessoas. E é a composição das pessoas que foram envolvidas. A indicação do Paulo Sergio Pinheiro, meu antecessor no cargo do governo Fernando Henrique, reafirma a pauta dos direitos humanos como pauta do Estado. Não é uma discussão de governos e tem que ser suprapartidária. É uma composição muito rica, a quem eu refuto um trabalho muito importante.

O senhor disse que o Major Curió entregou tudo à Justiça por medo de se auto-incriminar. Isso não pode acontecer com a comissão da verdade?

A Comissão da Verdade não utiliza a palavra punição por entender que, no constitucionalismo brasileiro, punição cabe ao Poder Judiciário. O que se fala é em relatório final e anual, encaminhado aos organismos competentes. Entre eles, a Constituição estabelece o Ministério Público, com a missão de analisar se houve delito ou não. Há uma polêmica não solucionada no Brasil, de interpretações distintas, sobre se a Lei de Anistia de 1979, respeitada no texto do Programa, anistiava quem torturou, quem ocultou cadáveres. E neste momento o Supremo Tribunal Federal já examina uma argüição da OAB sobre o tema. O ministro Eros Grau prometeu seu voto para agosto e neste momento se aguarda um posicionamento do Ministério Público Federal. Certamente isso não passará de 2010. Se o Supremo decidir que não há condição jurídica de qualquer punição, a Comissão da Verdade continua revestida de enorme validade, porque trabalhará o conhecimento do que aconteceu, os locais de tortura, as possíveis localizações de restos mortais – são 140 famílias que não tiveram esse direito de enterrar seus mortos. Então a Comissão da Verdade não está voltada para a punição.

E o senhor é favorável à punição?

Estou entre os que consideram que, em direitos humanos, é fundamental prevenir e educar para não haver a violação. Mas ocorrendo a violação, a impunidade deseduca. A punição, no entanto, não precisa ser prisão. Acaba de acontecer uma a um comandante do DOI-CODI de SP, numa decisão de primeira instância, em que ele foi declarado torturador. Então o importante é o Brasil ter uma unidade em torno disso. Se o Brasil tiver um sentimento de que passou muito tempo e não se mexe mais nisso, que seja este o caminho que os parlamentares apontarão para a lei que será aprovada – se é que ela será.

Qual a relação que o senhor faz entre as críticas que foram feitas ao Programa e o ano eleitoral em que estamos?

Eu trabalhei desde 18 de dezembro de 2008, quando acabou a 11ª Conferência de Direitos Humanos, para que o Programa ficasse pronto. Disse, em meu discurso à época ao Presidente Lula, que os participantes esperavam que as resoluções aprovadas fossem ao máximo possível incorporadas ao decreto presidencial. E que nos primeiros dias de janeiro de 2009 já seria necessário trabalhar numa minuta de decreto, que não deveria ultrapassar julho. Porque sendo véspera de um ano eleitoral, a tendência da democracia era o ambiente eleitoral se fechar para a idéia de dialogar e de compor com forças opostas. Neste sentido, o processo foi cuidadoso e democrático, até moroso na sociedade civil, que queria que o decreto tivesse conceitos e termos que, do ponto de vista do governo, não eram os mais adequados. Então depois, num governo de coalisão, com ministros de idéias muito diferentes, esse processo requereu uma engenharia de meses. Mas o diálogo com o Ministro Jobim não foi uma luta de boxe, como transparece. Houve uma composição em grande parte do processo, mas no final permaneceram as diferenças que vocês conhecem. Então o processo do grupo de trabalho será também difícil. A meta é ter o projeto para encaminhar ao Congresso até o final de abril.

O senhor chegou a declarar que abriria mão do cargo. Até que ponto ficaria?

A nossa atitude neste momento tem que se apoiar em alguns sentimentos, e eu vou listar três. O primeiro é a firmeza, porque as pessoas têm suas convicções profundas, não defendem pontos de vista sem pensar e isso foi resultado de um processo democrático, do qual participaram milhares de movimentos. Em segundo lugar, serenidade, porque elevação de temperatura, xingamentos, não ajuda. Então é ter simplicidade de ouvir, mesmo essas coisas de “queime o autor”. E humildade também. Temos que ter abertura para erros. Há um tema que já tenho convicção para corrigir: a maneira como a questão do aborto foi colocada corresponde a um ponto de vista aprovado na Conferência das Mulheres. A bandeira da autonomia das mulheres decidirem sobre seu próprio corpo é uma bandeira do movimento feminista. Mas o próprio Presidente da República não tem esta visão. Então isso tem que ser concertado. Então eu, com humildade, vou reconhecer que faltou a mim corrigir essa falha. Se o debate sobre a questão do aborto do ponto de vista da saúde pública contemplar, então podemos promover um ajuste. É um recuo? Sim. Mas um recuo saudável.

*Colaborou Daniel Hammes.