Lei de Anistia: torturador e vítima são sujeitos distintos
Em 1979, em resposta a uma das maiores mobilizações da oposição desde as passeatas de 1968, é aprovada no Congresso a Lei de Anistia enviada pelo Presidente João Batista Figueiredo. A campanha pela Anistia visava a libertação dos presos políticos e a volta dos exilados, mas também a apuração dos crimes da repressão política e a localização dos desaparecidos. Já o governo militar e seus representantes defendiam uma lei de esquecimento total e de “reconciliação da família brasileira”.
As emendas da oposição foram derrotadas no Congresso controlado pelo governo e uma anistia sem nomes e sem apuração dos crimes foi aprovada. Boa parte dos presos políticos, os envolvidos com a luta armada, não foram anistiados e seriam soltos somente no início da década de 1980, com a revisão das penas sob as mudanças na Lei de Segurança Nacional (LSN). A interpretação das forças políticas envolvidas nas negociações da transição para a democracia foi a de que os torturadores teriam sido anistiados, apesar de não constar do texto da Lei.
Houve um simbolismo de anistia recíproca, como se houvesse dois lados em guerra e, devido às próprias condições do conflito, excessos teriam sido cometidos por ambas as partes. No entanto, boa parcela dos mortos e desaparecidos políticos não esteve envolvida com a luta armada pelo fim da ditadura. Entre as mais de 25 mil pessoas já indenizadas pelo Estado brasileiro pelo sofrido diante da repressão política, apenas uma ínfima parte pegou em armas. A grande maioria foi vítima de torturas e perseguições pelo crime de posicionamento político contra o regime militar.
E tem mais: os poucos que aderiram à luta armada, e não foram assassinados ou sofreram o desaparecimento forçado, foram condenados e presos pelos tribunais e leis de exceção da ditadura; tiveram seus bens pessoais saqueados pelos policiais; parte das mulheres presas sofreu violência sexual; seus filhos foram afastados da família e/ou testemunharam a violência sofrida pelos pais.
Diante deste quadro, como é possível mantermos hoje, momento em que a democracia começa a tomar corpo, a interpretação de que a Lei de Anistia favoreceu dois lados em conflito? Não é verdade!
Houve em nosso país uma grande ditadura, milhares de pessoas foram atingidas, o Estado e a sociedade civil sofreram danos que levaremos anos ou décadas para reparar, se é que conseguiremos ou teremos disposição política para tal. Os arquivos das Forças Armadas não foram abertos e, diferente dos países vizinhos da América Latina, nenhum agente da repressão política foi processado.
Enquanto os torturadores do passado não forem julgados e punidos, não teremos êxito nas políticas de diminuição da violência em democracia. É preciso que o país crie uma Comissão da Verdade, apure as circunstâncias dos crimes, abra os arquivos da ditadura e puna os responsáveis. Somente assim teremos como elaborar o passado e construir uma democracia respeitosa aos direitos do cidadão, rompendo com uma inaceitável cultura da impunidade.
Edson Teles é Doutor em Filosofia Política (USP), professor de Ética e Direitos Humanos na Universidade Bandeirante de São Paulo e membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos entre 1964-1985. Co-organizador dos livros “Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil” (Hucitec, 2009) e “O que resta da ditadura: a exceção brasileira” (Boitempo, 2010).