Deus! Ó Deus! Onde estás que não respondes!

Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes

Embuçado nos céus?

Há dois mil anos te mandei meu grito,

Que embalde, desde então, corre o infinito…

Onde estás, Senhor Deus?

Desculpem-me os religiosos mais profundos, verdadeiramente professos. Desculpem-me a blasfêmia dos versos de Castro Alves, nosso poeta de clave maior, gênio da raça inconformado com a injustiça brutal da escravização dos africanos. Versos, aliás, que também se podem dizer em relação à sua própria morte, tão injusta, em pleno viço da juventude e da criatividade. Desculpem-me, mas seu poema famoso me acudiu imediatamente ao ler a notícia do terremoto no Haiti e gritar para dentro de mim: injustiça dos céus!

Eu conheci o Haiti; fui lá em 2006, em missão do Senado, conhecer a ajuda do Brasil pelas suas Forças Armadas, e assistir às eleições gerais que levaram ao poder o atual Presidente Préval. Vi a pobreza inimaginável; senti o reconhecimento do povo aos brasileiros, que asfaltavam ruas e furavam poços artesianos. Porto Príncipe não tinha água encanada, e a Embaixada, situada no bairro alto, o das melhores casas da cidade, era abastecida por uma pipa diariamente. A eletricidade era precária, insuficiente para
instalar um chuveiro elétrico, e, como não havia serviço de gás, o banho tinha de ser frio. O que acabava sendo agradável, por causa do calor. Lembro-me de que escrevi uma crônica sobre o amor dos haitianos pelos galos, e sobre a beleza de que desfrutei, de manhã bem cedo, ao acordar e abrir a janela do meu quarto, ver a cidade lá em baixo, o mar ao longe, o sol nascendo e os galos cantando, uma verdadeira sinfonia de galos, uns dez mil galos, uma sonoridade indescritível, como não pode haver em outra parte do mundo.

Bem, por quê essa tragédia tão horrenda, a maior de toda a história da ONU, vai atingir justamente este país mais pobrezinho e sofredor de todos, onde vi favelas muitas vezes maiores e mais pobres do que as nossas? Por quê? A primeira colônia das Américas a conseguir sua independência depois dos Estados Unidos; o primeiro ponto do Novo Mundo tocado por Colombo. Por quê aí? Claro que a ciência explica, hoje, o movimento das placas tectônicas e as quantidades devastadoras de energia que produzem nos seus encontros e atritos. A ciência explica. Mas o sentimento de injustiça da natureza nos brutaliza. Por quê mais de cem mil mortos, inocentes, assim de uma hora para outra?

No século XVIII, o século das luzes, quando a ciência afrontou desabridamente a religião, com os conhecimentos que Copérnico, Kepler, Galileu, Leibniz, Descartes e Newton haviam consolidado no século anterior, ocorreu, na metade dos mil e setecentos, o grande e pavoroso terremoto de Lisboa, que arrasou completamente a capital de um dos países mais católicos do mundo. E os religiosos, aturdidos, se perguntaram: por quê? O que teriam feito os portugueses para tão avassalador castigo? Claro que não havia resposta. E provavelmente, maior que o número de mortos (dezenas e dezenas de milhares), tenha sido o número de fieis que passaram a duvidar de Deus, e da sua Justiça, naquele ano de 1755.

Estamos no século XXI, a crença religiosa ainda existe mas evoluiu para termos muito diferentes daqueles dos mil e setecentos. Entretanto, o choque de uma tragédia da grandeza desta do Haiti, o sentimento de revolta ante a gritante injustiça da natureza, leva, inconscientemente, a cada um de nós, criados sob o pálio do amor cristão, a perguntar, de repente: Deus, ó Deus, onde estás que não respondes? Por quê os haitianos, coitados, Senhor Deus dos desgraçados?

Ainda por cima, como se não bastasse a hecatombe, vem à luz o Cônsul em São Paulo, com sua estupidez tectônica, a dizer que os haitianos são muito macumbeiros. Ora… Onde estás, Senhor Deus? Desculpem, mais uma vez, os professos da crença; perdoem o pecado da blasfêmia. O choque de tudo isso, das cenas de horror, é arrasador. Estou verdadeiramente sentido. Desculpem.

Roberto Saturnino Braga, ex-senador, presidente do Instituto Solidariedade Brasil (ISB) e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo