"A questão do aborto recai como um problema sobre as mulheres pobres. (Descriminalizá-lo) é uma questão de respeito humano. (…) O que pesa para ele (presidente Lula) é o fato de não poder, independentemente de ser ano eleitoral ou não, comprar uma briga com uma instituição tão forte como a Igreja Católica".

Maria Victoria Benevides é uma defensora histórica dos direitos humanos no Brasil. Enquanto se falava em abertura política, ela escrevia sobre a Violência, povo e política, equação que, segundo ela, se mantém insolúvel na sociedade brasileira. Mas, uma das mais respeitadas cientistas políticas do país, ela acredita na luta constante pelos direitos humanos.

Professora da Universidade de São Paulo, Maria Victoria esteve no lançamento do 3º Programa, em 21 de dezembro do ano passado. A Terra Magazine, ela comenta as diferenças entre proposta atual e as duas anteriores e diz comemorar "a coragem do ministro Paulo Vannuchi (Secretaria Especial de Direitos Humanos)".

– Acho que nenhum outro grupo político teria coragem de fazer isso às vésperas do ano eleitoral. E não me surpreende essa oposição toda ao programa, justamente por ter mexido com proprietários dos meios de comunicação, com o agronegócio, militares e Igreja Católica.

O novo documento propõe a criação de uma Comissão Nacional da Verdade, para apurar os crimes cometidos durante o regime militar brasileiro (1964-1985). A comissão causou mal-estar entre os militares, temerosos de uma revogação da Lei de Anistia – que eximiu de punição os torturadores do governo militar.

Outra questão que causou mal-estar, desta vez à Igreja Católica, foi a descriminalização do aborto, segundo o documento, levando em conta a autonomia da mulher sobre o próprio corpo. O setor agropecuário, por sua vez, se manifestou contrário ao que, pela nova redação, prevê a criação de uma espécie de câmara de conciliação para conflitos agrários, antes que sejam conseguidas na Justiça liminares de reintegração de posse.

O presidente Lula pretende rever os trechos do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos que defendem o direito ao aborto e a criação da Comissão da Verdade, origem principal das faspas trocadas entre os ministros Paulo Vannuchi e Nelson Jobim (Defesa).

Confira abaixo a íntegra da entrevista:

Com que olhos a senhora avalia o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos? As diferenças em relação ao anterior são pequenas, mas existem. Sobre elas, o que a senhora tem a dizer?
Esse terceiro programa é uma continuidade natural e coerente com o que vem sendo feito desde antes do primeiro programa em 1996. Antes disto, já havia uma discussão ampla, aquele plano não surgiu do nada. Os participantes dessas discussões eram pessoas que, desde a época da ditadura, se notabilizaram por defender os Direitos Humanos. A luta veio caminhando e o ponto mais importante disto é o fato de que Direitos Humanos passou a ser entendido no seu sentido verdadeiro.

Como assim?
Direitos humanos são universais e indivisíveis por abarcarem direitos individuais, as chamadas liberdades civis, direitos políticos, sócio-econômicos, culturais e ambientais. Na minha avaliação, isso foi o mais importante. Nós, defensores dos direitos humanos, tínhamos muita dificuldade de manter esta luta, porque, durante muito tempo, a expressão "direitos humanos" era identificada como direito de bandido, sejam eles políticos ou da criminalidade comum. Esses programas começaram a romper com essa visão preconceituosa, que sempre foi muito manipulada com ignorância e má fé, no sentido de mostrar que são direitos dos vulneráveis. Ou seja, direitos dos deficientes, idosos, desempregados, excluídos em geral. Isso, para mim, foi o maior ganho: Esses direitos que passaram a fazer parte da agenda do Estado.

A criação da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) foi um marco nesse sentido?
Sim, claro. Ao ser criada (a SEDH), a questão foi levada para os governos. Com isto, a ênfase dada ao tema, os recursos e o comprometimento vêm aumentado com esse marco importante do governo Fernando Henrique em 1996. Inclusive, vale lembrar, que foi uma ascensão coerente e constante à adesão e homologação anterior de convenções, tratados e conferências internacionais de direitos humanos.

A Comissão Nacional da Verdade foi tema de debate entre os ministros Paulo Vannuchi (SEDH) e Nelson Jobim (Defesa). Essa é uma discussão histórica no Brasil: Arquivos da ditadura, responsabilização dos devidos culpados, o que uns defendem e outros acusam de revanchismo.
É impossível falar em construção de uma Nação em cima de sigilo sobre fatos importantíssimos de nossa história. Acusar de revanchismo é um insulto à lógica e à nossa inteligência. Não existe, absolutamente, revanchismo nessa posição. Seria revanchismo se disséssemos: Torturou? Será torturado. Matou? Tem que morrer. Roubou? Será roubado. Estuprou? Será estuprado. Então, não é revanchismo. Isto é verdade, reconhecimento das responsabilidades. Eu vou além…

Por favor…
Algo que não aparece no plano, mas na pré-história dele. Esta comissão se chamaria, na verdade, Comissão Nacional da Verdade e Justiça. A palavra justiça foi retirada para esfriar os ânimos, pois ela incitava um julgamento dos responsáveis por violências inenarráveis contra a integridade física e psíquica dos privados de liberdade e sob responsabilidade do Estado. Mas, além de se conhecer a verdade, os responsáveis devem ser identificados. Não precisam sofrer mais nada, até porque ser confrontado com a desonra profunda de ser identificado como um torturador já é punição suficiente.

Por qual razão essa Comissão da Verdade incomoda tanto?

Porque mexe com a história recente e os responsáveis ainda estão por aí. Mas é preciso deixar claro que, quando se denuncia torturas daquela época, se denuncia também a tortura cotidiana, que é tradição desde sempre contra os apenados, os presos em delegacias, negros, pobres…

A Lei da Anistia engloba essa responsabilização?
Olha, na realidade, o que se quer é colocar a Lei de Anistia no seu trilho original. A interpretação dela prevaleceu favorecendo os torturadores. Isto é um desvio terrível em relação à Lei. Falar em revisá-la dá a entender que será feita alguma modificação. Isto não irá acontecer e mais: Ela não será anulada! Queremos apenas que ela seja respeitada. Em hipótese alguma ela engloba os crimes de tortura e violações de direitos humanos. Portanto, isto não é, e nem nunca foi, entendido como crime político.

Fala-se na responsabilização dos dois lados, militares e guerrilhas armadas…
Falar em dois lados é um absurdo! Incorporar torturados e torturadores? Isto é um absurdo! Se é para falar em dois lados, os guerrilheiros, a esquerda armada e os combatentes pagaram um preço altíssimo por suas lutas: foram torturas, banimentos, exílios, estupros, desaparecimentos forçados, assassinatos, violências de todo tipo. Além, é claro, dos problemas psiquiátricos que herdam destas violências as quais foram submetidos. Então, não dá para falar em dois lados e que ambos devem ser investigados. Isto é algo diabólico. Essa Comissão da Verdade é tomada como uma verdadeira revolução, mas basta olhar nossos hermanos do Cone Sul, A Argentina e o Uruguai, que também está entrando nessa fase importante.

Duas coisas chamam atenção nas ressalvas do presidente Lula em relação ao 3º Programa. A primeira é em relação ao aborto. Este é um tema bastante delicado por conta das instituições envolvidas nessa discussão: Estado, Igreja e Família.
O Programa de 2002, ainda no governo FHC, já tratava o aborto como uma questão de saúde pública em casos previstos por lei. Concordo inteiramente com o que está no terceiro plano, tanto no tocante à saúde pública, por que é evidente que isto recai como um problema sobre as mulheres pobres, quanto em relação à autonomia da mulher. Isto é uma questão de respeito humano. Em termos políticos, eu posso entender o recuo do presidente.

Como a senhora entendeu esse recuo?
O que pesa para ele é o fato de que ele não pode, independentemente de ser ano eleitoral ou não, comprar uma briga com uma instituição tão forte como a Igreja Católica, que junto às Forças Armadas são as únicas imorredouras, capilares e realmente nacionais, por estarem em todo o território nacional. Elas têm credibilidade histórica. A posição dele é de conciliação política mesmo.

Se fosse necessário escolher, o que é fundamental ser preservado, a Comissão da Verdade ou o trecho que defende o aborto?
Neste momento, a Comissão da Verdade, porque a luta pela descriminalização do aborto pode ser levada independentemente do plano, até por ser uma discussão que precisa ser encaminhada ao Congresso. Mas a comissão necessita de um apoio muito forte do governo.

Outra novidade no 3º PNDH é com relação às reintegrações de posse em caso de ocupações promovidas por movimentos sociais.
A grande questão é que nesta terceira, fala especificamente sobre o agronegócio, que potencialmente viola direitos de pequenos e médios agricultores e populações tradicionais. O que é absolutamente evidente, não precisava ninguém escrever isso no plano. Mas isto está mexendo com uma das áreas de maior poder e interesse no país, o agronegócio. Ao invés de eles ficarem reclamando, deveriam tentar responder às acusações de trabalho escravo nas fazendas.

De maneira geral e para concluirmos a entrevista, estamos em 2010, ano eleitoral, e ainda assim a SEDH apresentou propostas polêmicas em relação ao Programa.
Paulo Vannuchi é extremamente importante e corajoso. Acho extremamente corajoso que o governo tenha bancado isso. Eu estava no dia do lançamento do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos e fiquei impressionada com a quantidade de ministros que prestigiaram o lançamento às vésperas do Natal, em 21 de dezembro. Acho que nenhum outro grupo político teria coragem de fazer isso às vésperas do ano eleitoral. E não me surpreende essa oposição toda ao programa, justamente por ter mexido com proprietários dos meios de comunicação, com o agronegócio, militares e Igreja Católica.

Publicada no Terra Magazine em 12/01/2010