Nunca antes neste país, cerca de 30 mil pessoas discutiram, ao longo de três meses, o tema Comunicações ou Mídia. Nunca antes neste país, cerca de mil pessoas ligadas a movimentos sociais, entidades sindicais e, inclusive, associações empresariais debateram, junto com o governo, políticas públicas para as Comunicações. Tema até hoje restrito aos grupos empresariais interessados, aos profissionais do ramo ou a círculos acadêmicos especializados, os problemas, as grandes questões, os rumos das Comunicações brasileiras começam a ser apropriados, compreendidos e questionados por amplos segmentos da nossa sociedade. Se não houvesse nenhum outro saldo, somente este, a democratização do debate, já traduziria o grande resultado positivo da Iª Conferência Nacional de Comunicação (Iª Confecom), cuja etapa final foi realizada em Brasília entre os dias 14 a 17 de dezembro passado.

Apesar de boicotada pela Rede Globo, à frente da Abert, e pelo cartel dos grandes jornais, nucleados na ANJ, a Iª Confecom foi um sucesso. Enfrentou não poucos problemas ao longo da sua construção, esteve a pique de naufragar em alguns momentos mais acirrados, nas suas Plenárias finais, mas ao cabo resultou numa estrondosa, até emocionante, vitória do governo, das entidades da sociedade e de milhares de pessoas que se empenharam na sua realização. A Confecom foi um sucesso não somente pela mobilização que promoveu, mas também por ter demonstrado a empresários e não-empresários ser possível sustentar posições divergentes sem mútuas agressões e ser possível construir posições convergentes com mútuas concessões. Com certeza, para a Associação Brasileira de Radiodifusão (Abra) e para a Telebrasil, entidades empresariais que não acompanharam o radicalismo da Globo/Abert e da Folha/ANJ, a Confecom resultou num positivo aprendizado democrático.

Ao contrário de tantas outras conferências convocadas e organizadas pelo Governo Lula, esta se caracterizava pela necessidade de se assegurar a presença do empresariado no debate. Para esvaziá-la, a Abert, a ANJ e seus satélites caíram fora. Mas as contradições no campo empresarial falaram mais alto, o governo soube negociar com elas, daí que a Abra e a Telebrasil, depois de obterem salvaguardas que julgavam necessárias, aceitaram seguir participando do processo e, assim, qualificaram-se e se legitimaram para ocupar posições cada vez mais politicamente influentes nos debates que se seguirão.

Essas salvaguardas foram muito criticadas pelas representações e porta-vozes do campo popular, inclusive pelo autor dessas linhas. No entanto, ao contrário do que podiam esperar até quem as acatou temendo que, sem elas, a Confecom não se realizasse, as salvaguardas acabaram ajudando a filtrar as questões realmente relevantes para o debate, e não impediram que centenas de outras propostas fossem aprovadas por consenso ou votação amplamente majoritária, apoiadas inclusive pela representação empresarial.

Das quase 1.400 teses levadas a Brasília, metade delas foi liminarmente rejeitada ainda nos grupos de trabalho. Para tanto, bastava não somarem mais de 30% de votos favoráveis em seus grupos. Parece que o bom senso prevaleceu nos GTs… Aquelas que somassem mais de 80%, iriam direto para o relatório final como “aprovadas por consenso” ou “por mais de 80%”: foram 601, número bastante elevado e politicamente muito significativo. Nas demais, cada um dos dois segmentos da sociedade civil, em cada GT, selecionaria quatro de maior interesse para remeter às Plenárias finais, podendo o governo selecionar duas. Assim, 140 propostas chegaram às Plenárias para serem votadas ou, eventualmente, sujeitarem-se ao mecanismo da “questão sensível” – se algum segmento levantasse “questão sensível”, a proposta somente poderia ser aprovada se somasse 60% mais 1 dos votos e, pelo menos, 1 voto em cada um dos três segmentos. Ainda assim, 71 propostas foram aprovadas. Apenas 13 não lograram aprovação devido ao mecanismo. Outras duas foram rejeitadas por maioria simples e as demais não foram apreciadas por falta de tempo.

Ficou claro que poucas, embora decisivas questões opõem o empresariado ao campo democrático, ou o capital ao trabalho, como se diria em outros tempos… Um ponto de muito polêmica e que ainda deverá ser melhor discutido trata do uso dos recursos do Fust para financiar a universalização da banda larga. O empresariado quer, mas a CUT não quer que esses recursos possam ser devolvidos às operadoras privadas que prestariam o serviço. Para a CUT, essa operadora deveria ser uma revitalizada Telebrás estatal. Outro ponto sobre o qual não foi possível acordo trata da multiplexação dos canais de TV aberta digital. A Abra gostaria de usar essa possibilidade tecnológica para permitir, na prática, que cada emissora ofereça mais três, quatro ou cinco canais de programação em um mesmo canal de concessão. O Coletivo Intervozes orientou o campo democrático-popular a não concordar com isso: para cada concessão, só um canal.

Sem força legal, as resoluções da Confecom poderão e deverão vir a ser transformadas em projetos de lei do Executivo ou do Legislativo, nos próximos anos. Ao contrário da legislação atualmente em vigor, gerada em gabinetes fechados de governos anteriores e aprovada a força de lobbies empresariais e de sabidos (mas nunca investigados) mensalões passados, uma nova legislação que venha a ser respaldada nas resoluções desta primeira e das próximas Confecons, estará politicamente respaldada e legitimada pelo debate aberto e franco envolvendo os diversos e diferentes segmentos da sociedade. Nos termos das resoluções desta primeira Confecom, o Executivo ou o Legislativo já poderiam considerar a possibilidade de debater uma ou mais de uma lei envolvendo os aspectos abaixo relacionados.

Criação do Conselho Nacional de Comunicação Social. Comemorado como uma das principais conquistas das forças populares, trata-se de antigo projeto, proposto inicialmente na Constituinte de 1988, cujas origens remontam ao Conselho Nacional de Comunicações, instituído pelo Código de Comunicações de 1962 e extinto pela ditadura militar. Nas condições políticas atuais, o Conselho seria composto por representantes do governo, do empresariado e da sociedade civil não-empresarial, tendo poderes para formular e implementar políticas de comunicações. Também foram aprovadas propostas prevendo a criação de conselhos estaduais e municipais.

Criação do Conselho Federal de Jornalismo e elaboração de uma nova Lei de Imprensa. Independentemente da obrigatoriedade ou não do diploma específico para exercício da profissão, a atividade em si necessita de regulamentação, seja para assegurar, à sociedade, o livre acesso à informação (o recente boicote, pelo “Jornal Nacional”, à notícia da premiação do presidente Lula como Homem do Ano pelo Le Monde, é um autêntico escândalo!), seja para garantir aos profissionais condições reais para cumprirem, ou serem punidos se não cumprirem, o “código de ética” do jornalismo. Uma das teses aprovadas prevê incluir numa futura lei, a “cláusula de consciência” pela qual o profissional não poderia sofrer intimidações por escrever contra os interesses do seu patrão.

Proibição de publicidade dirigida a menores de 12 anos. Sublinhando, por testemunho do autor destas linhas, que tal resultou de um acordo aceito pela Telebrasil e pela Abra, a Confecom deu importante respaldo à crescente mobilização da sociedade brasileira para proteger a nossa infância e nossa juventude da influência de mensagens publicitárias que visam formá-las como consumidores compulsivos, antes que se formem como cidadãos. Se uma lei nessa direção vier a ser aprovada, pode-se esperar algumas mudanças, para melhor, nas mentalidades de futuras gerações.

Incentivo à produção audiovisual nacional, independente, regional ou comunitária. Foram dezenas as propostas aprovadas, por consenso, a favor de políticas de fomento e incentivo, inclusive com introdução de cotas ou criação de fundos, à produção nacional, ou independente, ou regional, ou comunitária, ou educativa etc. Uma delas diz com todas as letras: “Garantir um mínimo de 50% do mercado nacional de radiodifusão e TV por assinatura para a produção de conteúdo nacional” (GT 4/PL 516). O Congresso Nacional está portanto autorizado a introduzir cota de 50% para produção nacional na programação dos canais estrangeiros em TV por assinatura, no lugar das atuais ridículas 3hs30m semanais, conforme consta em projeto de lei recentemente aprovado na Câmara (PL-29), agora a caminho do Senado.

Universalização da banda larga e da internet. Diversas propostas aprovadas por consenso nos grupos de trabalho, confirmam a importância, mesmo prioridade, que a sociedade brasileira passou a dar a políticas públicas voltadas para a universalização da banda larga e do acesso à internet. No entanto, como operacionalizá-las ainda é motivo de forte dissenso, opondo as operadoras privadas às representações dos trabalhadores e dos movimentos sociais. Sabendo-se que por aqui avançarão as fronteiras capitalistas de acumulação nos próximos anos, entende-se a maior dificuldade, neste ponto, de um acordo.

Obediência à Constituição, em especial aos seus artigos 221 e 222. A Confecom concordou que os meios de comunicação, independentemente das plataformas tecnológicas, devem todos obedecerem aos princípios constitucionais que estabelecem suas finalidades educativas e culturais (cabendo, pois, regulamentá-los), bem como limitam a participação de capital estrangeiro nesses serviços. Uma das propostas aprovadas estabelece que o capital estrangeiro deverá ser reduzido de 30 para 10 por cento. Se depender da Confecom, a própria Constituição deveria ser revista para eliminar a distinção que hoje faz entre radiodifusão e telecomunicações, deixando assim as operadoras de telecomunicações livres para prover conteúdos sem obediência aos princípios que regem apenas (por enquanto) as emissoras de radiodifusão.

Desenvolvimento tecnológico e industrial. Sem muito alarde, foram aprovadas por consenso duas teses, no GT específico, reivindicando políticas de fomento ao desenvolvimento industrial e tecnológico, inclusive aproveitando as novas oportunidades de mercado a serem abertas pela provável expansão da infra-estrutura de banda-larga, nos próximos anos.

Garantia de direitos. Sem maiores polêmicas, foram aprovadas quase todas as teses que reivindicavam respeito aos, ou promoção dos direitos de minorias, mulheres, trabalhadores e cidadãos e cidadãs em geral.

Rádios e TVs comunitárias. Este segmento, nucleado pela Abraço e pela ABCCom, foi um dos que mais se mobilizou pela realização da Confecom. Foi brindado, ao final, com a aprovação de quase todas as suas teses de fomento à radiodifusão comunitária e de condenação à criminalização, em curso inclusive sob o governo Lula, de ativistas do movimento.

A Confecom proporcionou-nos a todos e todas um grande aprendizado de democracia e diálogo. Criou pontes de comunicação entre segmentos que antes mal se cumprimentavam. Identificou atores e lideranças que poderão, a partir de agora, aprendidas de parte a parte as lições, tentar construir um novo, democrático e nacional marco regulatório para as comunicações brasileiras. Por outro lado, não poderemos ignorar, nos encaminhamentos futuros, as posturas atrasadas e atrabiliárias da Globo, da Folha de S. Paulo, Estadão e similares, ainda recusando o diálogo e a negociação, isto é, ainda ignorando as novas configurações democráticas que vai assumindo a sociedade brasileira. Resta esperar que, apesar dos seus indefectíveis editoriais de ocasião, nos seus interiores já se esteja sabendo avaliar o real significado desta e de outras tantas derrotas recentes. Ou ainda apostam que reverterão todo esse processo em outubro próximo?

*Marcos Dantas é professor da Escola de Comunicação da UFRJ, doutor em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ, ex-secretário de Educação a Distância do MEC. Foi delegado do Estado do Rio à Iª Confecom, pela sociedade civil não-empresarial. É filiado ao PT-RJ.