Entrevista – Saturnino Braga: Um pensador político
Carioca nascido na Glória, Roberto Saturnino Braga é um homem público com muitas histórias para contar sobre política brasileira. Foi deputado federal eleito em 1962 pelo PSB e teve sua reeleição cassada em 1966, durante a ditadura militar. Na oposição, elegeu-se senador, em 1974, pelo MDB, no que ele considera a única eleição majoritária do período de exceção. Em 1982, no PDT, reelegeu-se senador na chapa que tinha Brizola governador e Darcy Ribeiro vice. Foi, em 1985, eleito prefeito do Rio de Janeiro na primeira eleição da história da capital fluminense e, nos anos 1990, conquista mais uma vez uma cadeira no senado.
Socialista convicto e com vários livros publicados entre contos e romances que retratam a vida cotidiana carioca, Saturnino Braga escreveu o livro O curso das ideias – história do pensamento político no mundo e no Brasil. Baseado num roteiro feito para um curso de formação política voltados para vereadores e jovens militantes organizado pela Fundação João Mangabeira do PSB no final dos anos 1990, o livro expõe as ideias dos mais importantes pensadores e políticos que influenciaram a vida política na humanidade e no Brasil.
A atual crise atingiu fortemente a ideia de que o neoliberalismo é a saída para o desenvolvimento do mundo. Acabou o pensamento único?
A crise foi verdadeiramente um torpedo que pôs a pique a ideia central do neoliberalismo e do pensamento único do último quarto de século: a de que o Estado deve se ausentar completamente da economia, onde só atrapalha, e deixar o campo inteiramente livre ao mercado, que racionaliza automaticamente as decisões. Este centro do pensamento único realmente extinguiu-se; o Estado voltou a intervir, como necessário à fiscalização do sistema financeiro, à alavancagem das economias em recessão e à redistribuição da renda e da riqueza que o mercado, preocupado com o lucro e o estabelecimento de preços, só faz concentrar. Não é o mercado que equilibra as forças econômicas. Tem que haver a intervenção do Estado. Para isso ele tem que ser profundamente democrático. Então agora estamos numa retomada da pluralidade, da democracia das ideias.
Mas em vários outros períodos da História houve pensamento único no nosso mundo ocidental, com características muito mais abrangentes, como o pensamento religioso na Idade Média, que desvalorizava a vida terrena e durou séculos, e o absolutismo monárquico após o Renascimento, regendo a política, a economia e tudo mais.
Qual a diferença das bandeiras socialistas do século passado e a prática desses governos atuais?
Vejo uma diferença essencial na questão democrática. O socialismo que se implantou na União Soviética, na China e em Cuba conquistou o poder pela luta armada e apelou para a Ditadura de um Partido de vanguarda para se consolidar; e não conseguiu sair da ditadura. Na história, as esquerdas sempre foram muito influenciadas por esse estilo do Partido Comunista que tinha uma mão que não era democrática. Então a esquerda começou a se converter na democracia. As formas de socialismo que estão sendo buscadas na América do Sul, por exemplo, não estão pretendendo abolir a democracia mas realizar as transformações de maneira gradual, sem a força das armas e com amplo apoio popular através do voto. A rejeição à ideia de qualquer ditadura cresceu maciçamente e se tornou um sentimento dominante no fim do século passado.
Qual motivo o levou a escrever O curso das ideias?
Sempre me interessei pelo debate das ideias, da filosofia política, da democracia. Sempre achei imprescindível o conhecimento da evolução dessas idéias ao longo da História. E como político por tantos anos, mais de trinta anos de vida pública, três mandatos apenas no senado, tive certa base de conhecimento. Mas busquei ler os grandes autores, conhecer as principais formulações e fui ouvinte de várias matérias de filosofia na UFRJ. Então no final dos anos 1990, entre 1997 e 1998, quando fui presidente da Fundação João Mangabeira, do PSB, organizei cursos de formação de militantes nos quais eu mesmo dava aulas sobre a evolução das ideias políticas afastado das lides e da rotina pesada da política, resolvi retomar aquele roteiro que utilizava nas minhas aulas e desenvolvê-lo num livro de apresentação, para o público leigo, para o cidadão comum, que deve se interessar pela política, daquele grande curso de formação e evolução das ideias políticas ao longo da História da Humanidade Ocidental.
Em relação ao livro, é possível dizer que há uma evolução do pensamento e da prática política da humanidade?
A ideia-força que preside a descrição apresentada no livro é precisamente a da existência de um processo evolutivo de aperfeiçoamento ético e político da Humanidade, ao longo dos séculos e milênios, que vai eliminando as diversas formas de despotismo, escravização, opressão, absolutismo, ditadura, em favor de modelos de governo fundados no consentimento e na participação do povo, e no respeito aos direitos essenciais do ser humano. Essa evolução, na minha opinião, passa pela consolidação da democracia e de um pensamento socialista, que possibilite a igualdade de oportunidades que o capitalismo não dá.
Quais pensadores ou governantes mais influenciaram a história política? E quais são os pensadores atuais que apontam novo caminho na construção de ideias inovadoras?
Os que eu, pessoalmente, considero principais estão mencionados no livro, juntamente com a essência das suas formulações. Mas é claro que os primeiros formuladores, Platão e Aristóteles, sempre terão um lugar de primazia nessa lista. Os antigos gregos foram os que começaram tudo. Ali, pela primeira vez, o interesse da polis era discutido na praça. Era uma democracia restrita aos cidadãos, homens gregos. Não eram todos, excluíam-se escravos, estrangeiros e mulheres. Mas ali, podia-se defender suas ideias, suas argumentações, arrazoados em assembléias de mais de 10 mil pessoas. Portanto eles deram o início de tudo. Já os romanos não contribuíram com a questão filosófica mas desenvolveram o Direito e a organização do Estado. Depois veio o período religioso que não acrescentou nada. Só depois, com Maquiavel, que retomou as ideias dos gregos. Mas os nobre e reis tinham o poder incontestável e a questão da cidadania e participação popular nas decisões aparece pela primeira vez. Isso por conta das cidades. A cidade torna-se o grande ponto de encontro do cidadão. Começou-se a questionar, discutir os problemas comuns e a burguesia dá o tom para o princípio do liberalismo, organizado com os ingleses, com Locke. Depois, na França a revolução teve o poder da irradiação a ponto dos Estado Unidos cria a primeira república democrática. Mas essa grande esperança da igualdade acabou não se concretizando e surgiu a reclamação socialista, com a força da ideia de Marx que mexeu com o mundo.
Por fim, eu cito os dois pensadores políticos que acho mais importantes nos tempos atuais, que são o americano John Rawls, falecido no final do século passado, e o alemão Jürgen Habermas, ainda atuante.
Quais desses pensadores mais influenciou a realidade política brasileira?
O pensamento político brasileiro foi sempre fortemente influenciado pelas ideias que chegavam dos grandes centros culturais do Ocidente. Teve, entretanto, algumas particularidades dignas de registro especial, como a presença fulgurante do brasileiro José Bonifácio nos primórdios da formação nacional, a influência única no mundo do positivismo de Augusto Comte na formação da nossa República, e o trabalho consistente e específico do desenvolvimentismo brasileiro, feito pelos pensadores do ISEB e do grupo BNDE-CEPAL.
Com que linha de pensamento político se identifica o governo Lula? Apesar de ter uma orientação socialista suas ações na área econômica não são de certa forma a continuidade do governo FHC?
O governo Lula se caracterizou como uma rejeição ao neoliberalismo hegemônico em todo o mundo, que retirava o Estado da vida econômica para dar um lugar de absoluta primazia ao Mercado, e por um compromisso de chamar a classe trabalhadora ao palco das decisões nacionais e de efetivar, junto com ela, políticas sócias de redistribuição de renda. Negociou com o Capital e manteve políticas fiscais e monetárias conservadoras, para evitar a repetição das derrocadas de João Goulart e Salvador Allende, e tratou de cumprir seus compromissos, estancando o processo de privatizações, recolocando o Estado na missão de planejar e executar políticas, revitalizando as empresas estatais, e avançando substancialmente nos programas sociais. Não se pode classificá-lo de socialista ou bolivariano mas de um governo desenvolvimentista e social, diferente do desenvolvimentismo anterior, que era nacionalista mas concentrador de renda.
O senhor teve uma vida política bastante atuante. Inclusive um mandato cassado no período da ditadura.
Não tive meu mandato cassado. Comecei em 1963 pelo PSB. Em 1964 veio o golpe, era líder do meu partido na Câmara e permaneci. Mas em 1966 o SNI vetou minha candidatura para a reeleição. Não foi cassação. Depois, em 1968, isso aconteceu com o AI-5.
Em 1964 os militares contavam com o apoio da classe média, que sustentava o golpe. Foi isso que segurou os militares. Mas a sociedade começou a entender a necessidade de voltar a democracia. Foi quando pude sair candidato novamente em 1974, na eleição para o senado pelo MDB. Foi uma eleição feita naquele regime de abertura gradual e teve até televisão pela primeira vez. Eu entrei nessa e a gente ganhou contra todos os prognósticos. A eleição de senador era a única eleição majoritária. Dos 22 estados, na época, o MDB ganhou em 16. Uma grande bancada. Foi uma manifestação grande da população e pudemos fazer oposição naquela legislatura. Foi um momento rico. O senado era uma caixa de ressonância da opinião pública.
Depois o senhor foi prefeito do Rio.
Primeiro me reelegi senador em 1982. Era uma chapa com Brizola governador, Darcy Ribeiro vice e eu no senado. Em 1985, na retomada das eleições nas capitais brasileiras, eu fui candidato a prefeitura. Era a primeira vez que o Rio de Janeiro, que antes era capital federal, pôde eleger um prefeito. Foi um momento muito especial. A primeira experiência de uma gestão participativa, onde os representantes das associações de moradores, os representantes da comunidade puderam dialogar com o executivo. Mas no final vivemos uma crise financeira forte. Criada pela concentração de verbas no governo federal. Depois a Constituição de 1988 mudou isso, pois os municípios ficavam engessados.
Como o senhor vê a atual crise vivida pelo Senado? Ele cumpre o papel de uma Casa onde se faz os grandes debates nacionais?
É triste; é profundamente deprimente, mas eu creio que servirá para elevar o nível ético e cultural do Senado, e do Congresso como um todo, nos tempos futuros. Essas coisas vergonhosas sempre aconteceram, com maior ou menor gravidade, e eram ignoradas pelo povo. Nossa República está passando por uma fase de aumento das exigências de transparência, o que é muito importante. As novas funções do Ministério Público, dos Tribunais de Contas, e o desenvolvimento da imprensa investigativa, que caracterizam esta fase, romperam muitos véus que encobriam fatos que deviam ser públicos, e o Senado, e o Congresso em geral, foram os mais atingidos. Acho, no fundo, deprimente mas necessário e positivo, e espero que esse mesmo processo abranja outros poderes menos transparentes, como o Judiciário e, quem sabe, a própria mídia, que é o único poder que não sofre nenhuma fiscalização.
Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum Ed. 78.