"A facilidade com que reemerge a economia-cassino expressa a fragilidade presente do interesse mais progressista em nossas sociedades, cuja força depende menos do poder do dinheiro e principalmente da existência de organizações coletivas. É profunda a fragmentação e enfraquecimento político destas organizações, ao mesmo tempo em que parte delas participa de instâncias da economia-cassino através de seus fundos de previdência privada, via presença de representantes em conselhos de administração das grandes empresas".

Nos últimos quase 40 anos, o pensamento conservador conquistou hegemonia política e se moveu recorrentemente contra o gasto público na área social. Políticas visando redução ou contenção dos gastos com os programas sociais foram regra geral adotadas. O resultado observado, tanto nos países desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento, tem sido a deterioração contínua dos serviços públicos, bem como um aumento progressivo da desigualdade social. Tal processo foi reconhecido recentemente tanto pela ONU como pela OCDE.

Argumentos econômicos e sociais foram brandidos pelo pensamento conservador e pelas organizações de interesse do grande capital para justificar o ataque contra a política social. A preferência pelo não trabalho, o desestímulo ao investimento e o desinteresse pela formação profissional apareceram em sua linha de frente. A defesa da prevalência da regulação de natureza privada foi veiculada aos quatro ventos como de grande virtuosidade e contraposta à regulação de natureza pública, acusada de paquidérmica.

A consequência da hegemonia conservadora foi a constituição de uma economia- cassino, assentada em um movimento de deterioração recorrente do emprego e dos salários da grande maioria da população ativa, que permitiu ganhos de renda mais que extravagantes para poucos. Neste processo se desvalorizou a produção e o trabalho manual, sob o argumento que as atividades e ocupações da sociedade da informação emergente caracterizariam o futuro do capitalismo no século XXI. A vida seria guiada pelas efemérides de um mundo intangível, apesar de ficar sem resposta a indagação sobre quem consertaria nossos carros, quem faria a manutenção de nossas casas ou quem repararia a rede elétrica em dia de chuva pesada.

Na segundo semestre de 2008, a economia-cassino se mostrou um verdadeiro castelo de cartas ou um gigante de pés de barro. Sua virtuosidade se transformou da noite para o dia em um desastre sem precedente. Os governos dos países desenvolvidos injetaram dinheiro no setor privado em volumes jamais vistos. Reduziram a taxa de juros reais para o campo negativo. Promoveram aumentos explosivos do déficit e da dívida pública. Fizeram alguma ameaça de controle da economia-cassino, mas foram de uma generosidade incomensurável com sua farra, penalizando pontualmente as empresas e seus dirigentes naquilo que era inevitável. A taxação dos ganhos obtidos na jogatina financeira ou a adoção de medidas para pôr fim à promiscuidade generalizada que caracteriza os conselhos de administração das grandes empresas, que permitiu a elas venderem à sociedade situações inexistentes de rentabilidade, não foram além da esfera do discurso político de dia-a-dia.

Passado um ano, existem sinais razoavelmente claros que o pior da crise passou e que a recuperação econômica, mesmo que lenta e demorada, pode estar a caminho. A injeção de recursos públicos permitiu, de um lado, fazer algum saneamento rápido das empresas e a volta de alguma rentabilidade e, por outro, estimular a demanda e a recuperação do nível de produção. As empresas e, em especial, os grandes bancos já apresentaram algum lucro ou prejuízo reduzido no segundo trimestre de 2009, indicando os resultados positivos da política pública.

É óbvio que a recuperação é bem-vinda, pois ela permite ao menos conter a deterioração dos níveis de produção, emprego e renda. E é lógico que cabe aos governos envidarem esforços em favor da sua continuidade. Contudo, duas questões devem ser olhadas com muita atenção.

A primeira refere-se a muito provável socialização dos custos da farra financeira para toda a população. Uma parte dela já se realizou através da elevação do desemprego e da queda da renda. Entretanto, o processo mais pesado pode estar por vir. O aumento da dívida pública, e de seu custo futuro devido à provável elevação da taxa de juros nos próximos anos, demandará dos Estados um esforço fiscal cavalar. Como a maioria dos países já possui uma carga tributária elevada, haverá a pressão para que tal esforço, mesmo com o aumento da receita propiciado pelo crescimento, se realize através da austeridade do gasto. Portanto, corre-se o risco de uma nova fase de deterioração da política social. Mantido o quadro atual de organização dos interesses e da política econômica, é muito provável que teremos mais do mesmo em termos de regulação da economia.

A outra se refere à ausência de sinais de reconstrução efetiva da regulação pública e, em consequência, de controle daquela de natureza privada. Apesar das manifestações de boa vontade e de consciência social feitas pelos governantes de impedirem a reemergência da economia-cassino, somente medidas pontuais e limitadas foram adotadas até o presente momento. O pensamento conservador e o grande capital, que fizeram não ser com eles a intervenção na economia que os governos promoveram nestes últimos 12 meses e nem reclamaram do derrame de dinheiro público generosamente ofertado às empresas, já começam a argumentar sobre a virtuosidade do mercado para viabilizar uma recuperação econômica mais rápida. Enquanto isso, é claramente ausente a existência de interesses coletivos críticos e com força política capazes de defender uma regulação pública que inviabilize a economia-cassino e que reconstitua a política social de modo a recompor um contexto real de alguma justiça social.

Assim, tem-se observado a recomposição da economia-cassino e da regulação privada. De um lado, o movimento rápido de recuperação das bolsas de valores e dos preços das commodities observado nos últimos meses é um sinal candente da sua reativação. Não existe, até o momento, indício de recomposição da produção e dos lucros das empresas que possa justificar tal movimento, mesmo que se considere que os preços dos ativos e dos insumos tenham caído muito no momento mais agudo da crise. Por outro, nas últimas semanas pipocam notícias como a mencionada no início deste artigo, amplamente veiculadas nos grandes meios de comunicação, que a política de ganhos extravagantes nas grandes empresas continua ativa. Segundo matérias recentes do The New York Times, dois grandes bancos americanos que receberam um belo maná de recursos públicos, BofA e Citicorp, já informaram que manterão a política de grandes ganhos para seus dirigentes e traders, sem qualquer manifestação de descontentamento nem mesmo do governo americano.

A facilidade com que reemerge a economia-cassino expressa a fragilidade presente do interesse mais progressista em nossas sociedades, cuja força depende menos do poder do dinheiro e principalmente da existência de organizações coletivas. É profunda a fragmentação e enfraquecimento político destas organizações, ao mesmo tempo em que parte delas participa de instâncias da economia-cassino através de seus fundos de previdência privada, via presença de representantes em conselhos de administração das grandes empresas.

Na grande parte dos países desenvolvidos, a taxa de sindicalização do setor privado não supera 10% da força de trabalho. Na última eleição européia, mais de 60% dos jovens não compareceram à urna. Como apontou estudo da American Polical Science Association, o enfraquecimento das organizações coletivas permitiu que aquelas de interesse específico (lobbies) dominassem a política em todos os níveis. São inclusive nestas instituições que os partidos ancoram seu financiamento. Sendo que são elas que propagam e financiam a defesa da virtuosidade da regulação privada que produziu a economia-cassino.

Em suma, existem sinais razoáveis que a recuperação da economia tenha de fato começado, porém outros também indicam que a economia-cassino inicia a retomada de sua plena forma. Assim, é reduzida a probabilidade de uma nova fase de crescimento com menor injustiça social. Esta esperança deverá esperar por uma outra crise, ou melhor, parece que ficará para uma próxima vez.

Claudio Dedecca – professor titular do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. Pesquisador visitante da Université de Paris XIII e do Centre d’Études de l’Emploi, França

Artigo publicado originalmente no Jornal da Unicamp, 31/8 a
7/9/2009 e reproduzido a partir do site Adital