Estou honrada e feliz de participar da mesa de encerramento da Primeira Semana Florestan Fernandes junto com meus irmãos Florestan e Vladimir, com os meus amigos João Pedro e Paulo Arantes e com o mestre de todos nós, o professor Antonio Candido!

Estou honrada e feliz de participar da mesa de encerramento da Primeira Semana Florestan Fernandes junto com meus irmãos Florestan e Vladimir, com os meus amigos João Pedro e Paulo Arantes e com o mestre de todos nós, o professor Antonio Candido!

Na segunda semana de agosto, estive na bela homenagem aos 25 anos do MST promovida na Assembléia Legislativa de São Paulo, quando disse, e repito agora, que, após catorze anos da sua morte, Florestan está mais vivo que nunca junto aos Trabalhadores Sem Terra. Para os militantes do MST, Florestan não é apenas mais um nome num edifício, ou numa placa, que ninguém mais sabe quem é. Nada disso! Para os Trabalhadores Sem Terra, Florestan é uma presença viva: está aqui, bem diante de nós, nesta foto em tamanho natural, todo sorridente e que todos nós encontramos logo que entramos na Escola. Florestan está presente nas salas de aula, onde professores e alunos discutem sua vida e sua obra. Florestan está presente nos textos, nas orientações de luta, nestas frases dele, que encontramos pelos corredores e nas salas de aula. Florestan está mais que nunca presente no último número dos Cadernos de Estudos ENFF, integralmente dedicado a inúmeros aspectos da sua vida e obra. Uma publicação de extraordinária qualidade que devemos à incrível tenacidade do Adelar Pizetta e à dedicação fora de série dos nossos companheiros da Expressão Popular, que mal tiveram um mês para realizar o trabalho de edição!

Ademais, Brasil afora, não houve outro lugar que lhe tivesse dedicado um conjunto tão diversificado de palestras como este realizado agora pela Escola Nacional nesta Primeira Semana Florestan Fernandes. Durante cinco dias, intelectuais de renome acadêmico, todos professores de universidades públicas e todos engajados nas lutas populares, estiveram debatendo os principais temas da obra de Florestan. Fico ainda mais emocionada porque aqui estiveram intelectuais de uma geração mais nova que a minha, todos engajados no trabalho de retomar o fio de Ariadne e passá-lo adiante. Especialmente, todos têm um traço marcante em comum com Florestan: são intelectuais militantes.

Pois eu queria falar do Florestan, chamando a atenção para esta militância ancorada na sua paixão de escrever. Creio mesmo que escrever parece ter sido a atividade onde Florestan encontrou um dos maiores prazeres da sua vida. Florestan escrevia muito, amava escrever, sempre a caneta, com tinta parker violeta, naquela sua letra corrida, alongada, deitada que, às vezes, nem ele mesmo conseguia decifrar! Para onde quer que fosse, carregava os seus instrumentos de trabalho: o papel e a caneta. Nos últimos anos da sua vida, quase não precisava mais ler para escrever, citava tudo de memória. Bastava o papel e a caneta; a sua paixão fazia o resto. Escrevia até nos livros que lia, escrevia copiosamente. Essas lembranças despertam a curiosidade de saber para quem ele escrevia. Afinal, que diálogo era esse que não podia ser interrompido?

Se Florestan leitor voraz era também aquele jovem pobre que se apropriou da cultura com o deslumbramento de quem descobre ouro, Florestan escritor é este sujeito que quer inscrever seu próprio nome nesse tesouro de significantes que é a cultura. Como bem disse o seu amigo Antonio Candido sobre Florestan, é possível que uma das suas obras mais admiráveis tenha sido a construção de si mesmo.1 Afinal, Florestan foi também esse homem que queria ser reconhecido por seu nome e sobrenome. Sabemos que Vicente, o menino engraxate, lutou para ser chamado Florestan. Se o nome é como uma roupa que não nos pertence, se nos sentimos nus debaixo dela e lutamos para encher de ser o nome que recebemos2, maior ainda era a luta de Florestan, pois o fato de não ter sido reconhecido por um pai que lhe desse um sobrenome bem pode ter sido o berço do seu desejo de inscrever seu próprio nome e sobrenome na história do seu país e do seu povo.

Encontrei um discurso onde Florestan afirma que, para ele, a verdade está no ponto de partida, não no ponto de chegada.3 E o ponto de partida de Florestan foi o Vicente que, aos 17 anos de idade, decide fazer o curso de madureza, arrisca o vestibular e, aos 21 anos, consegue ingressar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Portanto, foi graças à educação que Vicente conseguiu atravessar o círculo de ferro que, como ele dizia, mantém a grande maioria dos brasileiros excluídos da plena cidadania e mesmo do mercado formal de trabalho. Florestan levou consigo o Vicente do seu ponto de partida. Esse que manteve vívida a memória da imensa maioria dos brasileiros que permaneciam, como ainda permanecem, excluídos. Florestan fez a travessia levando consigo a vivência do sofrimento, a experiência da violência, da humilhação, da expropriação. Experiências e sentimentos que o sociólogo evoca nesta sua dolorosa imagem da sociedade “praticamente cega à sorte dos deserdados, postos a cozer em seu próprio caldo4. Dessa história vivida e partilhada, carrega consigo a esperança, que marcou sua vida e sua obra: a de descobrir alguma maneira de destruir o círculo de ferro. Penso que esta dívida e esta esperança é que o levaram a escrever “coube-me o dever de levar ao mundo cultivado do Brasil as angústias, os sentimentos e as obsessões dos esbulhados” pois “tudo se passou como se me transformasse (…) em porta-voz das frustrações e da revolta dos meus antigos companheiros da infância e da juventude”.5 Um dever revestido de orgulho: por “felicidade, minha origem social e minha identidade ideológica e utópica coincidem. Não preciso virar-me pelo avesso para entender os oprimidos e bater-me por sua emancipação coletiva, atrelando-me aos seus movimentos sociais e aos seus protestos políticos”.6

Ponto de partida, travessia, compromisso. É como Florestan fez a construção de si mesmo tornando-se um intelectual militante. Florestan, militante da ciência, é o sociólogo que aposta nas ciências sociais como um instrumento de intervenção racional na vida social. Mesmo quando jogou todas as fichas na aposta da Sociologia como ciência, manteve a tese de que a neutralidade do sociólogo é uma irresponsabilidade. Florestan teve a lucidez de sustentar que a sociologia como ciência deve preservar a objetividade: ser capaz de elaborar e oferecer um conhecimento verificável e conceitualmente rigoroso, nunca neutro. A sociologia não é uma ciência pairando acima da consciência dos homens. O trabalho do sociólogo é o de associar a pesquisa competente à realização das intervenções necessárias para a efetiva democratização da sociedade brasileira. Como ele diz, em 1962, “os intelectuais não fazem as revoluções e as reformas sociais, mas são importantes nos processos de mudança social”.7

Florestan quer fazer o diagnóstico dos dilemas sociais brasileiros de modo a propor as intervenções necessárias para a construção de uma sociedade realmente democrática. Lança mão de todas as teorias disponíveis – sociológicas, antropológicas e até psicanalíticas – para assinar o seu diagnóstico: os “privilegiados da Nação8 resistem sociopaticamente, isto é, patologicamente, à realização das mudanças sociais necessárias para romper o círculo de ferro. Os privilegiados usufruem os frutos do crescimento econômico graças à manutenção da injusta distribuição da terra, da renda e dos direitos sociais.9 No seu diagnóstico sociológico, as cores do retrato dos privilegiados são fortes. Para ele, trata-se de uma gente moldada numa concepção elitista, senhorial, egoísta, conservadora, imobilista, alienada da coletividade; são aves de rapina, diz ele.10 Somos herdeiros de um passado colonial e escravista, que não conseguimos superar e, entre nós, o capitalismo avança agravando as desigualdades econômicas (de classe, raciais e regionais); revitalizando os antigos privilégios e criando novos privilégios; endurecendo a violência de classe como arma de dominação.

Essa minoria de privilegiados nutre o mais profundo desprezo pelo povo, a “gentinha, o poviléu sem eira nem beira11. Para essa minoria, as fronteiras da humanidade estão restritas ao seu tacanho universo social. Ainda agora, nesta última semana, um senador da República comparou os militantes do MST às “vorazes formigas”, “às saúvas vermelhas”, “inimigas da produção agropecuária”, e lastima que não estejam sendo usados os mais “modernos inseticidas” para “colocá-las sob controle”.12 O mesmo desprezo tão escandalosamente presente na declaração da governadora Yeda Crusius de que a morte do Elton Brum da Silva, por um tiro de escopeta disparado pela Brigada Militar, pelas costas, é lamentável porque era “desnecessária”!13 E eu fico pensando qual seria, para ela, uma morte necessária! Será mesmo que esta mulher é incapaz de se indignar com a morte, ainda mais covardemente assassinada, de um ser humano! Em 2005, num chamado Manifesto de São Gabriel, o desprezo pela “gentinha” assumiu sua verdadeira face: a crueldade. O manifesto conclama “o povo de São Gabriel, a não permitir que sua cidade” seja “maculada pelos pés deformados e sujos da escória humana. (…) Nós não merecemos que essa massa podre (…) venha trazer o roubo, a violência, o estupro, a morte. Estes ratos precisam ser exterminados. Vai doer, mas para grandes doenças, fortes são os remédios. Aqui (…) não há oportunidades para bêbados, ralé, vagabundos e mendigos de aluguel”.14

O desprezo pelos Trabalhadores Sem Terra transforma-se facilmente em ódio assassino. “Se tu, gabrielense amigo, possui um avião agrícola, pulveriza a noite cem litros de gasolina em vôo rasante sobre o acampamento de lona dos ratos, sempre haverá uma vela acesa para terminar o serviço e liquidar com todos eles.”15

Com estas descobertas e várias outras, o compromisso de Florestan com os de baixo se fortaleceu, o intelectual apaixonado pela escrita nunca mais abandonou a urgência de comunicar que não havia outra saída: a revolução democrática, dentro da ordem ou contra ela, terá de ser realizada pelos de baixo. Mesmo porque, diz ele, a “dor que atormenta milhões de explorados e oprimidos (…) só pode ser removida mediante a transformação revolucionária do mundo”.16
Investir num horizonte social que esteja além do momento presente, penso que foi esse o desejo que o constituiu, marcando sua vida e sua obra. Algo além do presente, em cuja busca deixou de ser Vicente, para se tornar Florestan; algo além do presente, em cuja busca deixou de ser engraxate, para se tornar sociólogo; algo além do presente, em cuja busca deixou de ser lumpen, para se tornar socialista. Algo além do presente, essa esperança do princípio que ele soube transformar em utopia. Foi ele que nos disse: “Nós não temos remédio senão sermos otimistas. Não há outra saída (…). O nosso reino é o futuro”.17 Nos muros da nossa escola podemos ler uma frase que parece ter sido escrita por ele, uma forma toda dele de nos dar as boas vindas: “Escola Nacional Florestan Fernandes, um sonho em construção”.

Heloísa Fernandes é socióloga, filha de Florestan Fernandes. Texto lido em 29/8/2009, na semana dedicada a ele na Escola Nacional do MST, em Guararema, São Paulo.

Notas
1. Candido, A. Florestan Fernandes, São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001, p.65.
2. Ordóñez, S.F. O olhar de Borges, São Paulo: Autêntica Editora, 2008, p.5, citando Hermann Broch.
3. Fernandes, F. “O renascimento da universidade”, em D´Incao, M.A. (org.). O saber militante, Ensaios sobre Florestan Fernandes, São Paulo: Editora Paz e Terra e UNESP, 1987, p. 311.
4. Fernandes, F. A ditadura em questão, São Paulo: T.A.Queiroz Editor, 1982, p. 145.
5. Fernandes, F. Educação e sociedade no Brasil, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1966, p.XX e XIX.
6. Fernandes, F. A transição prolongada, São Paulo: Cortez Editora, 1990, p.6-7.
7. Fernandes, F. A Sociologia numa era de revolução social, Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1976, p.232.
8. Idem ibidem, p.211.
9. Idem ibidem, p.215.
10. Idem ibidem, p.216.
11. Fernandes, F. Que tipo de República, São Paulo: Editora Globo, 2007, p.229.
12. Virgílio, A., A saúva vermelha, O Tempo, B.H., 20/08/09.
13. Folha de S.Paulo, 22/08/09, p. A13.
14. Citada em Pinassi, M.O., Da miséria ideológica à crise do capital, uma reconciliação histórica: São Paulo, 2009, Boitempo Editorial, p.63-64, nota 5.
15. Idem ib.
16. Fernandes, F. Que tipo de República, ob.cit., p.231.
17. Fernandes F. “O renascimento da universidade, em D´Incao, M.A. (org.), O saber militante, ob.cit., p.313.