Em meio à ressaca do neoliberalismo, a primeira resistência na América Central, por Pedro Carrano

Em meio à ressaca do neoliberalismo, a primeira resistência na América Central, por Pedro Carrano

A América Central tem sido um privilegiado laboratório do capitalismo na sua versão neoliberal. O fim do ciclo de ascenso das lutas populares, característico dos anos 1970 e 80, veio carregado de uma ressaca terrível no pequeno continente. Super-exploração de trabalhadores e rebaixamento do horizonte político das organizações de classe são a base que o período anterior forneceu para o atual momento. As mobilizações em Honduras contra o golpe civil-militar são um primeiro sinal de revolta das massas na região, ainda limitado pela falta de uma alternativa popular de poder. Mas a resistência pode representar um novo salto de qualidade nas lutas e nas organizações dos trabalhadores no pequeno istmo.

Fronteiras, na América Central, são formalidades políticas, uma vez que transnacionais e governos imperialistas aplicam políticas a Honduras, Guatemala, Nicarágua e El Salvador como um todo. No começo dos anos 1990, a região viveu o final dos embates armados, encerrados com os acordos de paz. Na Nicarágua, o governo sandinista conheceu a derrota eleitoral, frente à chantagem do embargo estadunidense. Em El Salvador e Guatemala, as armas da guerrilha popular foram depostas. Honduras não passou imune às lutas deste período, pelo contrário: o fato de ser o centro de operações dos Estados Unidos resultou em muita repressão interna contra a militância, mesmo sem um movimento popular armado como nos países vizinhos.

Em El Salvador, frente ao “empate” militar entre as forças populares e o exército oficial, patrocinado pelos EUA, organizações como a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), analisam que a assinatura dos tratados de paz teve caráter estratégico e foi uma derrota para as oligarquias, uma vez que, naquele país, as eleições viriam a ser desmilitarizadas e abertas. Porém, na década de 1990, tudo passou a ser permitido na América Central, de acordo com a conjuntura mundial. São características deste cenário:

– Super-exploração da mão-de-obra, por meio das fábricas maquiladoras. As maquiladoras são unidades de montagem de mercadorias que se caracterizam pela completa falta de direitos trabalhistas, a coação moral, e os salários que não repõem sequer a força de trabalho;

– Predomínio das transnacionais no campo e o abandono de políticas de produção alimentar interna, com o conseqüente abandono do campo pelos agricultores, rumo aos centros urbanos e ao exterior;

– Migração, aumento da dependência em relação à economia estadunidense. De um lado, o projeto das elites de oferecimento de mão-de-obra abundante, após o abandono do mercado interno. Em troca, as remessas de dólares passam a ser vitais para as elites destes países. A tentativa do Mercomum, ainda durante o período desenvolvimentista dos anos 1950, estava completamente enterrada.

– A violência a serviço do capital e a introdução da cultura das gangues (Maras), trazidas pelos jovens imigrantes deportados dos EUA. O fim das guerras desarma as forças populares organizadas, mas o capital multiplica suas formas de proteção à mercadoria, além de patrocinar a repressão contra o povo, nas periferias;

– Corredores e tratados de livre comércio (TLCs) assinados ou aplicados pela via dos fatos. Em 2006, governos da América Central e República Dominicana assinaram o Tratado de Livre-Comércio entre a região e os EUA (DR-Cafta);

– Privatizações dos serviços sociais e dos recursos naturais. Um exemplo marcante é o avanço de empresas como a canadense Pacific Rim, na extração de ouro na Guatemala e Honduras, atividade altamente destrutiva para o meio-ambiente e comunidades originárias.

Em suma, as oligarquias adotam o modelo importador, deslocam-se para o setor de serviços, favorecidas pelas remessas e pela facilidade do fluxo de capitais. As fábricas maquiladoras são a síntese deste novo projeto das oligarquias: a isenção de impostos para as plantas produtivas faz delas um verdadeiro paraíso fiscal, o que favorece o seu caráter transitório e dificulta a organização de trabalhadores.

A imagem concreta está na cidade de San Salvador, onde parte considerável da força de trabalho é vendida em mercados populares: cerca de quinhentos mil trabalhadores, em 23 mercados da capital, buscam vender toda a sorte de mercadoria, enquanto no campo aumentam as fileiras da migração. Por sua vez, os bancos e os núcleos familiares são dependentes das remessas de estrangeiros em uma proporção que, em Honduras, chega a 16% do PIB. Dos tantos muros erguidos após a queda do Leste Europeu, um deles está na América Central: a fronteira entre Nicarágua e Costa Rica tornou-se um pólo de migração massivo.

Claro que antigas formas de domínio e exploração são mantidas e têm influência política: a empresa bananeira Chiquita, antiga United Fruit Company (o conhecido “octopus” do continente), responsável pela derrocada do governo progressista de Jacobo Arbenz na Guatemala (1954), mudou de nome, mas não de prática, e atualmente teve seus lucros abalados pelas políticas laborais de Mel Zelaya.

Este é o cenário de terra arrasada deixado pelo período de domínio neoliberal e derrota das organizações populares. Hoje, o novo período de crise do capitalismo impõe mudanças estruturais para os países centro-americanos e força um rearranjo das massas populares. De súbito, milhares de migrantes estão de volta para a América Central. Só em 2008, 80 mil salvadorenhos voltaram ao perder o emprego no exterior.

Até onde o golpe de Honduras pode ecoar

A resistência contra o golpe de Estado em Honduras deve abrir um salto no movimento de massas na América Central. Embora neste momento não aponte para a organização de espaços nos quais o programa e as bandeiras populares se configurem como uma alternativa de poder. O retorno de Mel Zelaya é a luta imediata do movimento social, articulado na Frente de Resistência Popular. Embora represente uma derrota para as elites, este objetivo tem se revelado mais difícil do que aparentava. Há cenários nos quais a volta de Zelaya seria possível em troca de moderação. O presidente deposto aceitou o retorno negociado. Mas os golpistas, não. Neste sentido, há uma coesão política forte entre os golpistas, que permanecem intactos mesmo após mais de vinte dias de protestos e toma de ruas, o que reforça a tese de apoio velado dos Estados Unidos.

Dentre os quatro países, em Honduras já havia sinais de reascenso da luta de massas desde 2008, quando três paralisações gerais foram levadas a cabo no país. Na falta de um projeto político e popular, Zelaya encabeçou um processo de transformação a partir de política laborais, tensionado à esquerda pelo ingresso no campo político da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), que ofereceu uma saída para a dependência de petróleo da América Central, que ajudava a alçar o preço da comida às alturas.

Em Honduras, a divisão da política entre liberais e nacionalistas torna o horizonte político mais do que Nicarágua e El Salvador – onde, em linhas gerais, a divisão está mais clara para o povo entre um projeto de esquerda e direita. Em Honduras, até 2005, Zelaya venceu o candidato Pepe Lobo por pequenas nuances no seu projeto. Por sorte, as coisas estão em movimento e a tendência é de abalo na hegemonia dos dois partidos.

A crise política pode alcançar os países vizinhos. Em El Salvador, a vitória de Maurício Funes, da Frente Farabundo Martí, esbarra em um partido unitário e coeso da direita, declaradamente “anti-comunista”: a Arena. Na Nicarágua, por sua vez, as eleições municipais de novembro de 2008 revelaram a fúria do Partido Liberal, que lançou mão de todas as estratégias para isolar o governo do sandinista Daniel Ortega. É consenso entre os movimentos sociais que tampouco o “Orteguismo” representa uma transformação estrutural. Mas isto não oculta a ingerência da embaixada estadunidense naquele episódio, bem como as sanções impostas por EUA e Europa. O Movimento de Renovação ao Sandinismo (MRS), na ânsia de denunciar Ortega, na realidade fez coro nos editoriais das elites, enquanto o povo estava nas ruas revoltado contra os liberais.

Zelaya, Ortega e Funes não traduzem em seus programas um projeto da classe trabalhadora, acumulado na luta dos movimentos sociais e sindicais. Um exemplo recente estava no programa de candidatura de Mauricio Funes, que não trazia as lutas dos atingidos por barragens, um dos principais cenários da luta de classes no pequeno continente. Assim mesmo, na América Central, as oligarquias que controlam o aparelho do Estado não parecem dispostas a ceder nem um milímetro.

Democracia em disputa

As palavras de ordem usadas nos protestos de rua são o retorno de Mel Zelaya à presidência. A reivindicação por democracia, a assembleia constituinte, a participação popular expõem o totalitarismo das elites. A democracia está em disputa neste momento em Honduras e, nestes quatro países, somente as massas urbanas e o campesinato têm a necessidade de exigi-la. No fundo, trata-se do momento de fazer o embate entre a democracia de discurso das elites e a democracia conseqüente exigida pelo povo.

As características da burguesia local não dão qualquer mostra de que ela lutaria nas ruas por uma constituinte. A democracia, neste caso, é bandeira e exigência dos “de baixo”, e têm marcado os processos de Venezuela, Bolívia e Equador. E não apenas: mesmo a Outra Campanha no México – avessa às ações no marco institucional – teve como objetivo inicial formular a proposta de uma nova constituição mexicana.

Novas características estão colocadas na luta atual. Se, na década de 1970, a ala progressista e de base da igreja católica foi decisiva na luta popular, agora em Honduras têm se mostrado vacilante, na figura do cardeal do país – novamente, resultado do refluxo do período anterior. Outra questão: o exercício de unidade entre os movimentos sociais dos diferentes países é um fator fundamental, por meio de organizações como a Alba e Via Campesina. A experiência histórica acumulada comprova que a luta tem que ser articulada em conjunto na América Central e Caribe, apenas desse jeito o imperialismo estadunidense seria golpeado, como defendeu o militante haitiano Didier Dominique em passagem pelo Brasil.

Ainda há um longo caminho para os movimentos sociais centro-americanos, mas a atual tarefa de lutar pela democracia e pela assembleia constituinte deve ser levada a cabo com todas as energias, uma bandeira que as massas populares aspiram e que nunca, na História concreta, conheceram. Uma derrota do retorno de Zelaya, nesta conjuntura de crise, significa o caminho aberto para um maior recuo nos direitos políticos e econômicos dos trabalhadores, em Honduras e noutros países do continente. Golpes são articulados “de fora”, mas só a luta e a conscientização da população dentro do país, no final das contas, pode alterar a correlação de forças.

É certo que a janela para a revolta popular não é aberta pelo mero desejo dos revolucionários. Mas, para os movimentos sociais brasileiros, a tenacidade e também limitação do movimento hondurenho neste momento nos deixam algumas provocações. O fato de vivenciarmos um momento de descenso da luta de massas não significa que não tenhamos que propagandear as bandeiras populares e buscar a construção de um projeto. As jornadas unitárias e as bandeiras levantadas deveriam servir de mote para um trabalho intenso e contínuo de conscientização do povo, lançando mão de diferentes métodos de agitação, para acumular na consciência e identidade de classes, com o objetivo de plantar esta semente de conscientização, que cumprirá seu papel apenas em um período futuro, de salto nas lutas – algo que, claro, não podemos determinar. Equador, Argentina, Bolívia e agora Honduras são exemplos suficientes de que a ação das organizações populares apenas em um momento de crise pode permitir que a revolta popular passe e encontre a todos despreparados, sem uma mínima rede de inserção popular nas cidades e trabalho anterior de base e conscientização.

Referências:

DALTON, Roque. Miguel Mármol Los sucesos de 1932 en El Salvador.
EQUIPO MAIZ. La crisis en Estados Unidos, novembro de 2008.
HARNECKER, Marta. Con la Mirada en El Alto.
FRENTE FARABUNDO MARTÍ DE LIBERACIÓN NACIONAL. La Revolución Democrática em Transición al socialismo, 2005.
LÊNIN, V. I. Duas táticas da Social Democracia na revolução democrática
GUNDER FRANK, André, O inimigo Imediato, in O Marxismo na América Latina, uma antologia de 1909 aos dias atuais, org. de Michael Löwy.
LÖWY, Michael. O Marxismo na América Latina, uma antologia de 1909 aos dias atuais.
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência.
______, idem. Vida e Obra.
OLIVEIRA, Venâncio de. Crisis Global y el problema de la soberania alimentaria en El Salvador. CEICOM, 2009.


*Pedro Carrano é jornalista
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Publicado no Brasil de Fato em 27/7/2009 e republicado na Agência Alainet em 29/7/2009