Uma das principais características das democracias modernas e consolidadas tange à capacidade de construir, de forma suprapartidária, consensos ou maiorias expressivas em torno de grandes objetivos estratégicos para os Estados nacionais. Isso dá um norte preciso e de longo prazo para as políticas mais relevantes e impede que metas prioritárias para o interesse nacional sejam descontinuadas em função da necessária alternância de poder. Assim, forma-se um país com um ambiente econômico e político estável e confiável, independentemente das mudanças que inevitavelmente ocorrem em todo regime aberto.

Pois bem, parece que o Brasil caminha a passos largos para se tornar uma democracia desse tipo. Com efeito, além de instituições sólidas e independentes, a democracia brasileira já exibe também a capacidade de construir consensos mínimos suprapartidários. Foi assim, por exemplo, no caso do compromisso com a estabilidade monetária e macroeconômica. O PT, que fez dura oposição à política econômica do governo anterior, acabou se comprometendo decididamente com o controle da inflação e o equilíbrio macroeconômico.

O novo governo foi muito bem sucedido nesse aspecto: dominou a inflação que ameaçava sair de controle e reduziu substancialmente a vulnerabilidade externa e as dívidas externa e interna que colocavam em cheque o equilíbrio macroeconômico. Graças a esse compromisso, pudemos comemorar, na semana passada, os 15 anos do Plano Real, sendo 6 meses do governo Itamar, 8 anos do governo FHC e quase 7 anos do governo Lula. Um objetivo importante proposto e criado por um governo foi assumido e aperfeiçoado por outro, dando, assim, continuidade à estabilidade monetária.

Mas a construção de consensos ou maiorias expressivas suprapartidárias em torno de objetivos estratégicos não pode se esgotar, obviamente, no necessário porém insuficiente compromisso com a estabilidade monetária. É preciso muito mais que isso para a transformação do Brasil num país próspero e justo.

O governo Lula já apontou alguns caminhos importantes. O primeiro deles diz respeito ao crescimento com distribuição de renda. De fato, nos últimos anos o Brasil cresceu repartindo riquezas. Graças a programas como o do Bolsa Família, o do crédito facilitado, bem como à política de recuperação do salário mínimo e à grande geração de empregos formais, cerca de 17 milhões de pessoas deixaram a pobreza e passaram a ser participantes ativos da construção do país. E a renda dos 50% mais pobres cresceu num ritmo chinês: 32%, duas vezes mais do que o aumento da renda dos 10% mais ricos, o que fez diminuir, pela primeira vez em muito tempo, a concentração dos rendimentos no Brasil.

Assim, o desenvolvimento brasileiro recente, ao contrário de outros períodos históricos de crescimento, foi inclusivo e criador de cidadania. Crescemos repartindo renda e criando oportunidades para muitos. Dessa vez, o bolo cresceu sendo distribuído. Mais do que isso: a redução da pobreza e a distribuição de renda foram funcionais ao crescimento econômico. Embora a boa conjuntura da economia internacional tenha dado contribuição relevante ao crescimento, o fortalecimento do mercado interno jogou papel significativo em sua consolidação.

Agora, com a crise mundial e a grande contração do comércio internacional, que já chega a 30%, teremos obrigatoriamente de crescer para dentro, com base no dinamismo do mercado interno. Portanto, o modelo de crescimento com distribuição de renda, implementado no governo Lula, torna-se cada vez mais decisivo e estratégico para o país. Ele tem de ser assumido como um compromisso suprapartidário.

Outros objetivos que demandam compromisso consensuado são os relativos à política externa do país. Essa política "altiva e ativa" superou o fantasma do "realismo periférico", diversificou extraordinariamente as parcerias comerciais, econômicas e diplomáticas do país e foi decisiva para a criação de grandes superávits comerciais e para a superação da nossa vulnerabilidade externa.

Ademais, apostamos exitosa e pragmaticamente na cooperação Sul-Sul, sem descuidar das parcerias tradicionais, no fortalecimento e expansão do MERCOSUL e na aglutinação dos interesses dos países emergentes em todos os foros internacionais, principalmente na OMC. Graças a ela, o Brasil aumentou significativamente seu protagonismo internacional.

Hoje, o nosso país é ator internacional de primeira linha, tendo contribuído, de modo decisivo, para a transformação do G8 em G20. A continuidade dessa política de inserção soberana, que visa à construção de uma ordem mundial menos assimétrica e efetivamente multilateral, é vital para a projeção dos interesses do Brasil no cenário mundial e demanda, portanto, compromisso suprapartidário para ter a devida continuidade.

A recuperação do Estado, inclusive da capacidade de investir, e sua refundação com base nos princípios da transparência, eficiência e moralidade, objetivos nos quais o governo Lula vem se esforçando, também requerem ações e medidas de longo prazo. A fragilização do aparelho estatal cometida na gestão anterior, inclusive mediante privatizações feitas fora da moldura de uma política industrial, vem sendo revista pelo governo atual como forma de propiciar serviços públicos de qualidade, aumentar a capacidade de intervenção do Estado e implantar gestão pública transparente e eficiente. O modelo do Estado mínimo, herdeiro de uma ideologia fracassada, não pode mais ter seguidores no país. É preciso, assim, um compromisso suprapartidário com a recuperação administrativa, econômica, política e ética do Estado brasileiro.

Além desses, há outros objetivos estratégicos que podemos mencionar rapidamente. A implantação de educação de qualidade e universal parece já ser um consenso que demanda, na realidade, esforço suprapartidário. Nesse sentido, programas como o PROUNI e a implantação de quotas nas universidades para excluídos por quaisquer características sociais e raciais merecem ter continuidade.

A construção de logística e infraestrutura adequadas ao tamanho e às ambições do Brasil é também finalidade que deve ser perseguida por todos os governos, inclusive por meio da continuidade do PAC. A promissora perspectiva criada pelo pré-sal requer o compromisso de todos com a gestão pública e transparente, com base em critérios intergeracionais, das riquezas que serão geradas, de modo a se evitar a "doença holandesa" e o desperdício de um recurso não-renovável.

A construção de consensos ou de maiorias expressivas em torno desses e de outros objetivos estratégicos para o país não implica supressão de divergências e discordâncias sobre como alcançá-los. Essa é uma discussão que deve estar sempre democraticamente aberta. Mas tal construção demanda, isto sim, a superação de agendas eleitoreiras medíocres que tornam menor e inexpressivo o debate democrático. Afinal, só uma agenda maior pode transformar a nação num país maior.

Aloizio Mercadante, 55, economista e professor licenciado da PUC-SP e da Unicamp, é senador da República pelo PT-SP

Publicado originalmente na Agência Estado e republicado a
partir do site da Liderança do PT no Senado Federal em 14/07/2009