No dia 30 de abril deste ano, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inválida, por sete votos a quatro, a Lei de Imprensa, de 1967. Isso, se de um lado, elimina uma parte do que ficou conhecido como entulho autoritário, de outro, abre um vácuo legal, que não pode perdurar por muito tempo sob pena de deixar a cidadania completamente desprotegida diante dos erros de imprensa. Também os próprios meios de comunicação, sem uma legislação específica, ficam à mercê de iniciativas processuais vindas dos mais variados cantos do País. Em tudo por tudo, impõe-se a elaboração de uma lei de imprensa democrática.

Tudo parece claro, límpido, próprio do Estado de Direito democrático. Afinal, como lembrava o advogado José Paulo Cavalcanti Filho, em artigo publicado na Folha de S.Paulo (7/5/2009), dos 191 países da ONU só um não tem Lei de Imprensa: o Brasil. Mas, tal clareza não parece chegar à própria mídia, que prefere a situação criada pelo STF. Recentemente, uma chamada conferência de imprensa, que reuniu barões da mídia brasileira na Câmara Federal, consagrava o entendimento de que é melhor deixar tudo como está – naturalmente como está depois da decisão do STF.

Afinal, por todos os títulos, do ponto de vista dos grandes meios de comunicação, é melhor o vácuo legal do que uma lei democrática, que venha a regular a mídia. Como deputado federal (PT-BA), propus ao líder do meu partido, Cândido Vacarezza, que apresentasse um requerimento ao presidente da Câmara Federal, Michel Temer, propondo a criação de uma Comissão Especial voltada à elaboração de uma nova lei de imprensa, nos marcos e sob os parâmetros legais do Estado Democrático.

Registro que na Câmara Federal e no Senado há um temor reverencial diante da mídia. É como mexer com um monstro sagrado. Por isso, creio que só uma decidida mobilização da sociedade brasileira e dos próprios jornalistas é que estimulará alguma iniciativa da Câmara Federal. Dos jornalistas, agora, com mais razão devido ao fato de o STF ter também abolido a obrigatoriedade do diploma universitário para o exercício profissional.

Além de queda, coice. Tenho brincado dizendo que estamos vivendo o nosso 11 de setembro. Há uma ofensiva que atinge a cidadania e, também, a própria categoria de jornalistas. A luta pela recuperação da obrigatoriedade da exigência do diploma para o exercício do jornalismo também se impõe nesse momento.

Mesmo que raciocinássemos de modo excessivamente otimista, e considerássemos existir um alto grau de responsabilidade de toda a mídia, ainda assim, como atividade humana, tal trabalho está sujeito a erros, e, dessa maneira, deve estar sujeito a uma regulação legal, sob os marcos do Estado Democrático, para insistir no bordão. Por obviedade, não é possível pensar numa auto-regulação. Todos nós sabemos não serem incomuns os erros da imprensa, e a cidadania não pode ficar ao deus-dará, especialmente a população mais pobre, que não tem acesso rotineiro aos meios de comunicação e que usualmente é desrespeitada por esses meios.

O advogado José Paulo Cavalcanti Filho, no artigo a que me referi, assinala que sofríamos muito com a pior Lei de Imprensa do planeta. “Mas, pior mesmo, é não ter lei nenhuma”. Acompanho o raciocínio dele, que me parece exemplar. Quem ganha e quem perde com a decisão do STF? Jornalistas, perdem – acentua o advogado. Afinal, uma Lei de Imprensa democrática certamente lhes garantiria direitos fundamentais, “como a ‘cláusula de consciência’, com a qual poderiam não assinar reportagens contra suas crenças ou ideologias sem ser demitidos por isso”.

Teriam direito à “exceção da verdade”, que os protegeria de processos, quando legitimados por procedimentos fundados na ética, na responsabilidade social. Ou, também, dado ao fato de exercerem o ofício de emitir opiniões, teriam tratamento penal diferenciado – a pena de privação da liberdade restaria limitada à reiteração de práticas eticamente reprováveis.

Cavalcanti Filho demonstra que os jornais também perdem. Uma lei democrática garantiria que fossem processados apenas onde têm sede ou sucursais, evitando o que ocorre atualmente com a Folha de S. Paulo, que responde a processos dos filiados da Igreja Universal em mais de uma centena de fóruns.

Eu queria ir um pouco além, no entanto, Tocar o dedo um pouco mais fundo na ferida, que me desculpem a expressão. Há, para além desses aspectos tão bem levantados por José Paulo Cavalcanti Filho, uma questão política.

Uma mídia como a brasileira, concentrada nas mãos de umas poucas famílias, oligopolizada, portadora de um discurso profundamente conservador e nitidamente partidarizada, pode existir sem qualquer regulação democrática? Mais do que isso, um poder assim, com tão poderosa repercussão, com tal impacto público, pode caminhar desregulado? Um ator político dessa importância pode ficar à margem de uma lei específica?

Penso que não há justificativa de nenhuma natureza para que a mídia escape a uma regulação específica. Se quisermos avançar um pouco mais, lembremos, para reiterar, que vivemos sob uma sociedade midiática, uma sociedade ambientada e estruturada pela mídia, e um poder assim, como já o compreenderam as nações democráticas por todo o mundo, não pode existir sem uma lei que regule suas atividades.

Está certíssimo outra vez José Paulo Cavalcanti Filho, na conclusão de seu artigo: que se garanta, como óbvio, o máximo de liberdade de informação que, como ele acentua, trata-se de um sagrado direito de todos e de cada um, “mas que também se garanta o máximo de responsabilidade no exercício dessa liberdade”.

Esta relação, entre liberdade e responsabilidade, é complexa. Há um temor, de modo particular à esquerda, de tratar disso. O Estado Democrático, no entanto, segundo o que penso, é capaz de contemplar uma coisa e outra. E nós sabemos, sabemos bem, o quanto há, infelizmente, de irresponsabilidade na mídia brasileira. O quanto há de intervenção política dessa mídia, e uma intervenção política que beira à obscenidade por sua parcialidade, por falta de critérios propriamente jornalísticos.

Na crise política de 2005, de modo particular, e mesmo na campanha de 2006, ficou nítida a leviandade da mídia brasileira. Talvez seja necessário precisar isso. O que havia mesmo era uma posição política que, no entanto, foi exercida de um modo irresponsável, leviano pela desconsideração com a verdade, com os fatos, pela seguida distorção da realidade.

Se não há regulação, se o que chamo núcleo dominante da mídia pode agir segundo seus exclusivos critérios, sem regulação, predominaria uma espécie de lei da selva, onde se esconderiam, ou se afirmariam, interesses poderosos, políticos e econômicos.

Já se disse que não há nada de estranho no fato de os meios de comunicação afirmarem e defenderem interesses políticos ou econômicos. Mas que o façam de modo claro, abertamente, à luz do dia, e se guiem, ao menos, pelos padrões elementares do jornalismo, onde conte a predominância dos fatos, algum rigor com a verdade, e não o teste de hipóteses, como tem agido boa parte do jornalismo brasileiro.

O núcleo dominante da mídia brasileira decretou o fim do governo Lula, trabalhou para isso durante boa parte do ano de 2005 e até o segundo turno de 2006. Não é necessário muita pesquisa para perceber isso. Só que o povo brasileiro, naquela conjuntura, além de eleger Lula, conseguiu, também, impor uma derrota à mídia, embora, por evidência, ela não tenha assimilado as lições dela decorrentes, e isso porque tem uma posição política intransigente, nitidamente sectária – a de não aceitar, sob nenhuma hipótese, a extraordinária experiência do governo Lula.

Insista-se: ter posições políticas, como o núcleo dominante da mídia brasileira o tem, não é nenhum pecado e faz parte da dinâmica do Estado Democrático. O problema é que a mídia, pela função que tem nas sociedades contemporâneas, de ser um ator essencial na construção social da realidade, não pode fugir de alguns padrões éticos e profissionais conhecidos, que estão consagrados nos manuais que ela própria edita. E o núcleo dominante da mídia brasileira não respeita sequer seus manuais.

Evidente que há exceções. Podemos citar CartaCapital, Caros Amigos, algumas tantas outras publicações e tantos blogs incômodos para a mídia dominante. Mas são exceções. Sorte nossa é que o governo Lula convocou a Conferência Nacional de Comunicação, onde, espero, sejam debatidos os rumos da mídia em nosso País, a necessidade profunda de democratizar os meios de comunicação de modo a aprofundar a democratização da sociedade brasileira.

Que se afirme, a partir dessa conferência, a idéia de que não é admissível que um pequeno número de famílias monopolizem o discurso em nosso País. Que outros atores, diversos atores, tenham a possibilidade de falar, de elaborar interpretações sobre a realidade brasileira. E isso só poderá ser feito via meios de comunicação, a cujo acesso esses atores não têm acesso nos dias de hoje, salvo como benesse dos grandes meios. Uma outra comunicação é possível.

*Emiliano José é jornalista, escritor, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA e Conselheiro da Fundação Perseu Abramo.

Publicado no sítio da revista Carta Capital, em 06/07/2009