Michael R.Krätke: Estamos rumando para o fim do regime do dólar?
As grandes crises são tempos de mudanças e ajustes. No sistema capitalista mundial os equilíbrios estão se alterando a toda velocidade, e a atuação dos países do BRIC não jogam um papel menor nisso. Tudo se passa como se, de uma figura artística criada tempos atrás pelo Goldman Sachs surgisse agora uma magnitude global capaz de competir com os EUA e a União Européia: China, a potência mundial vindoura, e Rússia, a decadente, têm sido as primeiras a se entenderem; Brasil e Índia vêm em seguida. Esses países vêm mantendo reuniões informais como Estados BRIC. Esta semana se realiza a primeira cúpula oficial de países do BRIC na cidade russa de Yekaterinburgo.
Brasil, Russia, Índia e China representam quase 46% da população mundial, e são potências econômicas de nível mundial como exportadoras de matérias primas e produtos agrícolas, como oficina do mundo, fábrica de idéias, e centro de prestação de serviços. Dispõem, juntos, do maior volume de reservas monetárias: 2,9 trilhões de dólares. Suas economias nacionais crescem, ainda assim, agora, num ritmo claramente menor. Não lhes resta outra opção, senão a de livrarem-se o mais rápido possível da mordaça da recessão. E têm possíveis chances de consegui-lo, porque seus governos não se limitam a uma política de gestão da crise, como os governos norte-americanos e da União Européia, mas estão decididos a induzir mudanças.
Se conseguirem-no, em poucos anos alcançarão ou superarão economicamente os Estados do G-7. Porque então estariam mais imbricados entre si do que jamais estiveram, e vai de si que isso se poderia constatar objetivamente no momento em que a China substituísse os EUA como parceiro comercial principal do Brasil.
O FMI pode ficar satisfeito
O que está em jogo na cúpula de Yekaterinburgo é, nem mais nem menos, uma aliança estratégica na política econômica de alcance planetário, a fim de exercer contrapeso ao “modelo” de capitalismo dos mercados financeiros estadunidense. Quem quiser superar a crise presente sem assentar as bases para um próximo derretimento financeiro não pode se limitar a resgates bilionários de bancos e a regular mercados financeiros, escreveu o ministro brasileiro de estratégia Roberto Mangabeira Unger, autor de vários livros em que tem advogado pela importação pela América Latina do socialismo democrático de tipo europeu.
E aonde essas manobras e mudanças dos Estados do BRIC levam? Já antes de sua cúpula, chineses, brasileiros e russos vêm advogando pelo fim do regime do dólar e por uma nova divisa mundial. Os bancos centrais desses três países que, junto com a Índia, experimentaram, nas últimas quatro semanas, um aumento de 60 bilhões em suas reservas de dólares, estão decididos a fragmentar e a diversificar. Já anunciaram sua intenção de adquirir bônus de empréstimo do FMI e, ao mesmo tempo, vender bônus do Tesouro norte-americano por uma valor de 100 bilhões de dólares. Os títulos do FMI serão emitidos como direitos especiais de giro, quer dizer, vai se tratar de dinheiro fiduciário internacional, fundado numa cesta monetária composta de dólares, euros, libras esterlinas, yenes e francos suíços. O FMI estará safisfeito, porque sua emissão programada de bônus de empréstimo se converterá então num negócio seguro, ainda que não admirável. Em contrapartida, os Estados do BRIC podem endurecer suas exigências de igualdade nas deliberações do FMI.
Nas atabalhoadas ações dos Estados visando ao resgate de empresas no espaço da União Européia, algumas das crises que haverão de se tornar decisivas para o transcurso da atual Grande Depressão do ano de 2009 (a quarta do capitalismo moderno), estão silenciosas: a crise de fome, a crise agrícola, a crise energética, a crise de matérias primas e as ameaçadoras consequências da catástrofe ambiental.
Do BRIC ao “BRICSS”
Os Estados do BRIC não podem deixar de ver que todas essas crises mundiais não apenas batem na porta de sua casa, mas irrompem no seio de seus próprios países. Assim, esses Estados poderiam facilmente se converter num grupo de Estados “BRICSS”, se Indonésia, Coréia do Sul e África do Sul se incorporarem. Então se ia poder falar com propriedade de um contrapoder de alcance econômico mundial. A União Européia, agora em situação de espera, terá que decidir com quem quer dar as mãos: se vai ao abismo com os EUA, ou com os países do BRIC, rumo a uma nova ordem econômica mundial.
*Michael R.Krätke, membro do Conselho Editorial de SinPermiso, é professor de política econômica e direito fiscal na Universidade de Amsterdã, pesquisador associado ao Instituto Internacional de História Social dessa mesma cidade e é catedrático de economia política e diretor do Instituto de Estudos Superiores da Universidade de Lancaster, no Reino Unido.
Tradução: Katarina Peixoto