Apesar de sua natureza e profundidade, a crise do capitalismo não é suficiente para derrubar o sistema, sepultar o neoliberalismo ou mesmo pôr em xeque o posto dos Estados Unidos como única potência da atualidade. É o que apontou o cientista político e professor universitário Emir Sader, neste sábado (20), na abertura do Seminário Internacional Sobre a Crise Mundial.

Apesar de sua natureza e profundidade, a crise do capitalismo não é suficiente para derrubar o sistema, sepultar o neoliberalismo ou mesmo pôr em xeque o posto dos Estados Unidos como única potência da atualidade. É o que apontou o cientista político e professor universitário Emir Sader, neste sábado (20), na abertura do Seminário Internacional Sobre a Crise Mundial.

“É verdade que a hegemonia americana se enfraquece. Mas não aparece no horizonte nenhum país candidato a potência que possa substituir os Estados Unidos”, disse Sader às cerca de 250 pessoas presentes no Hotel Braston, em São Paulo, no seminário promovido por PT, PCdoB, Fundação Maurício Grabois, Fundação Perseu Abramo e Corint. Como contrapartida, ele afirmou que a crise trouxe novos parâmetros para o debate: “A História voltou a ficar aberta – se é que já chegou a fechar. As alternativas para a esquerda estão mais abertas que antes.”

Emir ponderou que qualquer interpretação da crise deve levar em conta os princípios do marxismo – que “não são dogmas nem axiomas”. Um dos princípios mais relevantes – por refletir um drama atual do marxismo – é a ideia de que “sem teoria revolucionaria não há prática revolucionária”.

“A primeira geração de marxistas – Marx, Engels, Lênin, Gramsci, Rosa Luxemburgo – era de pensadores revolucionários que também eram ativistas revolucionários”, lembra Emir. “Hoje a ruptura provoca a tendência de a intelectualidade girar sobre si mesma e os partidos serem muito pragmáticos.”

Contexto da crise

Para Emir, é preciso analisar a crise atual “sem analogia mecânica” com, por exemplo, a crise capitalista de 1929. “Já chegaram a dizer até que agora vem guerra. Guerra entre quem?”. A seu ver, a crise deve ser entendida nos marcos da trajetória do capitalismo no século 20.

Da Segunda Guerra Mundial até a década de 1970, o sistema viveu um longo ciclo de prosperidade – o “período de ouro”, conforme a definição do historiador anglo-egípcio Erich Hobsbawn. “Houve um grande crescimento industrial até na periferia do capitalismo – no Brasil, no México, na Argentina”, lembra Emir. O ciclo seguinte, no entanto, é de recessão econômica – mas a queda do socialismo fortalece os Estados Unidos.

“Quem ganha reconta a história, narra os fatos – e a vitória ideológica do capitalismo foi de proporções vitais.” O socialismo sai da agenda, perde em atualidade. Países como China e Cuba passam a uma “situação de defensiva histórica”. Além disso, o neoliberalismo fragmentou a sociedade, jogou os trabalhadores no trabalho informal, dificultou a resistência. “A derrota do socialismo serve, afinal, para desqualificar a política.”

A financeirização

Com o anúncio da “vitória da economia liberal”, os novos embates em pauta se davam em temas como “democracia e totalitarismo”, “ocidente versus terrorismo”. Já na economia, “consolida-se a passagem do Estado de bem-estar social para a fase neoliberal, de desregulamentação”. É a fase da financeirização radical – ou, nas palavras de Emir Sader, “um câncer incrustado dentro do capitalismo”.

“Marx dizia que o capitalismo é o sistema que faz crescer as forças produtivas como nenhum outro – seu problema era não distribuir a riqueza. O que ocorre, sob a hegemonia financeira, é a transferência de recursos do setor produtivo para o setor especulativo, que não produz bens nem serviços”, explica Emir. Na América Latina, segundo o professor, a “euforia neoliberal não trouxe vantagens econômicas. As três maiores economias mostraram fragilidade – o México quebrou em 1994, o Brasil em 1999 e a Argentina em 2002 e 20003”.

Para Emir Sader, a atual crise do capitalismo emerge em meio a “um período de relativa estabilidade, com uma única grande potência. Existe uma turbulência prolongada sem resolução previsível, mas qualquer resolução será de alternativas dentro do capitalismo, sem ruptura”.

Daí sua conclusão de que “o capitalismo não termina com a crise – porque ele não cai por si mesmo, tem de ser derrubado –, nem tampouco o neoliberalismo acabou”. Nessas condições, o Estado age tal qual um “médico acionado quando o capitalismo sofre doenças”.

Reflexos

A crise abre cenários distintos nas várias partes do mundo. Barack Obama assume a Casa Branca para enfrentar não só a crise econômica – mas também os impasses de duas guerras abertas e não-resolvidas. Com uma vantagem, brinca Emir: “É praticamente o único país com iniciação política no mundo: ele faz a guerra e também inicia as negociações de paz”. Na geopolítica, o tom do discurso muda – com Cuba e Irã, por exemplo.

Por outro lado, Emir Sader sustenta que “a crise revela a falência da Europa como conglomerado autônomo. Em tese, se era para ter uma moeda alternativa agora, seria o euro”. Mas, ao contrário, as ideias da direita voltam com força no Velho Mundo, e o continente se comporta como um “aliado subordinado dos Estados Unidos”.

Num mundo dominado pelo “monopólio das armas, do dinheiro e das palavras”, há brutais “guerras humanitárias” seguidas de intervenções políticas. É um “braço imperialista renovado na época unipolar”. Por isso, afirma Emir, iniciativas como a Unasul (União de Nações Sul-Americanas) são importantes.

O “novo tempo” da América Latina possibilitou que a resolução do conflito entre Colômbia e Equador tenha ocorrido “no nosso âmbito”, sem o arbítrio dos Estados Unidos ou da ONU. O continente reage. “É extraordinário ver que o primeiro país a romper formalmente com Israel foi a Bolívia, num gesto de solidariedade baseada em seus próprios princípios.”

Saídas

Para a economia brasileira, a crise é um teste. “Estamos pagando um preço caro”, afirma Emir. Além de queda da demanda externa e, consequentemente, da exportação, houve um refluxo dos créditos. Na opinião do professor, o governo precisa “encampar a luta contra o monopólio da hegemonia neoliberal”, diversificar ainda mais o comércio internacional e aumentar o peso do mercado interno, taxando o capital externo.

“Lula manteve a hegemonia do capital financeiro e a autonomia do Banco Central, ainda que tenha retomado o papel do desenvolvimento. Sem abandonar a conciliação, a aliança de classes, sem deixar de ser parêntesis do modelo internacional, o governo Lula não será alternativa de um novo modelo”, criticou Emir. A seu ver, é preciso resistir ainda à precarização e à alienação do trabalho, voltando também a estimular a sindicalização. “Mesmo o Fórum Social Mundial nunca vai avançar muito se tiver só o tema da cidadania e não tratar do trabalho”.

Sobre a nefasta atuação da mídia na América Latina, Emir Sader opina que há “um único jornal bom” – o diário mexicano La Jornada, que tem oito edições regionais. “O Página 12, da Argentina, é bom, mas é um jornal pequeno.”. O Brasil, por sua vez, padece de um governo que, na área de comunicação, “não fez quase nada – apenas diversificou um pouco a distribuição de publicidade”. A TV Brasil, na sua opinião, “é um fracasso”.

“Teremos as heranças das transformações que o Lula fez e das que ele não fez”, sintetiza Emir. Além de “quebrar a hegemonia do capital financeiro”, o Brasil, “país mais desigual do continente mais desigual”, tem adotar “um modelo de desenvolvimento agrário que prescinda do agronegócio”.

Outra prioridade, segundo Emir, é “construir uma opinião pública alternativa – pela internet, com os blogs, mas também democratizando a comunicação, a TV, o lazer”. A maior dificuldade, diz ele, “é convencer as massas de que nossa utopia é a justiça social”. Seria uma resposta ao “individualismo brutal”, que leva as pessoas a pensarem apenas numa coisa: “O que vai acontecer comigo?”.

De São Paulo, André Cintra

Publicado no site da Fundação Maurício Grabois em 20/6/2009