Giuseppe Coco: Crise, Multidão e Império. Uma entrevista
No dia 13/5, o professor Giuseppe Cocco participou do Seminário Crise, políticas públicas e transferência de renda, promovido pelo Curso de Serviço Social da Unisinos em parceria com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Convidado pelo IHU, ele proferiu também a conferência “O Império e a Multidão no contexto da crise atual”.
Na ocasião ele concedeu a entrevista que segue à IHU On-Line, na qual declarou que “a crise mostra, por enquanto, em primeiro lugar, que não é verdade que a contradição do capitalismo global seria o fato de ter uma esfera financeira irracional, fictícia, e uma esfera real. Ao contrário. Há uma única economia, um único capitalismo, do qual as finanças são a forma fundamental. Uma vez que elas entram em crise, o que está em crise é o capitalismo”.
Giuseppe Cocco é graduado em Ciências Políticas, pela Università degli Studi di Padova e pela Université de Paris VIII. Cursou mestrado e doutorado em História Social, pela Université de Paris I. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o pesquisador é membro do corpo editorial da revista francesa Multitudes, das revistas Lugar comum e Global Brasil. Também é autor de diversos livros, entre os quais citamos Trabalho e cidadania – Produção e direitos na era da globalização (São Paulo: Editora Cortez, 2000) e Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005), este último em parceria com Antonio Negri.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Para entendermos os conceitos de Multidão e Império, o senhor pode nos contar um pouco da história da esquerda política na Itália?
Giuseppe Cocco – Mais do que a história da esquerda na Itália – que seria longa -, vou falar mais especificamente sobre uma parte dela, que diz respeito à genealogia da formulação destes dois conceitos de Multidão e Império. O mais antigo é o de Multidão, apesar do conceito de Império também já ser antigo e estar aplicado ao mundo e capitalismo contemporâneos, e às formas de soberania que caracterizam a globalização. Estamos falando de dois conceitos usados pelo militante, filósofo e cientista social Antonio Negri, que participava de uma corrente de pensamento desde os anos 1960, na Itália, chamada operaísmo.
Trata-se de uma experiência exclusivamente italiana, e que, nos final dos anos 1950 e início dos anos 1960, trabalhava a renovação do marxismo diante dos impasses do segundo pós-guerra para o movimento operário e para a esquerda. As figuras mais conhecidas desta corrente de pensamento são o próprio Negri, o cientista político romano, ligado ao Partido Comunista, Mario Tronti, que é vivo ainda, e um outro, que era o animador inicialmente, Raniero Panzieri. Eles faziam uma revista que se chamava Quaderni Rossi (Cadernos Vermelhos), e depois a Classe Operária.
O intuito dessa reflexão neomarxista, era fazer uma releitura de Marx e promover um debate sobre as transformações do capitalismo, que se tornaram hegemônicas em função da saída da crise dos anos 1930, e da forma que o desenvolvimento tomava nos países do mundo todo no segundo pós-guerra. A proposta deste tipo de abordagem era, fundamentalmente, radicalizar alguns dos elementos que já estavam em Marx no mérito da crítica do capitalismo. Ou seja: analisar o capital como uma relação de forças, de força contra força, e, deste ponto de vista, assumir a dualidade substancial do capitalismo. Isso significa que o capitalismo encontra a sua dinâmica, a sua pujança, o seu próprio desenvolvimento em algo que contém, mas é potencialmente o seu limite: o trabalho operário. A fonte de todo o desenvolvimento, de toda a inovação, não está do lado do capital, mas do lado do trabalho. Isso implicou, naquele momento, em trabalhar os conceitos de classe operária, em termos de composição técnica e recomposição política. E, portanto, em função dessa composição, implicou trabalhar, primeiro, a determinação operária do desenvolvimento do capital (e, portanto, o keynesianismo, o fordismo, o americanismo como algo determinado pelas lutas operárias); nesse sentido, quanto mais lutas, mais desenvolvimento.
E o segundo elemento é o fato de que essas lutas não eram sempre iguais. Em função da composição técnica da classe (quer dizer do paradigma vigente do trabalho), elas tinham características diferentes. Se o americanismo e o fordismo constituíam sempre um regime de acumulação capitalista, esse regime se diferenciava dos outros e essa diferença estava justamente na composição técnica do trabalho, quer dizer na nova composição técnica do operariado e, pois, de suas lutas. Naquele momento, essa queria ser uma resposta aos impasses nos quais se encontravam a esquerda e os sindicatos italianos no segundo pós-guerra, diante da chegada e difusão dos métodos tayloristas. Os sindicatos ainda faziam referência a um tipo de operariado que já não existia mais em função da introdução do taylorismo. Esse operariado tinha sido o sujeito social do grande ciclo de lutas que teve seu auge na revolução soviética e na revolução alemã. Sua composição técnica era de alta qualificação profissional ao passo que sua recomposição política se fazia nas lutas pelo poder sobre os meios de produção.
Com o taylorismo, ao contrário, tínhamos um operariado massificado, sem alta qualificação técnica, vindo do campo ou das migrações internas e externas, recém-chegado aos grandes polos de industrialização. Seu terreno de recomposição política não era mais a articulação de luta econômica e luta política para traduzir em nível estatal seu poder sobre a produção, mas a luta salarial e a recusa do trabalho. A luta econômica já continha a luta política. Havia uma outra composição técnica, e os processos de composição política se determinavam em termos diferentes. Esse era o trabalho inicial desses teóricos e militantes neo-marxistas, os operaistas italianos. O livro de César Altamira, Os marxismos do novo século (Civilização Brasileira, 2008), faz uma boa apresentação dessa história .
E os conceitos de Império e Multidão. Como se chegou a eles?
Os operaistas italianos tinham previsto as condições e as dinâmicas de luta, organização e movimento, que iam se afirmar com o Maio de 68, e sobretudo no caso italiano um grande ciclo de lutas operárias autônomas (por fora das organizações sindicais), conhecido como o Autunno caldo (Outono de 69). Dentro desse momento, em 1970, o operaismo de divide em duas vertentes: uma é aquela do Tronti (o Raniero Panzieri já havia falecido) e de outros que assumem essa dinâmica operária dentro de uma perspectiva de forte reformismo e de renovação poderíamos dizer “operaista” do sindicato e do Partido Comunista. A outra é a do grupo do Negri que, ao contrário, irá trabalhar a proposta de um novo tipo de organização, chamada autonomia operária, que negaria a clivagem entre luta operária e organização política, entre sindicato e partido. A temática da autonomia operária, ao mesmo tempo, visava tanto uma crítica do reformismo quanto uma crítica da própria forma de partido, de toda e qualquer representação.
Portanto, colocava a perspectiva da organização num terreno horizontal, de participação horizontal. A autonomia operária já se organizava em rede. Não era uma organização, mas um movimento, uma constelação de grupos, assembleias autônomas e coletivoa, que, espalhadas nas metrópoles e entre as metrópoles, irão formar um movimento muito forte, cujo auge se deu em 1977. Ao mesmo tempo, os anos 1970 eram também o palco de uma grande reestruturação industrial, que começa com a descentralizacão produtiva (o uso das redes de fornecedores), da desverticalização das grandes fábricas fordistas, e dos primeiros investimentos em automação, com o uso da eletrônica e da robótica.
Assim, nos meados dos anos 1970, essa fase expansiva do operário/massa taylorista começa a entrar em crise. E, diante de nós, tínhamos uma multiplicação de atividades produtivas difusas no território. Ou seja, a produção se reorganizava, automatizando-se e indo para o território, respondendo, nesse sentido, a uma reivindicação, que estava dentro da crítica da organização do trabalho e da prática da recusa do trabalho fabril alienado, taylorista. Ao mesmo tempo, começava a fragmentação da relação salarial, rompiam-se os grandes coletivos, as grandes concentrações homogêneas de operariado industrial. Então, o que se observa, em meados dos anos 1970, é justamente o fato de que não havia mais essa co-relação entre a grande homogeneização capitalista das forças do trabalho e os grandes processos de homogeneização dos movimentos.
A primeira tentativa teórica, que o próprio Negri lançou, foi a de falar não mais de um operário/massa, tipo fabril, mas de um operário social. Só que com o operário social ainda havia uma visão da composição de classe como algo de homogêneo. A socialização do trabalho continuava de uma certa maneira a ser relacionada à condição operária. A relação salarial era ultrapassada e paradoxalmente mantinha-se como referencial sociológico. A década de 1970 se fecha com a derrota social do movimento, agravada pelas conseqüências judiciárias da espiral de repressão e ações armadas.
E é justamente nessa época que Negri, a partir de suas leituras de Spinoza bem como das leituras de Spinoza feitas por Deleuze, recupera este conceito de massas enquanto Multidão. E é algo que irá amadurecer em seguida, com várias contribuições, inclusive de Paolo Virno. O conceito de Multidão será aplicado a uma renovação política e sociológica do que chamamos em italiano de inchiesta (pesquisa-ação), ou seja, é uma tentativa de renovar a análise crítica da composição de classes. Não mais procurando os elementos de homogeneidade, mas começando a pensar em uma multiplicidade de sujeitos. Ou uma multiplicidade de figuras produtivas, sociais, que estão dentro e fora da fábrica, dentro e fora da relação salarial, dentro e fora da modernidade, constituída por operários, mulheres, jovens, desempregados, imigrantes estrangeiros, indígenas.
E o conceito de Império veio mais adiante?
Sim. Havia esse conceito de Multidão implicando, por um lado, na radicalização da experiência da autonomia e, por outro lado, precisava de esforço teórico que depois irá se desenvolver em termos sociológicos com as análises sobre a centralidade do trabalho vivo. Isso será desenvolvido, sobretudo, com as reflexões sobre o pós-fordismo, o trabalho imaterial das quais participaram também Maurizio Lazzarato, Paolo Virno e Christian Marazzi. Como já afirmei acima, a primeira metade dos anos 1980, para essa geração de Negri, é o período da derrota: prisão, exílio, processos e crise geral dos movimentos (Aliás, falando nele, há referências sobre isso no livro sobre Jó (Jó. A força do escravo – Rio de Janeiro: Record, 2007), no início, quando ele fala do sofrimento, da prisão, e como ele trabalha o próprio sofrimento como ponto de partida para repensar a potência da liberdade).
Na segunda metade dos anos 1980, a reflexão amadurece, inclusive em função do ambiente teórico francês: em particular com a filosofia de Deleuze e Guattari e de Michel Foucault, mas, também, no que diz respeito à heterodoxia econômica, pelo dialogo critico com a “escola da regulação” de Aglietta e Boyer. E, no final dos anos 1990, há uma série de eventos que marca o auge da hegemonia neoliberal como a ideologia de um novo regime de acumulação que se caracteriza como global no espaço e no tempo. No espaço, porque envolve o planeta como um todo; e no tempo, porque investe a vida.
Este capitalismo global passa por dois eventos fundamentais que o caracterizam. O primeiro é a queda do muro de Berlim, portanto, a queda oficial da organização hierárquica do mundo que caracterizava o período industrial, entre o Primeiro, o Segundo e o Terceiro mundos, e essa relação entre centro e periferia, que caracterizava a competição entre os dois imperialismos (o soviético e o americano). Ao mesmo tempo, ia por água abaixo a perspectiva desenvolvimentista que devia levar o Terceiro Mundo em direção a um dos centros. A queda do muro de Berlim “homogeneíza” o mundo, no sentido em que o subsume dentro de uma única realidade.
Ela corresponde a uma comemoração emblemática, pois era o bicentenário da Revolução Francesa (1789-1989). As comemorações da Revolução Francesa deram todo o espaço à ideologia do fim da história (Fukuyama), sustentada pelo revisionismo histórico de François Furet que dizia que a revolução tinha terminado, se é que ela efetivamente existiu. Então, o primeiro elemento é que a globalização faz desmoronar os muros, as separações entre os modelos alternativos, e se afirma como o fim da história, um horizonte totalizador no espaço, no tempo, que não deixa nenhuma alternativa. A queda do muro de Berlim aparece como a queda de qualquer alternativa. E o outro grande evento é a primeira Guerra do Golfo, em 1990-1991.
Se o livro Poder Constituinte (Rio de Janeiro: Record, 2006) foi como que uma resposta ao revisionismo que negava a existência e o papel da revolução, ele já era um pouco o embrião do Império. Se o poder constituinte era uma afirmação teórica e política da impossibilidade de acabar (termidorizar, poderíamos dizer) a revolução, a proposta de Império era definir um outro campo, um outro contexto de luta, não mais o imperialismo, mas o imperial, como o espaço de um novo tipo de lutas e alternativas.
Todos falavam da queda do império soviético, da crise dos imperialismos, do fim das grandes narrativas e, então, apareceu essa nova proposta de império: um não lugar sem fora. É dentro deste Império, que tem como dinâmica o capitalismo global, pós-fordista, que aparece uma nova contradição, interna. No Império e em sua soberania supranacional, nós temos a monarquia militar norte-americana, a aristocracia das instâncias supranacionais de governança da globalização (que são a OMC, o FMI, Banco Mundial, Nações Unidas, OMS e as grandes empresas multinacionais), além de termos a democracia dos movimentos. O conceito de Império vem propor um novo âmbito de lutas, dizendo que isso não tem nenhuma relação com o fim da história, mas sim, por um lado, com a definição de um novo campo de contradição entre a construção aristocrática por parte do capital global, apoiado no poderio militar norte-americano, de uma soberania supranacional, e, por outro, com uma radicalização democrática, que vem dos movimentos e da composição de um novo tipo de trabalho. Foi uma bela antecipação do movimento de Seattle e Genova, bem como dos Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre.
Como esses conceitos se aplicam neste contexto de crise atual?
A crise mostra, por enquanto, em primeiro lugar, que não é verdade que a contradição do capitalismo global seria o fato de ter uma esfera financeira irracional, fictícia, e uma esfera real. Ao contrário. Há uma única economia, um único capitalismo, do qual as finanças são a forma fundamental. Uma vez que elas entram em crise, o que está em crise é o capitalismo. Por isso podemos falar de crise sistêmica. Não existe uma economia real que se sairia melhor do que isso. A segunda consideração é que, quando analisamos o que acontece em termos de tentativas dos governos, passando pelos Estados Unidos, a China, a Europa e o próprio Brasil, de definir políticas de saída da crise, vemos que aparece com clareza o fato de que elas precisam ser globais. Ou seja, isso se dá no âmbito do Império. O que o período do governo de George W. Bush parecia indicar como um império norte-americano, algo como um imperialismo hegemônico sem competidores, eu acho que a crise e também a eleição de Obama desmentem. O novo presidente norte-americano representa uma reafirmação da dimensão multipolar do Império. E a reunião do G-20, com o protagonismo do Brasil e da presidência Lula, é uma confirmação do Império como um espaço aberto, supranacional, não mais imperialista: claro, os Estados Unidos e o dólar continuam desempenhando um papel unico, no entanto, a meu ver, as teses fundamentais são confirmadas. Aliás,já podemos entrever a redefinição possível dos elementos de hierarquia da divisão internacional do trabalho que caracterizaram a primeira fase da globalização. O próprio processo de integração sul-americana, governado por essa geração de governos progressistas, é uma grande confirmação desse horizonte: a globalização é um espaço também de radicalização democrática.
No que diz respeito à Multidão, quando pensamos nos movimentos e no que acontece dentro da crise, percebemos que toda uma série de novos desafios está sendo colocada. A crise se transforma em um aumento impressionante do desemprego, da pobreza, e quem está pagando pela crise são os pobres, os trabalhadores. Ao mesmo tempo, não vemos uma pujança de propostas por parte das organizações tradicionais. E aqui falo dos sindicatos e da esquerda sobretudo dos países centrais. No caso do Brasil, da América do Sul, a situação é mais interessante do ponto de vista dos movimentos, inclusive dos partidos de esquerda. Mas, nos países centrais, estamos assistindo a um contínuo declínio da esquerda institucional, social-democrática e à incapacidade de reconstruir um terreno de luta a partir de uma perspectiva meramente operária, de um sujeito homogêneo. Nós precisamos de uma teoria e de uma política da multiplicidade, sem isso, diante dessa diversidade que constitui o social hoje, ficamos paralisados. O conceito de Multidão, articulado com o de trabalho imaterial, é importante e me parece o mais adequado.
A proposta política e teórica de Negri e Michael Hardt é na realidade a de reconstruir uma grande narrativa alternativa, a grande narrativa dos possíveis, por isso eles propuseram um tripé: Império, Multidão e Comum. O terceiro pé sairá em breve publicado. Esse tripé é: uma análise crítica da nova soberania (o Império); uma análise da produção da subjetividade (Multidão); e agora uma proposta alternativa, que vai se chamar commonwealth (Comum), que quer dizer a tentativa de definir um horizonte alternativo, pós-capitalista e anticapitalista ao mesmo tempo.