A presente crise mundial colocou a esquerda diante de desafios inesperados. A hegemonia do capital norte-americano e europeu e do neoliberalismo entrou em crise e declínio em virtude de suas próprias contradições, o que muitos supunham impossível. O capital dos países ricos teve que voltar a apelar para a ação do Estado, em seu socorro, algo impensável para não poucos. E o comunismo e o socialismo, dados como mortos, voltaram, como espectros, a atormentar o sono dos donos do capital.

Apesar disso, as coisas no Brasil ainda parecem envoltas nos mantos da confusão ideológica. A ultra-esquerda considera que o simples fato de a esquerda participar de um governo de coalizão, que inclui também forças de centro e de direita, já é sinônimo de traição às forças populares e socialistas, tornando-a incapaz de apontar algum tipo de perspectiva socialista. As alas moderadas da esquerda, por seu turno, parecem contentar-se com a vitória que significa estar no governo.

As primeiras transformaram em dogma a idéia de as que rupturas são inevitáveis e possíveis sem qualquer mediação tática. As segundas transformaram em dogma a idéia de que as rupturas são totalmente desnecessárias. Umas querem alcançar o socialismo sem qualquer reforma democrática no capitalismo. Outras rebaixam o socialismo a qualquer reforma democrática.

Tomemos o exemplo de um possível pacto privilegiado das estatais com os pequenos capitais privados, promovido pelo Estado. Esta seria uma reforma sem necessidade de decretos. Poderia democratizar a propriedade, sem aniquilar o setor corporativo. Porém, para ter efetividade, teria que romper com o domínio oligopolista exercido pelas corporações empresariais. Seria uma reforma democrática no capitalismo.

Tal democratização capitalista possibilitaria o ressurgimento da classe trabalhadora assalariada, base principal da luta socialista, porque as pequenas empresas capitalistas, no atual estágio tecnológico, são os únicos empreendimentos que ainda empregam muita mão-de-obra. Se considerarmos uma reforma desse tipo ocorrendo no momento em que a perspectiva socialista desponta novamente no horizonte da América Latina, podemos supor o que ela significa, como ameaça, para as corporações capitalistas e seus representantes sociais e políticos.

O ressurgimento de uma ampla classe trabalhadora assalariada no Brasil, como força social ativa, pode carregar junto consigo o renascimento da combatividade operária. E a materialização dessa hipótese exercerá uma forte influência sobre as tendências econômicas, sociais e políticas do país e da América Latina numa perspectiva socialista. O que nos impõe avaliar com mais acuidade a relação entre reformas democráticas e socialismo.

Em tempos normais, um pacto privilegiado dos capitais estatais com os pequenos capitais poderia levar as corporações empresariais a recorrer a ações desestabilizadoras. É sempre difícil a elas suportarem reformas democráticas que ameacem seu status quo econômico. Talvez, temendo isso, alguns setores da esquerda prefiram o pacto das estatais com as corporações capitalistas. Afinal, este também pode permitir o crescimento econômico. Assim, para evitar o risco das escolhas democráticas, preferem curvar-se ao risco das escolhas conservadoras.

Por outro lado, a crise mundial desarvorou as corporações, fez com que elas colocassem a nu seu medo ao risco, adiassem suas perspectivas de investimentos e, portanto, as incapacitassem a ajudar na superação da crise, mesmo com o Estado lhes oferecendo vantagens. Social e politicamente, colocou-as na defensiva. O que possibilita às forças populares e democráticas pressionarem o governo a privilegiar o pacto das estatais com as pequenas empresas capitalistas. Porém, como esta não é uma questão clara na estratégia das forças políticas de esquerda, talvez não passe de mais uma oportunidade perdida de correr o risco de escolhas democráticas.

*Wladimir Pomar é escritor e analista político.