José Luís Fiori: A esquerda e a crise
A esquerda keynesiana interpreta de forma mais ou menos consensual, a nova crise econômica mundial que começou no mercado imobiliário americano, e se alastrou pelas veias abertas da globalização financeira. Seguindo o argumento clássico de Hyman Minsky[1], sobre a tendência endógena das economias monetárias à “instabilidade financeira”, às bolhas especulativas e à períodos de desorganização e caos provocados pela expansão desregulada do crédito e do endividamento, quando se faz inevitável a intervenção publica e o redesenho das instituições financeiras[2], sem que isto ameace a sobrevivência do próprio capitalismo. Por isto, apesar de suas divergências a respeito de valores, procedimentos e velocidades, todos os keynesianos acreditam na eficácia, e propõem, neste momento, uma intervenção massiva do estado, para salvar o sistema financeiro e reativar o crédito, a produção e a demanda efetiva das principais economias capitalistas do mundo[3]. No caso da esquerda marxista, entretanto, não existe uma interpretação consensual da crise, nem existe acordo sobre os caminhos do futuro. Alguns seguem uma linha próxima da escola keynesiana, e privilegiam a financierização capitalista como causa da crise atual, enquanto outros seguem a linha clássica da teoria da “sobre-produção”, do “sub-consumo”[4], e da “tendência ao declínio da taxa de lucros”[5]. E ainda existe uma esquerda pós-moderna que interpreta a crise atual, como resultado combinado de tudo isto e mais uma série de determinações ecológicas, demográficas, alimentares e energéticas. Do ponto de vista propositivo, alguns marxistas acreditam na eficácia de uma solução “keynesiana” radicalizada[6], outros acham que chegou a hora do socialismo[7], e muitos consideram que acabou o capitalismo e a modernidade e só cabe lutar por uma nova forma de globalização solidária, onde as relações sociais sejam desmercantilizadas, e o produto social seja devolvido aos seus produtores diretos[8]. Numa linha diferente, se colocam os autores neo-marxistas que associam as crises econômicas capitalistas, com o que chamam de ciclos e crises hegemônicas mundiais, que envolvem – além da economia – as relações globais de poder[9]. Estas teorias lêem a história do sistema mundial como uma sucessão de ciclos hegemônicos, uma espécie de ciclos biológicos dos estados e das economias nacionais que nascem, crescem, dominam o mundo e depois decaem e são substituídos por um novo estado e uma nova economia nacional que percorreria o mesmo ciclo anterior até chegar à sua própria hora da decadência. Neste momento, a maioria destes autores consideram que a crise econômica atual é uma parte decisiva da “crise da hegemonia” dos EUA, que deverão ser substituídos por uma novo centro de poder e acumulação mundial de capital, que provavelmente está situado na China.
Do nosso ponto de vista, entretanto, a melhor maneira de pensar o “sistema inter-estatal capitalista”, que se formou a partir da expansão européia do século XVI, não é através de uma metáfora biológica, e sim cosmológica, olhando para o sistema como se ele fosse um “universo em expansão” contínua. Com um núcleo central formado pelos estados e economias nacionais que lutam pelo “poder global”, que são inseparáveis, complementares e competitivos e que estão em permanente preparação para a guerra, uma guerra futura e eventual, que talvez nunca ocorra, e que não é necessário que venha a ocorrer[10]. Por isto, os estados e economias que compõem o sistema inter-estatal capitalista estão sempre criando, ao mesmo tempo, ordem e desordem, expansão e crise, paz e guerra. E as potencias que uma vez ocupam a posição de liderança, não desaparecem, nem são derrotadas por seu “sucessor”. Elas permanecem e tendem a se fundir com as forças ascendentes, criando blocos político-econômicos cada vez mais poderosos como aconteceu, por exemplo, no caso da “sucessão” da Holanda pela Grã Bretanha, e desta, pelos Estados Unidos, que significou de fato um alargamento sucessivo das fronteiras do poder anglo-saxônico. Não existe ainda nenhuma teoria que dê conta das relações entre as crises econômicas e as transformações geopolíticas do sistema mundial. Mas o que já está claro faz muito tempo é que dentro do sistema inter-estatal capitalista, as crises econômicas e as guerras não são, necessariamente, um anuncio do “fim” ou do “colapso” dos estados e das economias envolvidas. Pelo contrário, na maioria das vezes fazem parte de um mecanismo essencial da acumulação do poder e da riqueza dos estados mais fortes envolvidos na origem e na dinâmica destas grandes turbulências. Agora bem, do nosso ponto de vista, as crises e guerras que estão em curso neste inicio do século XXI ainda fazem parte de uma transformação estrutural, de longo prazo, que começou na década de 1970 e provocou uma “explosão expansiva” e um grande aumento da “pressão competitiva” interna, dentro do sistema mundial. Esta transformação estrutural em curso começou na década de 70, exatamente no momento em que se começou a falar de “crise da hegemonia americana”, e de início da “crise terminal” do poder americano. E no entanto, foi a resposta que os EUA deram à sua própria crise que acabou provocando esta transformação de longo prazo da economia e da política mundial que está em pleno curso. Basta dizer que foram estas mudanças lideradas pelos EUA que trouxeram de volta ao sistema mundial, depois de 1991, as duas velhas potências do século XIX, a Alemanha e a Rússia, além de incluir dentro do sistema, a China, a Índia, e quase todos os principais concorrentes dos Estados Unidos, deste início de século. Neste sentido, aliás, a “crise de liderança” dos Estados Unidos, depois de 2003, serviu apenas para dar uma maior visibilidade a este processo que se acelerou depois do fim da Guerra Fria, já agora com novas e velhas potencias regionais atuando de forma cada vez mais “desembaraçada”, na defesa dos seus interesses nacionais e na reivindicação de suas “zonas de influencia”.
Do ponto de vista do sistema inter-estatal capitalista, esta dinâmica contraditória significa que os EUA ainda estão liderando as transformações estruturais do próprio sistema. A política expansiva dos EUA, desde 1970 ativou e aprofundou as contradições do sistema, derrubou instituições e regras, fez guerras e acabou fortalecendo os estados e as economias que hoje estão disputando com eles, as supremacias regionais, ao redor do mundo. Mas ao mesmo tempo, estas mesmas competições e guerras, cumpriram e seguem cumprindo um papel decisivo, na reprodução e na acumulação do poder e do capital norte-americano, que também necessita manter-se em estado de tensão permanente, para reproduzir sua posição, no topo da hierarquia mundial. O fundamental, no fim de cada uma destas grandes tormentas é saber quem ficou com o controle da moeda internacional, dos mercados financeiros, e da inovação tecnológico-militar de ponta.
Notas:
[1] Minsky, P.H.(1975) “The Modeling of Financial Instability: An introduction”, 1974, “Modelling and Simulation”. John Maynard Keynes, 1975, e “The Financial Instability Hypothesis: A restatement”, 1978, Thames Papers on Political Economy.
[2] Wade, R. (2008) , “A new global financial architeture”, in New Left, n53, set/out.
[3] Ferrari, F. e Paula, L.F. (2008), Dossiê da Crise, Associação Keynesiana Brasileira, UFRGS.
[4] Oliveira, F. (2009), “Vargas redefiniu o país na crise de 30”, in www. cartamaior.com.br, 6/01/2009.
[5] Brenner, R. (2008)”O princípio de uma crise devastadora”, in Against the Current, fev 2008.
[6] Tavares, M.C. (2008), “Entupiu o sistema circulatório do sistema do capitalismo”, in www.cartamaior.com.br13/11/2008 e Belluzzo,L.G. (2008) “Cortar gasto publico?”, www.cartamaior.com.br. 13/11/2008.
[7] Amin, S. (2008). “There is no alternative to socialism”, in Indian’s National Magazine, vol 25, issue 26, de 20/12/2008 e Meszaros, I. (2009) “A maior crise na história humana”, in www.cartamaior.com.br, 07/02/2009.
[8] Wallerstein, I. (2008) “Depressão, uma visão de longa duração”, in www.cartamaior.com.br, 13/11/2008.
[9] Arrighi, G. (2008) “A hegemonia em cheque”, in www.cartamaior.com.br, 19/06/2008.
[10] Este argumento está desenvolvido em J.L.Fiori “O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações” , Editora Boitempo, São Paulo, 2007, e no artigo “O sistema inter-estatal capitalista, no início do Século XXI”, in J.L.Fiori, C.Medeiros e F.Serrano, “O Mito do Colapso do Poder Americano”, Editora Record, Rio de Janeiro 2008.
[11] Serrano, F. (2008) “A economia Americana, o padrão “dólar-flexível” e a expansão mundial nos anos 2000”, in J.L Fiori, F. Serrano e C. Medeiros, O MITO DO COLAPSO DO PODER AMERICANO, Editora Record, Rio de Janeiro.