Uma das edições do principal jornal de economia do país, Valor Econômico, trouxe no início de março nada menos que 15 manchetes e títulos com a palavra “crise”. Era “crise” para todo lado, quando havia e quando não havia. “Teles lucram mais apesar da crise.” Se lucram mais, não há crise para elas, então por que dizer “apesar da crise”? Ou “Mesmo com crise, JBS aposta nos EUA”. Ou ainda: “Contra a crise Volvo investe na AL”. Nessas manchetes, o fato noticiado é a negação da crise, mas o sentido transmitido é de crise.

Manchetes revelam como os editores querem que o leitor receba a notícia. Direcionam o modo de leitura. E muitos leitores ficam só nas manchetes. Imagine o empresário lendo essa edição do Valor. Depois de a palavra “crise” tanto martelar sua cabeça, imediatamente manda rever os investimentos, cortar gastos e horas extras.

É o “espírito animal” do capitalista, como dizia o maior economista moderno, John Maynard Keynes, que considerava essa reação psicológica dos empresários, embora irracional, decisiva na determinação dos altos e baixos da economia. Foi assim, muito provavelmente, que se deu a repentina queda do PIB no último trimestre do ano passado, puxada que foi por corte nos investimentos e nas horas trabalhadas.

A palavra “crise” virou o que o filósofo francês Roland Barthes chamou de “mito”, não no sentido de lenda, e sim como um conjunto de significações que vão além da própria palavra. Nosso empresário pensou imediatamente em queda brutal nas encomendas, atrasos nos pagamentos, necessidade de agir rápido para evitar o fim de sua querida firma. O fim do seu mundo. O fim do mundo. A narrativa da crise virou a narrativa do fim do mundo. “Crise” tornou-se obsessão linguística e editorial. Editores destacam toda informação que corrobore o estado de crise e escasseiam as que negam ou confrontam esse estado.

Já no início, a mídia referenciou-se na crise de 1929 – tomada por economistas como o precedente do que está acontecendo –, a qual recebeu na história econômica o nome especial de “depressão”, reservado apenas para esse episódio, assim como “holocausto” é designação exclusiva de um outro fim de mundo. A crise de 29 foi realmente um fim de mundo. O fim do american dream, o sonho de que na América todos teriam trabalho e uma oportunidade na vida. No pico da depressão, o desemprego chegou a 30% da força de trabalho e nem por um prato de comida havia emprego. Assim nasceu a narrativa mítica desta crise, como reprise de uma história que já havia virado lenda.

Em dezembro o catastrofismo da mídia inglesa chegou a tal ponto que a Confederação das Indústrias Britânicas acusou formalmente a mídia de realimentar a crise difundindo previsões alarmistas não fundamentadas e relacionando empresas sólidas a outras em dificuldades. A narrativa foi se mostrando útil como fuga dos fatores estruturais do colapso financeiro, do fato de seu epicentro ser o sistema econômico anglo-saxão, não a Ásia ou a periferia do capitalismo, apenas depois se irradiando para grande parte do sistema. Chamá-la de “crise global”, como se fosse de todo o planeta, ajudou a ofuscar sua relação com o financiamento das guerras imperiais americanas através do alto endividamento e, principalmente, com o modelo neoliberal.

O colapso dos bancos foi tratado como fruto de anomalias, desvios passíveis de ser corrigidos. Hoje, o fio condutor já é a catástrofe em si mesma, como se ela fosse um desastre natural, e não o resultado da ação humana. Assim, a queda num setor acaba sendo explicada pela queda em outro.

A torcida e sua causa
A narrativa mítica expressa a ruptura no raciocínio lógico que teria de relacionar os fatores causadores do colapso dos bancos e do crédito à solução da estatização e à redefinição do sistema financeiro como um serviço de utilidade pública. Soluções em colisão frontal com os interesses do grande capital financeiro. Entre nós esse processo foi muito além: a mídia brasileira, em vez de abandonar o discurso neoliberal da austeridade fiscal e superávit primário e defender as políticas anticíclicas adotadas por Lula, como mandava a severidade da crise, passou a “torcer” pelo desastre. Motivos?

Muitos. Entre eles: o objetivo político, de classe, de acabar com a era Lula; o interesse estratégico do empresariado de alterar as relações de produção, extinguindo direitos trabalhistas; o interesse do agronegócio em rolar mais uma vez a gigantesca dívida que nunca paga; o interesse próprio da mídia em derrubar o índice de aprovação de Lula, que vem desmoralizando seus colunistas e editorialistas.

Na Folha de S.Paulo essa torcida é ostensiva, como observou seu ombudsman ao criticar a manchete de 11 de março, “Queda do PIB no Brasil é uma das piores do mundo”. Disse o ombudsman: “Na capa do jornal e nos locais de destaque insistiu-se na tese de que, por seu PIB ter tomado um dos maiores tombos entre as 37 nações listadas, o Brasil está entre os principais atingidos pela crise. Não é bem assim. Foi porque o país cresceu mais do que os outros no ano inteiro que o contraste entre o quarto e o terceiro trimestre de 2008 foi tão intenso”. Assim, o jornalismo econômico abandonou o modo triunfalista, que remetia à ideia da modernidade e da pujança. Em seu lugar entrou a profecia do fim do crescimento econômico, do fim das exportações, do fim do emprego, do fim do mundo.

Essa nova narrativa busca o enfoque mais negativo possível. Em janeiro, por exemplo, depois de três meses de declínio, a produção da indústria brasileira cresceu 2,3%, mas a assustadora manchete de primeira página da Folha, “Indústria tem a maior queda em 19 anos”, privilegiou a comparação com janeiro de 2008, e não com o mês anterior. No caderno de economia a manchete foi “Indústria tem o pior resultado desde Collor”. Também nesse caso, observou o ombudsman do jornal, a assertiva é falsa, já que a produção hoje é de qualquer forma muito maior do que na era Collor. A mesma frase, palavra por palavra, aparece na primeira página de O Globo, editado em outra cidade e por outra empresa, como se houvesse um “supereditor” orientando os dois jornais.

Na narrativa do fim do mundo, os editores escolhem de um conjunto de dados estatísticos o pior. Na mesma edição a Folha superou-se na arte da deformação do sentido dos fatos ao noticiar: “Queda do petróleo reduz lucro da Petrobras”. O lucro de 2008 anunciado pela Petrobras, R$ 33,9 bilhões, foi recorde de todos os tempos. O truque foi considerar o lucro do quarto trimestre, que, como reforçou O Globo em sua manchete, foi reduzido em 32% pela crise mundial.

Quando o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central se reunia em Brasília para decidir o corte nos juros, nossos jornais amanheceram anunciando que o fim do mundo havia chegado: “Queda do PIB no Brasil é uma das maiores do mundo” (Folha); “PIB desaba no 4º trimestre e o risco de recessão aumenta” (Estadão). O dado, ignorado pelas manchetes, é o de que o PIB Brasil teve no ano passado um crescimento espetacular de 5,1%, o segundo maior da era Lula.

Mas nada explica, exceto o modo mítico de narrar a crise, as novas manchetes alarmistas, no dia seguinte à decisão do Copom. Como a do Estadão: “Tombo da economia faz BC reduzir juros em 1,5 ponto”. Dias depois, mais uma avalanche de manchetes de sentido negativo, em cima dos dados de queda no emprego da Federação das Indústrias de São Paulo. “Indústrias fecham 237 mil vagas em cinco meses” (Folha), “Crise fecha 236 mil vagas na indústria paulista” (Estadão).

O que os leitores talvez não saibam é que dados da Fiesp raramente eram levados a sério pelos serviços mais especializados, como o Broadcast News (reservado a assinantes da Agência Estado), e nunca pelo Jornal Nacional – por serem malfeitos e muitas vezes manipulados. Mas agora estavam todos lá, dando o maior destaque à narrativa do fim do mundo do corte de vagas. Resta saber quantas dessas vagas foram, e ainda serão, cortadas devido ao alarmismo da própria mídia, devido ao fenômeno da profecia autorrealizada.