“Teorias da Conspiração”: desqualificando os críticos da mídia, por Venício Lima
O debate, ainda relativamente restrito, sobre a mídia e seu papel no Brasil contemporâneo reserva perigosas armadilhas. Parte de uma disputa maior no campo da “batalha das idéias”, ele compreende um leque matizado de opiniões. No fundamental, todavia, não seria incorreto afirmar que duas posições antagônicas são relativamente claras: de um lado, aqueles que sustentam que o principal problema do país está no poder público e que a imprensa, “sensível às necessidades, carências e aspirações da sociedade” é a melhor forma que temos de fiscalização e controle social; de outro, aqueles que defendem o fortalecimento do sistema público de comunicação e criticam a grande mídia por ser oligopolizada, parcial, elitista e vinculada às oligarquias políticas tradicionais; sem pluralidade e diversidade, muito distante de garantir aos cidadãos seu direito à comunicação.
Trata-se de um debate desigual. Os defensores da grande mídia, seus colunistas, possuem uma enorme capacidade de fazer chegar suas posições a amplas parcelas da população, através de jornais, revistas, do rádio e da televisão. Já seus críticos, sem qualquer acesso a ela, se abrigam em publicações eletrônicas de reduzido acesso e alcance comparativo.
O debate se caracteriza também pela utilização, por parte dos defensores da grande mídia, de uma estratégia permanente de desqualificação de seus críticos: um pretenso monopólio moral – nada democrático – como se fossem os únicos defensores dos princípios e valores universais da condenação da censura, da defesa da liberdade de expressão e de uma imprensa livre, independente e plural. Os críticos são, portanto, deslocados, à sua total revelia, para uma posição contrária a esses valores e princípios.
Há ainda outra forma de desqualificação que, apesar de antiga e surrada, continua sendo utilizada: a acusação genérica de que os críticos da grande mídia são adeptos de “teorias conspiratórias”. É essa desqualificação, em particular, que quero discutir aqui.
Teorias da conspiração
Conspiração é um substantivo de origem latina – conspiratione – que significa maquinação, trama; conluio secreto. Muitas teorias chamadas de conspiratórias, a respeito dos mais variados episódios, conquistam credibilidade e circulam amplamente no espaço público. São conhecidas, por exemplo, as que se referem ao assassinato do presidente John F. Kennedy (1963); ao acidente que matou a princesa Diana (1997); aos ataques ao World Trade Center em New York (2001), dentre outras. Existem também teorias que inicialmente foram consideradas conspiratórias e que, com o tempo, se provaram verdadeiras. Um exemplo é o envolvimento do governo dos EUA, especificamente da CIA, no golpe que derrubou o governo democrático de Salvador Allende, no Chile (1973).
Aqueles que acusam os críticos da mídia de adeptos da teoria conspiratória, todavia, não a definem. Associam-na a idéias como intenção oculta, armação, jogada maquiavélica. Ela implicaria que a mídia opera veladamente e de forma articulada, no interesse econômico e político dos grandes grupos que a controlam. Isso significaria, basicamente, que ela não serve ao interesse público e, portanto, não atua com a isenção e a imparcialidade que anuncia.
Registre-se ser inegável que existe uma carga de significação negativa, pejorativa e de desqualificação quando se atribui a alguém ser adepto de uma teoria conspiratória. Talvez, por isso mesmo, essa tem sido uma armadilha poderosa para desqualificar as críticas à mídia, sobretudo, quando são feitas do ponto de vista institucional ou da economia política do setor.
A antecipação da críticaNo clássico de E. S. Herman e N. Chomsky, Manipulação do Público: política e poder econômico no uso da mídia (original: Manufacturing Consent: the political economy of the mass media, 1988), publicado no Brasil em 2003, os autores, mais de 20 anos atrás, antecipando o tipo de crítica que certamente receberiam, escreveram no Prefácio:
Críticas institucionais como as que apresentamos neste livro são comumente descartadas pelos comentaristas do “establishment’ como ‘teorias conspiratórias’, mas isso é apenas uma evasiva. Nós não usamos qualquer tipo de hipótese ‘conspiratória’ para explicar a atuação da mídia. Na verdade, nossa abordagem é muito mais próxima a uma análise mercadológica com resultados provenientes, em grande parte, do funcionamento das forças do mercado. A maior parte das escolhas preconceituosas na mídia decorre da pré-seleção feita por pessoas de pensamento direitista, pré-julgamentos internalizados e da adaptação de jornalistas às restrições dos proprietários, da organização, do mercado e do poder político. Censura é majoritariamente autocensura, de repórteres e comentaristas que se adaptam à realidade das exigências organizacionais da mídia e das fontes; e de pessoas nos altos escalões dentro das organizações de mídia que são escolhidas para implementar – e, geralmente, internalizam – as limitações impostas pelos proprietários e outros centros de poder no mercado e no governo (p. xii; tradução livre do Autor).
Apesar dessa advertência, dez anos depois, em capítulo que revisitava o modelo de análise apresentado no livro (cf. “The Propaganda Model Revisited” in Capitalism and the Information Age – The Political Economy of the Global Communication Revolution; organizado por R. McChesney, E. M. Wood e J. B. Foster, 1998), Herman reconhecia que:
Críticos do ‘establishment’ ainda não puderam abandonar a acusação (de teoria conspiratória) – em parte porque eles são muito preguiçosos para ler um trabalho complexo, em parte porque eles sabem que acusar falsamente uma crítica radical de teoria conspiratória não vai lhes causar nada, e em parte por causa do pressuposto superficial de que, como a mídia envolve milhares de jornalistas e empresas ‘independentes’, qualquer descoberta de que eles seguem uma ‘linha partidária’ a serviço do estado precisa se apoiar na conspiração presumida. (Na verdade, isto pode decorrer de uma ampla aceitação acrítica dos informes oficiais, de crenças comuns internalizadas, do medo de represálias a análises críticas, etc.). Os apologistas não são capazes de abrigar a noção de que fatores institucionais podem fazer a mídia ‘livre’ agir como roedores disseminando em conjunto propaganda falsa e até mesmo idiota: uma acusação como esta tem que supor conspiração (p. 195, tradução livre do Autor).
Na verdade, o que Herman e Chomsky afirmaram, com outras palavras, já era conhecido como resultado de anos e anos de pesquisa no campo das Comunicações.
Hoje, qualquer estudante de jornalismo sabe (ou deveria saber) que os estudos sobre o “jornalismo sitiado”, a sociologia do jornalismo, a construção da notícia (newsmaking), o enquadramento (framing) e o agendamento (agenda setting), apesar de diferenças significativas, revelam que a prática do jornalismo profissional ocorre no contexto de uma subcultura própria; de rotinas produtivas que se transformam em normas; e de interferências editoriais – explícitas ou não –, vale dizer, das opções e interesses daqueles que são proprietários ou concessionários da grande mídia.
Lógica de funcionamento
Um observador isento haverá de reconhecer que na história da grande mídia brasileira está devidamente comprovado que ela – apesar de suas diferenças e contradições – atua de forma uniforme a favor ou contra certas causas, a começar pela feroz oposição histórica que sempre fez e faz contra qualquer regulação democrática de sua atividade.
Recentemente a maciça oposição à criação do Conselho Nacional de Jornalismo ou à transformação da ANCINE em ANCINAV, a “presunção de culpa” seletiva da cobertura na crise política de 2005/06 e a cobertura favorável ao candidato de oposição nas eleições presidenciais de 2006, podem ser lembradas. Nos nossos dias, como negar a homogeneidade da grande mídia na oposição às cotas para minorias nas universidades públicas, na sua hostilidade em relação ao programa Bolsa Família e na cobertura da crise econômica originária das ações dos bancos de investimento nos EUA?
Não há nada de teoria conspiratória nisso. Os donos da mídia não precisam sentar-se em torno de uma mesa para planejar nada. A própria lógica de funcionamento da indústria da comunicação e do entretenimento é o bastante.
Pode sim haver “conspiração”
Isso não quer dizer, todavia, que – repito, apesar de todas as diferenças e contradições – não possa haver ocasiões em que empresários de mídia (todos, alguns, a maioria?) possam articular diretamente ou fazer parte de uma ação iniciada fora da mídia, em favor ou contra determinada causa de seu interesse econômico e/ou político. Como quaisquer outros empresários de qualquer outra atividade econômica. E essa articulação não necessariamente aparece explicitada nos editoriais de seus veículos.
Talvez o exemplo mais bem documentado de uma conspiração da qual a mídia participou na história brasileira recente tenha sido seu apoio quase unânime ao golpe de 1964 (cf. René A. Dreifuss, 1964: A Conquista do Estado, Editora Vozes, 7ª. edição, 2008).
Batalha das idéias
A desqualificação de um crítico da mídia ou de seu argumento como sendo adepto de teorias conspiratórias deve ser, portanto, tomada exatamente pelo que é: uma armadilha da “batalha das idéias”, muitas vezes utilizada para evitar o debate do mérito das críticas.
O que a grande mídia e seus defensores não percebem é que, sim, o país está mudando. E sua influência e a de seus “formadores de opinião” diminuem na medida mesma em que cresce a renda, a escolaridade, a organização e, sobretudo, a inclusão digital (através da internet e de celulares), que consegue oferecer alguma pluralidade e diversidade de informações, o que ela – a grande mídia – nunca ofereceu e nem oferece à imensa maioria da população brasileira.
*Venício Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília – NEMP – UNB